segunda-feira, outubro 30, 2006

Ulísses, Odisseia, Ítaca



Ítaca: a viagem

Quando partires de regresso a Ítaca
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado - não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria - nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportas
ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possa
se vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.

Constantino Cavafis
(tradução de Jorge de Sena)


O poema de Cavafis (ou Kavafy) é um pretexto para mostrar o divertido mapa da Odisseia.

domingo, outubro 29, 2006

A bússola de Sócrates e o Norte Magnético da política portuguesa


Marques Mendes veio dizer que Sócrates está desnorteado e que a sua bússola política não anda certa. A metáfora é ideológica, pois então. Pretendia o dirigente social democrático (liberal e liberalizador por vocação) dizer que o Primeiro-Ministro anda a esquecer as causas sociais e a implementar políticas de direita. A primeira ironia desta ideia reside no facto de Marques Mendes admitir que não é próprio do PSD governar com políticas sociais, leia-se, governar a pensar nos desfavorecidos e nos que enfrentam mais dificuldades. Bom, assumiu o que todos já sabiam.

Mas a questão vai mais fundo do que a metáfora de Mendes implica. Há sem dúvida um problema ideológico, uma desorientação, no meio político-partidário nacional. E esse desnorte foi, na verdade, causado pela governação de Sócrates. Mas o problema não reside no facto de a bússola do PM estar “desnorteada”. O terramoto ideológico é maior e mais estrutural. Ao levar o PS a governar com medidas de direita, Sócrates deslocou violentamente o norte magnético da política portuguesa; e agora ninguém se orienta. Os partidos andam desorientados: o PS defende medidas de direita (o ataque à função pública, a obsessão pela economia e pelo economicismo, a desvalorização das questões sociais); o PSD liberal faz a apologia das causas da esquerda e da importância da função pública; o PP vem dizer regularmente que concorda com esta ou aquela medida socrática. Já vi algo semelhantes acontecer em Inglaterra, onde a governação “direitista” de Blair roubou o espaço ideológico e político aos Conservadores.

Um exemplo extraordinário desta desorientação entrou-me pelos olhos dentro na sexta-feira à tarde quando vi um enorme outdoor que denunciava a precaridade do emprego a que os jovens são hoje sujeitos. Denunciava o cartaz a injustiça de haver uma “geração recibo verde”. Imaginei tratar-se de um outdoor do Bloco de Esquerda. Enganei-me: era da JSD.

quarta-feira, outubro 25, 2006

Publicidade enganosa

Tenho ficado surpreendido com uma publicidade que, lentamente, tem invadido as ruas da cidade. Nesta pretensa campanha comparam-se figuras como D. Afonso Henriques, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral ou D. João I com outras, de que são exemplo, Amália, Eusébio, Rosa Mota ou Carlos Lopes. Independentemente do respeito que me move na direcção de algumas destas últimas figuras, não é possível, é mesmo inacreditável que se comparem estas figuras dum passado recente com as outras, essas sim verdadeiramente históricas, que deixaram marcas indeléveis na história não só portuguesa, como o caso dos reis, mas universal, no caso particular dos navegadores.
Será possível processar esta gente?

quarta-feira, outubro 18, 2006

Congresso de Estudos Clássicos: Identidade e Cidadania



Começou hoje na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa o Congresso de Estudos Clássicos: Identidade e Cidadania. A abordagem é multidisciplinar e muitas das comunicações pouco ou nada têm que ver com a época clássica. É isto um problema? Nem por isso... muito pelo contrário. Ouvi hoje comunicações muito interessantes em que a cultura clássica servia apenas de ponto de partida.
Amanhã de manhã apresento a minha comunicação. Ver o programa aqui.

domingo, outubro 15, 2006

A demagogia de Sócrates

O PM está mesmo imparável. Já percebeu que a fórmula demagógica hipnotiza e seduz os portugueses e... cá vai disto.
Duas notinhas apenas para denunciar a demagogia do maroto:
1. No comício que ontem promoveu, Sócrates voltou a lembrar-nos que tinha sido ele a introduzir o inglês na primária. (Introduzir o inglês?...) E o homem não se cala com isto. E não nos disse isto apenas cem vezes, nem quinhentas, nem mil vezes: já deve ser a milionésima vez que tenta impressionar os tuguinhas com semelhante feito. Como autor de estudos sobre didáctica do Inglês e ex-professor de Inglês, reitero as minhas dúvidas de que o Inglês no 1º Ciclo seja a revolução coperniciana que transformará o ensino desta língua em Portugal e, mais ainda, de que a aprendizagem precoce do idioma de Shakespeare seja a panaceia que curará o insucesso escolar ou o atraso do ensino em Portugal.
2. O marotinho do PM continua a vender à opinião pública a ideia demagógica, errada e canalha de que os Professores estão descontentes porque não conseguirão todos chegar ao topo da carreira docente. Nada mais errado. O problema prende-se, na verdade, com o Novo Estatuto da Carreira Docente, questão muito mais ampla que a do "topo da carreira". Entre outras coisas, os professores estão descontentes com: a forma como este governo está a esforçar-se para denegrir a profissão docente; o modo como está a deixar desgovernada a educação em Portugal; as horas excessivas de aulas e outras tarefas e a consequente falta de tempo para preparar boas aulas e melhorar, desta forma, o ensino; os critérios pelos quais e a forma como serão avaliados; a falta de condições para exercerem de modo eficaz a sua profissão; o não poderem investir na sua formação; etc, etc. Face a estes problemas, "ficar no topo" é a menor das nossas exigências.

sábado, outubro 14, 2006

Mistério, putativo, na terra em que meu pai vive

Nunca, nos dias da minha vida, pensei, em tempo e lugar algum, vir a congratular-me por uma notícia de um tablóide (peço desculpa por ter vestido a pele de tradutor de filmes e novidades de TV). É verdade, uma notícia do Expresso de hoje veio devolver-me a esperança nos meios de comunicação social, isto sem qualquer desrespeito pela prole do senhor, ao noticiar que um pai de cinco filhos, José d'Orey tinha desaparecido em Azeitão na segunda-feira passada. Este alerta faz-me ter esperança que quando meu pai, que (vejam lá a coincidência) não é que se chama também José, desaparecer, ele que também é possuidor de cinco rebentos (nos quais me incluo), o periódico nos faça o favor de o noticiar, acrescentando, emulando a notícia, que a PJ está a investigar o caso.
Passe a repetição: bendito Expresso!

quinta-feira, outubro 12, 2006

O exemplo socrático

Iluminados pelo preclaro exemplo do “nosso primeiro” que, num momento de honestidade, se recusou a comentar, de modo ostensivo, a manifestação de hoje, que contava (segundo as fontes que escutámos) entre 80 a 100 mil pessoas, contra a política do governo, decretamos o que se segue: os médicos devem escapulir-se, contumazmente, a dar explicações a familiares de pacientes com doenças terminais; os empregados de mesa, usando todos os recursos que a imaginação puser à sua disposição, devem enjeitar, terminantemente, a possibilidade de explicar, ao cliente, a conta; os professores, com a determinação que a vocação lhes proporciona, devem esquivar-se, pertinazmente, a responder às dúvidas de alunos e encarregados de educação; os condutores de autocarro devem, com as armas que Deus lhes deu, banir as paragens em locais onde os passageiros os esperem; os advogados devem sair encapuçados e pela porta do cavalo, como o raptor-assaltante do banco de Setúbal, sempre que os seus clientes forem condenados e maiores preocupações de índole escapulidora devem ser tomadas se o pobre do cliente, ainda para mais, estiver inocente; e os condutores de táxi estão proibidos, peremptoriamente, de nos deixar nos locais para os quais fazemos tenção de nos dirigir.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Sinais




Transcrevo hoje no Tonel um poema do grego de Alexandria, Konstantinos Kavafis, que acho fabuloso. Fala-nos do problema da interpretação dos sinais... A tradução é de Jorge de Sena.


O Prazo de Nero

Inquieto, Nero não ficou, ouvindo,
do oráculo a resposta em Delfos:
“Que devia temer setenta anos mais três”.
Pois tem imenso tempo de gozar a vida.
Com trinta anos de idade! Como ainda vem longe
o prazo que o Deus lhe demarcou
para temer de perigos iminentes.

Voltará para Roma, cansado um pouco,
mas tão deliciosamente cansado de uma viagem
que nada foi que dias de prazer –
- nos teatros, nos parques, nos estádios…
o entardecer das cidades da Acaia…
E mais: a volúpia da nudez dos corpos…

Assim Nero pensava. Mas na Espanha Galba
secretamente reúne e prepara um exército:
um velho de setenta e mais três anos.

[1918]

segunda-feira, outubro 09, 2006

A importância de se chamar Ernesto ou, em linguagem pós-moderna, a relevância do telemóvel de "varinha"

O nível de importância do ser humano foi evoluindo à medida que a humanidade foi progredindo ao longo dos tempos pré-históricos até aos nossos dias de telelixo e comida rápida.
Se esta (importância, relevância, entenda-se) se foi mensurando através da medida em que se premiava a capacidade de garantir os seus próprios meios de subsistência, tendo passado pelo grau aristocrático até terminar na nobreza do “bagulho”. Este processo, no fundo, representava uma evolução em termos qualitativos e darwinianos, que nós não somos capazes de censurar, longe esteja essa pretensão, e não podemos coibir-nos de exaltar.
Se é verdade que o tamanho do pénis, nos machos, foi sempre considerado uma mais valia, abençoado Freud que não nos fez esquecer tal prevalência, é indubitável que, hodiernamente, depois da pequenez do telemóvel ter representado um elevado estatuto social, não existe pessoa digna de nota que não seja possuidor dum telemóvel de "varinha”. Tal requisito é, em bom rigor, condição sine qua non para se ser apelidado de estrela do JET 7.
Porque Deus também teve de descansar ao sétimo dia, é que as qualidades não são inesgotáveis!

domingo, outubro 08, 2006

Então Sócrates não era contra os sofistas e a "dê-ma gorgia"?

É 1h30 da manhã e ainda estou a preparar aulas. Sou professor, isto é, um membro dessa classe mais desprezível que os ladrões, os escroques e os políticos corruptos. A forma desdenhosa como a sociedade me olha prova que minha vocação se revelou uma errada opção profissional. E que papalvos somos, os meus colegas e eu, que tudo fazemos para educar os nossas alunos e para contribuir para um mundo melhor.
O Sr. Primeiro-Ministro e a Ministra da Educação muito têm feito para denegrir a imagem dos professores. Têm feito muito mesmo. Perceberam cedo que denegrir os professores cativava a opinião pública (que contra esta classe profissional tinham uma enorme má vontade), e vai de dar porrada neles para subir nos barómetros da popularidade.
A última frase demagógica, o último ataque desonesto aos Professores deu-se ontem quando Sócrates comentou as razões que levam os docentes a fazer greve nos próximos dias. Afirmou o PM que estes tinham de se convencer que não podiam chegar TODOS ao topo da carreira. Foi desonesto, foi demagógico, foi canalha. As reivindicações dos Professores não se centram nesta questão. Os docentes querem ser avaliados, mas justamente; querem ter melhores condições de trabalho para melhor formarem os seus alunos; querem que se compreenda que são necessárias horas extra-lectivas para se prepararem boas aulas; querem ter direito à formação para se tornarem melhores professores. (Ver aqui o caderno reivindicativo.) Mas, de forma demagógica e desonesta o PM resolveu ignorar a verdade dos factos e deitar areia para os olhos da opinião pública. Parece que ele e a Ministra da Educação acreditam mesmo que enxovalhar os docentes é um bom caminho para se ter um ensino de qualidade.
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Bom, é 1h55. Tenho de continuar a preparar as minhas aulas.

quinta-feira, outubro 05, 2006



O jornal inglês The Independent vem hoje chamar a nossa atenção para o facto de o grande plano dos Estados Unidos de pacificar o mundo sob os seus auspícios - isto é, de fazer uma Pax Americana - não só está a falhar redondamente como se tornou responsável por muita da violência mais devastadora que hoje se regista no planeta. Para onde nos leva este roteiro?

quarta-feira, outubro 04, 2006

Eça, crítico do funcionalismo público



Deveres profissionais obrigam-me a ler Os Maias, do sublime Eça, pela quarta vez. É sempre um prazer voltar a este texto. Cito hoje aqui o diálogo breve entre Carlos da Maia e Taveira, um funcionário do Tribunal de Contas:
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- Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara o relogio. E eu aqui, empregado publico, tendo deveres para com o Estado, logo ás dez horas da manhã.
- Que diabo se faz no tribunal de contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaquea-se?
- Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo... Até contas!

segunda-feira, outubro 02, 2006

'Piss Christ', de Andrés Serrano


Agora que já saiu da ribalta dos media a problemática das representações de imagens sagrados, e, mais concretamente, da figura de Maomé, sinto-me mais à-vontade para convocar para este blogue a mais impressionante cena de crucificação de Cristo que vi. Trata-se de Piss Christ, de Andrés Serrano. Com toda a honestidade asseguro que o que me agrada nesta imagem é o efeito visual que ela cria, não a sua dimensão iconoclasta (que também tem). Deslumbram-me os tons de vermelho irregularmente iluminado, que exteriorizam o sofrimento e sangue de Cristo. Maravilha-me a ilusão de o Messias emergir do lençol de sangue. A luz que corta o vermelho e incide sobre o corpo do Crucificado cria efeito interessante de ser Cristo aquele sobre quem incide a luz e não aquele que emana a luz. Fascina-me ainda a natureza difusa da imagem, assumindo que só difusamente se pode representar o sagrado.
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E, no entanto, a concepção desta peça inebriante foi o único motivo que a tornou altamente polémica. A explicação está aqui. Não a comento.

domingo, outubro 01, 2006

Zita Seabra e o aborto legislativo

A minha nota é breve mas incisiva. Zita Seabra diz-nos que tinha preparado um projecto de lei "que defendia a suspensão dos julgamentos de mulheres acusadas de crime de aborto." No entanto, após ter sentido que a sua proposta estava a ser aproveitada por outros para a "manobra política" decidiu abandonar a ideia (ver aqui).
Zita teria razão em mostrar-se indignada ao constatar que uma matéria tão candente, sensível e imperiosa do Portugal dos nossos dias - refiro-me ao julgamento das mulheres desfavorecidas que foram incriminadas por terem interrompido a gravidez por sua vontade (as outras não o são, claro!) - estava a ser canalizada para os caminhos da baixa política. A iniciativa legislativa seria justa (embora tardia) e é inaceitável que se faça qualquer tipo de aproveitamento político a partir dela. Mas Zita saiu-se mal no processo. E porquê? Porque abandonou um projecto de uma lei urgente com a simples razão de ver que outros iam achincalhar, explorar politicamente ou deturpar o propósito da medida. Ou seja, foi por razões do domínio da refrega política, da trica partidária e mesmo de orgulho ferido que Zita abortou a sua iniciativa legislativa.
No entanto, a Justiça e os direitos dos cidadãos não estarão acima da luta partidária? Zita foi eleita e é paga para defender o interesse dos portugueses (neste caso, mais directamente das portuguesas) Não podem, pois, ser um amuo da deputada nem as questiúnculas parlamentares a impedi-la de desempenhar as funções que lhe foram confiadas. Desistindo da proposta, perdem as mulheres, perde a Justiça e perde Portugal, que continua nesta matéria a ser visto como o mais atrasado país do ocidente europeu.