segunda-feira, novembro 27, 2006

Receitas a perceito

Podem chamar-me todos os nomes porque é muito provável que os mereça. Mas só há poucos dias é que tive consciência dos dois primeiros versos da canção principal da Floribela: “Pobres dos ricos que tanto têm. Para que é que serve tanto dinheiro?”. Já estou a ouvir um leitor afirmar que este gajo quer-nos provar que não vê a telenovela. Nada mais afastado da verdade, o que é um facto é que ao longo destes meses, porque eu também tenho crianças em casa, já vi e ouvi vezes suficientes a “Florisbela”. Só que, eu próprio me admiro, nunca tinha “realizado” (perdoem-me esta de tradutor rasca).
Nestes versos singelos encerra-se todo um mundo que é necessário ter em atenção: a inculcação conformista em psicologia negativa, não queiras ser rico que é “um mundo de desgraças”. Por essa razão, a verdadeira heróina é uma criadita que, por supuesto, não quer aspirar à fartura monetária, isto no plano da inculcação, porque, no fim, ela há-de casar com o ricaço e atingir os seus objectivos e ser “desgraçadinha sem saber o que fazer ao dinheiro”. Não, estou enganado, há-de ser uma benemérita altruísta que quer tornar os pobres todos desgraçados, mais miséria a rodos. Deste modo, ou fica feliz e pobre, ou estende a miséria a todos que contacta. Que fique longe de mim que já sou desgraçado suficiente.
Já soube que isto também passa, parece que há mais tempo, no Brasil, manobra Lula? Aqui para o nosso Sócrates esta injecção de conformismo telenoveleiro vem mesmo a calhar, será que foi o homem que a encomendou?

domingo, novembro 26, 2006

Ainda sobre a morte de Cesariny



Não me conformo mesmo com a morte de Cesariny. Afixo aqui outro poema emblemático do Artista e da sua atitude crítica.

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Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante –
ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

A morte de Cesariny

Acabo de ouvir na rádio que morreu o poeta e pintor... não digo bem, acabo de ouvir que morreu o artista total surrealista Mário Cesariny de Vasconcelos. Com ele morre definitivamente o Surrealismo em Portugal; não o Surrealismo apenas como arte mas como filosofia de vida e atitude perante sociedade. Perde também a nossa sociedade alguém que nos ensinou a dizer não a esta vidinha burguesinha e asquerosamente patetinha que investe no efeito e na convenção em lugar de valorizar as coisas que realmente importam. Cresci muito com o seu exemplo.
Centro-me agora na obra poética de Cesariny: é que nele morre um dos poetas do século XX cuja poesia mais me fascina. A sua lírica tinha uma força que nem a de O'Neill nem a de nenhum outro da sua geração tinha - temos que abrir apenas uma excepção para a obra de Herberto Helder.
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Deixo um excerto de um poema sobre a vidinha em Lisboa há sessenta anos atrás... mudaram as moscas, mas sempre a mesma é a...
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Há uma hora, há uma hora certa
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Há uma hora, desde as sete e meia horas da manhã
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Estamos no ano da graça de 1946
em Lisboa, a sair para, o meio da rua.
Saímos? Mas sim, saímos!
Saímos: seres usuais, gente
gente! olhos, narinas,
bocas,
gente feliz, gente infeliz, um banqueiro, alfaiates,
telefonistas, varinas, caixeiros desempregados
uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo
aos mictórios para apanhar eléctricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, normalmente silenciosa
mas obrigada a falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz do eléctrico, em marcha,
gente jovial a acompanhar enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua
menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.
Humanidade cordial, em suma,
com todas as consequências disso mesmo
e a sair a sair para o meio da rua.
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Tenho uma interpretação para a expressão "descendo / aos mictórios para apanhar eléctricos" (versos 14-15), mas não estou seguro sobre o seu significado. Poderá o amigo leitor ajudar-me com a sua interpretação?
Ler o poema na sua forma integral aqui.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Caos vs. Surrealismo


Consta que numa certa reunião dos surrealistas franco-belgas, onde estavam presentes Tanguy, Préret, Aragon e outros artistas do movimento, a discussão aqueceu bastante, o ruído era intenso e os argumentos trocados já eram imperceptíveis. Consta que André Breton, Papa e principal ideólogo do movimento, terá levantado a voz para serenar os ânimos, mas os artistas exaltados não pararam a discussão. Consta que, então, Breton terá gritado: "Cavalheiros, por favor! Por favor! Eu sei que somos Surrealistas, mas isto é o caos!" Consta que...

sábado, novembro 18, 2006

Mário Sottomayor Cardia

Tenho, hoje, de dizer algumas palavras sobre Mário Sottomayor Cardia. Tendo passado os últimos anos como quase anónimo docente de Estudos Políticos na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa, iniciou a sua vida política, como a grande maioria das pessoas da sua geração, nas hostes comunistas. Durante essa época, foi com o progenitor, que segundo o que o descendente atestava tinha simpatias integralistas, a casa de Luís de Almeida Braga, um dos líderes históricos do Integralismo Lusitano, que lhe disse à puridade: “ó rapaz, tenho ouvido dizer que anda por maus caminhos”, ou qualquer coisa semelhante.
O que é um facto é que afastado da militância comunista foi um dos fundadores do Partido Socialista, partido do qual se desligou não sem antes ter sido deputado em várias legislaturas e ministro da educação. Aliás o seu afastamento e posterior reinscrição foram alvo de algumas peripécias que o próprio recordava com um sorriso, sinal de que essa ligação umbilical estava longe de estar ultrapassada. Tudo isto a despeito de confessar, em entrevista a periódico, que, nessa altura, se encontrava mais perto das posições do BE do que do PS (a verdade é que este Sócrates dizia-lhe infinitamente muito menos do que o outro).
A este homem deve-se um reconhecimento público e, no meu caso, um agradecimento pessoal, pela utilização da sua monumental biblioteca, que sempre, francamente, pôs à minha disposição e pelas informações que, amavelmente, me disponibilizava, das quais tenho que estar eternamente em dívida. Embora coevamente agradecidas, este escrito é, também, uma tentativa singela de amortização.
Não sabemos se chegou a concluir a obra, da qual tinha muitas páginas redigidas, que, ultimamente, o andava a ocupar, esta intitular-se-ia, salvo erro, teoria do estado, disciplina que, nos últimos tempos, leccionava na licenciatura de Estudos Políticos.

segunda-feira, novembro 13, 2006

O esvaziamento do CDS-PP

Embora possa carregar o ónus da prova perante alguns dos meus leitores declaro que me encontro deveras preocupado com o esvaziamento do CDS-PP. As últimas sondagens que atribuem ao partido da direita cerca de 3% do eleitorado têm carregado com algumas nuvens os dias ensolarados que temos tido, embora nem todos possam ter sentido o mesmo. Mas já estou a ver a impaciência aos saltos, a minha é óbvio, porque a do leitor ainda bem que não a enxergo, e por essa razão o melhor é explicar-me decentemente, se sou capaz de o fazer.
Tenho a convicção que o sistema exclusivo dos dois partidos é um mal para o regime democrático. Para que esse sistema funcione bem, mas que digo eu, parece que estou bêbedo, correcção: funcione de forma adequada é necessário que, à esquerda e à direita, existam os contrapesos imprescindíveis com uma representação popular que, sem ser demasiado aglutinadora, o seja o suficiente para poder, com propriedade, importunar o partido do governo e o maior partido da oposição.
Deste modo, votações mais ou menos significativas de BE, PCP ou CDS-PP revelam-se, no meu entender (embora já esteja a ouvir que se a minha preocupação passasse na alfândega, em relação ao bem geral do país, certamente nada havia a declarar), essenciais para que o sistema funcione, maldito bem que se vinha a intrometer novamente, ajustadamente.

domingo, novembro 12, 2006

Exposição de Amadeo de Souza-Cardoso


Vem aí uma promissora exposição de Amadeo de Souza-Cardoso (ver a revista Actual do Expresso deste sábado) que inclui aquilo peças nunca antes vistas em exposição. Entre estas, contam-se composições do que até há pouco tempo era considerada a obra menor de um grande pintor - ilustrações para livros, desenhos, etc.

Afixo aqui um divertidíssimo óleo, Salto do Coelho, sem comentários que enfadem o leitor ou toldem a graciosidade das composições.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Circe



Em dias de trabalho árduo e vazio, ponho-me a imaginar o que deve ter experimentado e sentido Ulísses em cinco anos de deleite e prazer no palácio de Circe; cinco anos vividos como se apenas cinco dias tivessem passado.
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O quadro é Circe, de Wright Barker (c. 1890)

sexta-feira, novembro 03, 2006

Dia dos Mortos

Este dia faz-nos pensar sobre o significado dos que já viveram e deixaram, ou não, a sua marca na sociedade. O culto dos mortos é, bem vistas as coisas, o culto da tradição e do passado. Veja-se, por exemplo, o revivalismo do pão por Deus. Não será a narrativa da história a descrição dos mortos? E daqueles que, por interposta pessoa, não se sintam atacados na sua dignidade com isso, pense-se na problemática dos arquivos da pide. Tudo isto nos faz pensar na pertinência da frase de Comte, asserção que qualquer tradicionalista não desdenharia, “os mortos comandam os vivos”…comandam?
Por outro lado, este dia faz-nos, também, reflectir sobre a precariedade do fio que nos prende à existência, servindo assim para uma meditação sobre a finitude humana e o sentido da existência. Questão que, bem vistas as coisas, poderia coincidir com a célebre frase de Albert Camus: “o sentido da existência é não ter sentido nenhum”…será?
De qualquer modo, que dia teria mais propriedade para se tornar o “dia da filosofia e da história”, se é que estas coisas, porque paradoxalmente o dia da ciência não as abarca (pois, na perspectiva dos nossos iluminados, só é ciência a ciência natural ou aparentada com ela) têm dignidade suficiente para aspirarem a um trezenta e sessenta e cinco avos do ano…terão?
No dia em que não tiver dúvidas escrevo um postal sobre isso…escreverei?
Merda, com tanta indecisão isto ainda aparece no dia seguinte.

Versão áudio do 'Romance da Raposa' de Aquilino Ribeiro



Encontrei, por acaso, um blogue fabuloso. Trata-se de Estúdio Raposa, de Luís Gaspar. O blogue é uma pequena, mas preciosíssima, audioteca, com textos portugueses lidos pelo próprio Luís Gaspar. A leitura e a gravação são EXCELENTES. Destaco a leitura dramatizada do Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro. E que leitura! Que vivacidade! Que exercício dramático!
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Está extraordinário!

quinta-feira, novembro 02, 2006

Discriminação sexual em produtos lácteos

Por razões que não vêm ao caso, tenho de comer iogurtinhos magros duas vezes por dia. Eu que já sentia a minha masculinidade ensombrada com o simples gesto de pedir um iogurtinho num café, acho que é ainda mais comprometedor perguntar a um empregado de bigode de um café achavascado: "Os senhores têm iorgutes magros?"
O caso complicou-se esta semana quando, no bar do meu local de trabalho, a simpática funcionária me disse que o único iogurte magro que tinha se intitulava (se a memória não me atraiçoa) Optimal Mulher. "Safa", respondi, "Ainda se no verso da tampa saíssem gajas boas..." Mas não, não era isso: o iorgurte era destinado a mulheres. Recusei, claro!, em primeiro lugar, porque temi que o produto lácteo contivesse hormonas que me fizessem inchar os peitos ou me deixassem a voz mais fina; depois, porque não queria que os meus colegas me vissem a comer iogurtes para senhoras. Imagino o gozo que se seguiria.
Tenciono agora escrever para um qualquer observatório contra a discriminação entre sexos (deve haver algum) queixando-me de que me senti profundamente discriminado na situação acima descrita e exigindo uma rápida intervenção para acabar com tamanha agressão ao saudável equilíbrio na relação entre homem e mulher.