sexta-feira, novembro 30, 2007

HIPARQUIA



Vamos então à encantadora mulher que surpreendemos dentro do (outro) tonel de Diógenes. E que ela nos perdoe não pormos em título o nome do amável Crates ao lado do seu, mas quero destacar a única mulher chamada “filósofa” a quem o historiador Laércio dedica capítulo próprio entre os mais de oitenta filósofos da antiguidade, nos dez livros que sobre eles escreveu.

A Hiparquia era natural da cidade de Maroneia. Na idade casadoira, conheceu e apaixonou-se pela palavra e estilo de vida do filósofo Crates, que levava uma vida de Cão. Recusava ela categoricamente todos os mais partidos e pretendentes bons que se lhe ofereciam. Ameaçava suicidar-se, se não casasse com o seu pretendido. Os pais, em desespero de causa, lembraram-se de pedir ao próprio Crates que a desconvencesse de o seguir. E este anuiu e apelou a todos os recursos da razão e da retórica. Sem resultado. Por último, apelou a um argumento tipicamente canino: despiu-se do manto, mostrou à jovem a escanzelada e ascética nudez do corpo mendicante… - “Eis tudo o que possuo. Vê bem e escolhe melhor!” Hiparquia, baixando-se, apanhou o “manto dos filósofos” e cobriu-se com ele. Crates compreendeu e… ficou ele convencido.

Foram núpcias célebres as deles dois, porque foram públicas… E a Hiparquia “seguiu a natureza” não recusando ter filhos. Quando se admiravam da impassibilidade com que suportava os trabalhos de parto, explicava ela que o segredo estava em nesses momentos continuar ocupada com os da filosofia.

Encontrando-se uma vez num simpósio, reservado aos homens, o filósofo cirenaico Teodoro dava-se em si sonoras palmadas nas coxas, acentuando uns versos euripideanos, com os olhos críticos postos na presença de Hiparquia: - « Quem é esta que “das lançadeiras do tear se aparta, e a mais aspira”?...» A filósofa respondeu-lhe tecendo este argumento: - “Se uma acção é boa, quando feita por Teodoro não o deixa de ser feita por Hiparquia; se Teodoro faz bem quando dá punhadas em si próprio, então Hiparquia faz bem quando bate em Teodoro.” Este não encontrou melhor resposta do que ir direito a ela e deitar-lhe as manápulas às dobras do manto, como a querer arrancá-lo; mas foi para receber da imperturbável mulher um corolário soco: -“Devias tu aspirar a mais!...”

E a nós pouco mais nos dá a historiografia, nem precisamos. O retrato é flagrante. Fixemos que esta Hiparquia se tinha “encantado com as palavras caninas ”. Também a bacante da peça de Eurípides, Agave, tinha sido “capturada nas redes” de Dioniso e, nos frenesins entusiásticos da oribasia e da omofagia, tinha despedaçado o corpo do seu próprio filho, Penteu, o rei de Tebas, que havia rejeitado e ofendido o deus. Poucos versos adiante dos citados por Teodoro, fala-se dos “cães que Actéon despedaçaram”. Era este um outro neto de Cadmo, o fundador daquela cidade, e vangloriava-se de ser melhor caçador que Ártemis (mas a maioria dos testemunhos diz que foi castigo de ter espreitado a deusa a banhar-se nua). Reencontramos, pois, um rei muito pouco dignamente tratado, agora por mulheres descalças e sumariamente vestidas, comedoras de carne crua, como incivilizadas e marginais à sociabilidade da polis e da vida política. O Teodoro, cognominado “o Ateu”, tinha que temer-se, mas acabou ele enfuriado e mudo, mordido por um spudogeloios da Hiparquia: uma daquelas respostas prontas, mordazes e capazes de filarem jocosamente o nervo de coisas muito sérias… No civilizado simpósio, foi-lhe servida uma típica especialidade canina.

Ergamos nós as taças à bela mulher de Maroneia, e já agora também àquela de Mantineia que noutro simpósio famoso um Sócrates ouviu com admirado e respeitoso silêncio.

sexta-feira, novembro 23, 2007

OS LATIDOS DE DIÓGENES ( 5º )


O caro leitor, quando a vir, não me perdoará… Que se lhe há-de fazer? Olhe, exercite comigo a paciência de diferir para o próximo postal as devidas homenagens à gentil figura de mulher que nos saiu do tonel, garantido que não era o capitoso efeito dalgum néctar mais trepador. Temos ainda um preliminar aperitivo.

O grande ironista Platão - “que sabe tão bem troçar”, como reconhecia honestamente alguém que o soube por experiência própria: o príncipe dos sofistas, Górgias -, dizia que Diógenes de Sinope era um “Sócrates enlouquecido”. O diogénico Cioran (que nos está aqui a convidar para qualquer dia), falava dele como um “Sócrates tornado sincero”, desatado da máscara platónica. Eu permito-me dizer que o kosmopolitês, o “cidadão do mundo”, era um Sócrates livre do cárcere da polis, em que este livremente se deixara confinar e morrer.

O Cão de Sinope proclamava lícitas as uniões sexuais dentro ou fora do casamento, e a comum adopção das crianças nascidas de tais uniões. Também não via mal nenhum em que se comesse a carne de qualquer animal, incluindo a humana. Conta-se que ele considerava existirem elementos da carne no pão ou nas ervas, e vice-versa. Quais fossem esses constituintes elementares da matéria (a que o seu contemporâneo Demócrito chamava “átomos”), não se sabe. Do que podemos ficar seguros é de que o nosso Diógenes não morderia naqueles asiáticos calacianos, de que nos fala Heródoto, que tinham o costume de comer os seus mortos e muito se horrorizavam com o costume grego da cremação. O “cidadão do mundo” estaria livre do afogo das variáveis convenções instituídas nas variadas sociedades humanas; era um “amigo dos deuses”: via-as com diverso, divino ponto de vissta, digamos, mais distanciado, mais… divertido. E sou eu livre de supor interpolação apócrifa de escandalizado comentador aquela tentativa de explicação “química” das carnívoras dietas: o Cão não se importava com especulações sobre a composição do cosmos, mas sim em trabalhar o homem, começando por si. Este trabalho era uma askesis, comparável ao exercício ginástico para os atletas, e o resultado dele tinha um nome que os estóicos também prezavam muito: a ataracsía - uma impassibilidade soberana ao jogo e jugo das contingentes voltas e reviravoltas da fortuna. De facto, os que se habituam ao gozo duma vida cómoda e confortável sofrem quando privados dos seus prazeres; ao invés, os que se exercitaram a suportar pesares e penas livram-se dessa dependência e do temor do sofrimento. E, acrescenta a doxografia, Diógenes demonstrava-o menos com palavras do que com a vida exemplar de alguém que pretendia viver como Héracles e “punha a liberdade acima de tudo”. De facto, um trabalho digno de Héracles… pretender que os homens não refujam o mais que podem dos sofrimentos e não se prendam aos prazeres. Pretendia ele, Diógenes (e realça aqui um equívoco ponto de contacto com alguns dos sofistas), que nos desembaraçássemos das convenções para seguir a Natureza. Mas, cabe perguntar se não é a mesma Natureza que manda o homem comum maioritário, como a outros animais, evitar os sofrimentos e procurar os prazeres; se, portanto, o hedonismo popular ou uma ética utilitarista não são, deste ponto de vista, os mais “naturais”…

Diz a tradição, e disse eu supra que ele “demonstrava” menos com palavras do que com a sua própria vida. Hoje, quando se fala de problemas, teorias, argumentos, demonstrações há uma tendência a subalternizar esta vertente prática – ascética – do trabalho filosófico. Digo que fica subalterna para não dizer perdida. Como se perdeu a seleccionada e directa convivência numa vida comum e quotidianamente partilhada entre mestre e discípulo na praça pública, a céu aberto ao que der e vier.

sexta-feira, novembro 16, 2007

OS LATIDOS DE DIÓGENES ( 4º )


Há histórias que jogam com as palavras, de que há exemplos no anedotário de Diógenes; há ideias que jogam com histórias que jogam com palavras, e estas perdem menos na tradução entre línguas. Em ambos os casos, são as histórias argumentos literalmente simbólicos, não proposicionais: o seu sentido lógico não é o da inferência de premissas para uma conclusão, mas o da correspondência entre a figuração narrativa e a forma da ideia que se quer dar a pensar. Não menos importante: a história faz passar uma ideia que quer passar para a vida dos comportamentos de relação entre os homens, e destes com o mundo. Uma história apresenta uma ideia quer se quer representar no teatro do mundo.

Histórias, pois, que são lendas: legendas para lermos ou inteligirmos ideias/formas da experiência humana no mundo, provadas, seleccionadas e transmitidas por tradição. Análogo vivo das que, antes e depois dele, tinham algo de marcante a dizer, e marcaram, o nosso Diógenes representou-se e deu-se a ler a si directamente, diferindo para outros a mediação do texto escrito. Guardei para hoje estas duas legendas:

Certa vez, ia ele a dirigir-se para a entrada do teatro, no momento em que toda a gente se vinha embora dele. Inquirido, respondeu: - “É isto o que tenho feito toda a vida…”

A outra. Xenodíades, o ricaço que vimos em Egina comprar o velho Diógenes como escravo, perguntou-lhe de que maneira é que queria ser enterrado quando morresse: - “De cabeça para baixo!” E porquê? – “Porque dentro em pouco todas as coisas ficarão invertidas…”

Temos pois: a multidão afasta-se do teatro onde se representam histórias para os que sabem ver ideias, enquanto o nosso Cão faz o percurso inverso, caminhando sempre fiel a certa ideia do homem, que ele (se) representa. Com a palavra “inverso” deixamos o leitor petiscar lume para a lanterna que trouxe para ver o que há dentro na sombra do tonel… que parece um túmulo. Um túmulo pode ser útero de onde renasça direito o que antes nasceu torto. E, se não esqueceu que o tonel está encostado ao templo dedicado à Terra-Mãe de todos os deuses, também lhe oferecemos, para variar, este polissilogístico argumento que é atribuído ao canino criador e encenador de histórias:

Todas as coisas pertencem aos deuses;
Todos os sábios são amigos dos deuses;
Todos os amigos põem em comum o que possuem.
Logo, todas as coisas pertencem aos sábios.


O nosso grande Alexandre (Dias Pinto), tem aqui lume para alumiar aquele que disse ser um “cidadão do mundo”…

Deixou-nos o molosso avançar quando farejou que trazíamos cada um de nós autorizadas lanternas de diogénio. Mas nada nos preparava para a surpresa que nos detém agora: eis que da sombra do tonel vemos sair uma vaporosa, delicada figura, uma gentil figura… de mulher. Era um velho gaiteiro, este Diógenes!

quinta-feira, novembro 15, 2007

Cena final da série 'Sete Palmos de Terra'

Não segui com regularidade a série americana 'Sete Palmos de Terra', apesar de me terei falado muito bem dela. Vi algumas sequências narrativas aqui e ali.
Mas lembro-me bem desta sequência final da série. São seis minutos muito tocantes e muito belos. As imagens, os olhares e a música dispensam totalmente as palavras. Os diálogos viriam estragar tudo... ou, pelo menos, tirariam muito da dramaticidade das cenas. E o que dizer da fabulosa metáfora do carro a rolar por uma típica estrada deserta e rectilínia americana?

A música (lindíssima!) é o "Breathe me", de Sia.

quarta-feira, novembro 14, 2007

Será que Aznar era um fascista?

A pergunta que aparece em epígrafe é meramente retórica e não me desperta interesse nenhum a sua possível resposta, seja ou não essa solução verosímil. O que verdadeiramente me preocupa é o facto do Rei de Espanha, a mais alta dignidade do País vizinho, mandar calar de modo tão enfático um Presidente eleito duma nação.
Oiço já e não posso deixar de concordar que Hugo Chávez é, sob a capa da legitimidade democrática, um pequeno ditador, porém, o empolado cala-te, emitido quando Zapatero, de maneira digna e adequada, respondia com pertinência ao Presidente eleito, apenas nos pode soar, emulando um “soquete” (ou “sokete” se preferirem) recente, como uma extravagância, pois trata-se do Rei de Espanha, se fosse qualquer outro…, deixo à imaginação do pio leitor essa qualificação, porque hoje não estou azado para respostas.
Num tempo em que o humor sobre Maomé (ou Mahomet se preferirem) é considerado liberdade de expressão, liberdade de opinião e o espírito sobre a família real espanhola é qualificado de..., com o meu fraco pendor para respostas prefiro reproduzir Sousa Veloso, despeço-me com amizade e até o próximo programa, quero dizer, postal (ou mensagem como agora aparece antes de se começar a escrevinhar).

quinta-feira, novembro 08, 2007

OS LATIDOS DE DIÓGENES ( 3º )



Já Antístenes, tão estimado de Sócrates, não se dava bem com Platão. Ainda menos o nosso Diógenes. Chegaram-nos histórias instrutivas sobre os mimos que se trocaram ambos. As duas seguintes bastam.

O Cão encontrou certa vez Platão e perguntou-lhe se lhe dava meia-taça de vinho e frutos secos. Prontamente, com pródiga generosidade aristocrática, o ateniense encheu-lhe a taça até ao bordo. E rosna-lhe o outro: - “Quando te perguntam quantos são dois mais dois, respondes tu que são dez?... Não me dás o que te pedi e não me respondeste ao que te perguntei.” E sem que Platão tivesse tempo de abrir a boca, ainda se viu mordido como… - “tagarela!”

“Perda de tempo” e “só conversa” era o que o Cão achava do ensino na Academia platónica. Confrontavam-se pois duas espécies de filosofia: uma, dominantemente especulativa, sistemática, enciclopédica, procurando com o discurso magistral ou o aconselhamento “técnico” influir directamente na vida e organização da polis; a outra, dominantemente prática, de poucas mas cortantes palavras, dando o corpo em manifesto duma reforma que o próprio indivíduo experimenta imediata e directamente, sem ilusões nem reivindicações sobre a natureza da vida social e política dos homens.

As demasias do “dez” platónico, enchendo as taças, multiplicando ideias e mundos, implicam-se noutra história. Dissertava o Académico sobre a ideia de taça e sobre a ideia de uma mesa: - “Por mim, ó Platão, vejo bem a taça e a mesa, mas não vejo nenhuma ideia de taça ou a ideia de mesa…” – “É que, para veres a taça e a mesa, bastam os olhos que tens; mas para veres as ideias, era precisa a inteligência, que te falta.” Desta vez foi o orgulho de Platão o último a falar, e a voz descendente dos velhos reis de Atenas impôs-se, soberana, pelos séculos adiante. Dos latidos do Cão, apenas ficaram mordentes anedotas e o perverso sentido que a palavra “cínico” carregou até aos dias de hoje, como se Diógenes fosse um Cálicles. O ateniense dizia que o mais importante não o escreveria, mas desunhou-se a escrever. O homem de Sinope, a alguém que lhe pedia um livro dele, respondeu: - “Para que queres tu letras gravadas em tecidos mortos se tens à tua frente a planta do autor viva?”…

Resta saber se o filósofo-escritor de academias e bibliotecas foi mais bem entendido que o Cão, começando neste. Ora veja-se este trecho no final desse maravilhoso monumento platónico que é o Górgias. Diz Sócrates a Cálicles: - « Deixa que te desprezem, te considerem insensato, te insultem se quiserem, e até, por Zeus, sofre que te esbofeteiem, coisa que tu achas entre todas infamante: não te acontecerá nenhum mal se fores realmente um homem de bem, dedicado à prática da virtude. »

Na tradução do professor Oliveira Pulquério, não dá isto o perfeito retrato dum sarnento vira-lata?... Ao nosso Cão parece que só faltou o bofetão.

Continuaremos a tentar descobrir a raça dele no próximo postal.

sábado, novembro 03, 2007

Poesia




It is difficult
to get the news from poems
yet men die miserably every day
for lack
of what is found there.

William Carlos Williams
(Pintura de Alfons Mucha, Poesia)

quinta-feira, novembro 01, 2007

OS LATIDOS DE DIÓGENES ( 2º )



O grande rei Alexandre foi regiamente tratado. Não tanto assim uns foliões em prandial galhofa sobre lauta mesa e que, vendo por ali passar o nosso Diógenes, lhe atiraram um osso; pois o Cão chegou-se a eles e, alçando uma perna e o manto, regou-os bem regados: - “Se comeram bem, agora bebam melhor!..” E não se pejava de masturbar-se em público, lançando esta curiosa jaculatória: - “Prouvera aos deuses que bastasse despejar assim a barriga para acabar com a fome!” A ele bastavam-lhe azeitonas, figos secos e tremoços; carne crua também marchava, mas parece terá sido a única coisa cuja repugnância não conseguiu vencer de todo.

Candidatos a discípulos eram muitos, mas poucos perseveraram. Um, que repetidamente dizia querer segui-lo e escutá-lo, foi convidado a seguir o mestre com um carapau na boca, apertado entre os lábios; pois não demorou muito a sair vencido das troças e da vergonha: deixou cair o carapau da boca e foi-se embora. Comentou Diógenes, com tristeza: - “Vede como basta um carapau para cortar uma relação e fazer fugir um homem!” Como carapaus não faltavam, por isso é que Diógenes andava de lanterna em pleno dia a ver se pescava um homem. E levou a rebusca até aos bordéis da cidade. Quando lhe fizeram reparo destas incursões, respondeu que a luz do sol também ilumina as latrinas… e não se suja. Em conclusão, disse que em Atenas só tinha encontrado mulheres.

Os discípulos não lhe impediram a mendicidade nem a escravatura. Já entrado em anos, indo de barco para Egina, sofreu a abordagem de piratas, que o aprisionaram e puseram à venda no mercado. Perguntaram-lhe o que sabia ele fazer: - “Comandar!” E, voltando-se para o pregoeiro: -“Grita bem alto se alguém quer comprar um mestre!” Um homem rico de Corinto comprou-o, e não fez nada mau negócio, tão bem o Cão lhe amestrou os filhos e guardou a casa. Amigos solícitos quiseram comprar-lhe a liberdade, mas levaram como reposta: - “Os leões não são escravos dos que os alimentam.” Mesmo se demoram onde curtas vistas vêem grades e jaulas. Argumentavam os amigos que ele se fazia velho e precisava de descansar… Ouviram-no pela última vez: - “Correndo no estádio, parece-vos que os melhores atletas, vendo a meta próxima, param, ou não será que se lançam com todas as forças para a meta?” Aos cerca de 90 anos de idade, o escravo-atleta da liberdade cortou a meta. Conta-se que empregou as últimas forças em suspender a respiração até se fazer parar o coração…