sábado, dezembro 29, 2007

L’ ESPOIR MAINTENANT



Falando aqui de uma das mais inúteis e mais úteis actividades em que os humanos podemos melhormente empregar o tempo dos ócios e negócios da nossa existência neste mundo – refiro-me àquela que nomeamos com o nome grego "filosofia" -, quis dedicar uns postais a alguns daqueles que, na tradição filosófica ocidental, preferiram ao ditado escrito do pensamento a acção directa sobre si mesmos e o meio, dando o corpo em manifesto vivo do pensamento. Sem medos nem vergonhas.

Conto entre estes o francês Jean-Paul Sartre. Mas o que me interessa não é quem iludia barreiras da polícia escondido num camião, para ir discursar aos operários grevistas numa fábrica; nem o ardina que à esquina da rua distribuía o La Cause du Peuple a defender a ditadura do proletariado e o terrorismo sobre os patrões. O que me interessa é o homem que, aos 75 anos de idade, achacado e cego, sobre a obra por ele feita e o ídolo dele feito pelos outros, - era capaz duma distanciada e lúcida revisão crítica, cheia de honesta franqueza, e temperada duma auto-ironia que chega a ser demolidora. Como se estivesse pronto a recomeçar, a empreender uma nova e diferente aventura do pensamento. Como se fora um jovem, com uma inteira vida diante si.

Refiro-me à grande conversa que teve com o seu secretário pessoal, Benny Lévy, publicada em três números sucessivos da revista Le Nouvel Observateur (de 10, 17 e 24 de Março de 1980), com o título que encima este postal. Salientava-se um dos pontos surpreendentes da conversa: o filósofo da decepção, da náusea e da paixão inútil encontrava agora motivos de esperança. Poucas semanas após, viria a deixar de poder falar mais com o secretário e connosco.

Dá-me a mim um bom título para fechar a porta na cara deste 2007, e dou aos leitores, com a tradução em comentário anexo, um pequeno trecho da primeira parte da entrevista. Vê-se que este Sartre também empunhou a lanterna de Diógenes:

« Je veux dire que ça pourrait se démontrer ce qu’est un homme. D’abord, tu le sais, pour moi, il n’ y a pas d’essence a priori, donc ce qu’est un homme n’ est pas encore établi. Nous ne sommes pas des hommes complets. Nous sommes des êtres qui nos débattons pour arriver a des rapports humains et à une définition de l’ homme. Nous sommes en pleine bataille en ce moment, et ça durera sans doute des nombreuses années. Mais il faut définir cette bataille: nous cherchons à vivre ensemble, comme des hommes, et à être des hommes. Donc c’est par la recherche de cette définition et de cette action qui serait proprement humaine, par-delà l’humanisme bien sûr, que nous pourrons considérer notre effort à notre fin. Autrement dit, notre fin c’est d’arriver à un veritable corps constitué où chaque personne serait un home et où les collectivités seraient également humaines. »



(Agradeço os goivos à sugestão amável da sofisticada florista Miss Sheila Pickles, que os considera penhor de fidelidade no infortúnio.)

domingo, dezembro 23, 2007

NATAL


Coimbra, 25 de Dezembro de 1985



Nem pareces o mesmo, Deus menino
Exposto
Num presépio de gesso!
E nunca foi tão santa no teu rosto
Esta paz que me dás e não mereço.


É fingida também a neve
Que te gela a nudez.
Mas gosto dela assim,
A ser tão branca em mim
Pela primeira vez.



Miguel Torga

In Diário, XIV

sexta-feira, dezembro 21, 2007

MIGUEL TORGA (1907-1995)




Muito grande é Portugal quando o nosso amor o quer todo dentro dos olhos!
Diário,
XIII


Tinha áquila visão quem o viu, coração à altura, e passada larga para o correr todo de canto em canto: Escalar montanhas abruptas ou rasgar horizontes infindos foi sempre o grande afã da minha vida. Aproximar a alma do céu e calcar a sombra do corpo na terra.

Andador e monteiro infatigável, ainda gozou do tempo em que a Natureza dava a um caçador-poeta versos com perdizes. E muita vez quis-se fixado em fotografia ou filme assentado em rocha, e legendado assim, em 1942, das cumeeiras do Açor e Lousã:

Aqui estou, no alto desta serra desolada, sentado a contemplar um largo horizonte, enquanto o cão abana o rabo, um tanto perplexo dum descanso com perdizes à vista. (…) Devo à paisagem as poucas alegrias que tive na vida. Os homens só me deram tristezas. (…) Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria em meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno.

Cinquenta e um anos depois, no dilecto escritório seu de Chaves, quando já a doença ameaçava imobilizar de vez a montezinha cabra manca, e imparável (cabra manca eu sou e, como diz o povo, cabra manca não tem sesta…), o mesmo assento:

Num molho, mas cheguei. O que me vale é saber Portugal de cor tão bem sabido que, mesmo a atravessá-lo ofegante e mareado, o vejo sempre inédito e deslumbrador como da primeira vez.

Assente na rocha a sombra do corpo, ele próprio afirmava-se fixando versos, como estes ao seu...



DOIRO

Corre, caudal sagrado
Na dura gratidão dos homens e dos montes!
Vem de longe e vai longe a tua inquietação…
Corre, magoado,
De cachão em cachão,
A refractar olímpicos socalcos
De doçura
Quente.
E deixa na paisagem calcinada
A imagem desenhada
Dum verso de frescura
Penitente
.

Gozou-se ainda do tempo em que as águas sem barragens corriam de cachão em cachão. E não naufragou o penitente remontando a barca da poesia à sirga de verso até Barca d’Alva, onde em boa companhia pôde colher estas…


PÉTALAS

Infantil e alada,
A brisa do teu espanto
Salta de monte em monte
E roça-me o ouvido:
- Que maravilha é esta?

-É o meu berço florido;
O duro chão da minha terra em festa
!


Um ramalhete de pétalas de torga silvestre, depostas sobre a terra fecunda que cobria o duro chão de rocha.

(Mas de mor espanto e maravilha, aos vindouros sem terra nem mãe, há-de ser só a brisa que implante em canteiros corações de betão armado de tédio, em vez de fleurs du mal, tais flores do bem…)





terça-feira, dezembro 18, 2007

Local shop for local people

Nada mais me surpreendeu este fim de semana que o anúncio dum proprietário dum restaurante, do qual vou omitir o nome para lá poder continuar a comer descansado, que teria que deixar de poder ter vinho caseiro, isto porque a ASAE o ameaçou de lhe selar as pipas ou barricas ou, ainda, tonéis, como gosta o Alexandre.
Depois do encerramento da Ginjinha do Rossio, primeira machadada na cultura nacional, vai-se agora correr o pano sobre essa instituição nacional que se chama o vinho caseiro. O fim do vinho caseiro, depois do fim da galinha caseira, etc., é, não tenho qualquer dúvida, o fim da grande instituição cultural portuguesa e a esta se irão seguir, inevitavelmente, com o concurso do tempo e da ASAE, o fim das tascas. Já imaginaram o fim do pastel, ou bolo à moda do Porto, de bacalhau, do peixinho da horta, do jaquinzinho, da patanisca, etc. Uma verdadeira catástrofe nacional.
Tendo tudo isto em conta e atendendo ao facto da ASAE, seguramente, seguir normas europeias que nos conduzirão todos às pocilgas do MacDonald ou outras porcarias semelhantes, lanço uma campanha nacional (não sei porquê estou nesta das campanhas) para que as tascas sejam mantidas debaixo do lema: Local shop for local people. E da minha parte, num esforço ingente para a manutenção desses edifícios idiossincráticos da cultura nacional, contribuo com a tradução seguinte em vernáculo: Lojas regionais só para patrícios.

segunda-feira, dezembro 17, 2007

JÓIAS DE ALCÁCER


A Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos do concelho de Alcácer do Sal tem vindo a realizar certames de artesanato a que podem concorrer os seus associados e outros. O último foi dedicado a bonecos antigos, e requeria-se que a concepção, materiais e manufactura obedecessem aos métodos tradicionais. Os bonecos podiam ser de fantasia ou representar figuras e trajes típicos locais. Venceram duas senhoras, que gastaram na respectiva confecção uns bons meses de trabalho cuidado e dedicado. A venda dos produtos vai contribuir para o mealheiro destinado a aumentar de 20 para 45 camas a capacidade do respectivo lar de idosos. O que não se vender vai aumentar o pecúlio do Museu Etnográfico, que se tem vindo a constituir nas actuais instalações da Associação, e que já mostra ao público curioso e maravilhado um magnífico acervo de peças, umas salvas da destruição, outras feitas uma derradeira vez pelas mãos sábias que tantas vezes os fizeram outrora.

Está bem empregue o tempo destes velhos, que vão deixar pública herança e cabal demonstração aos vindouros das superiores Belas Artes de que são capazes as pessoas anónimas que fazem nobre e notável este nome único: Povo Português. E foi tão bem empregue o tempo, que uma das vencedoras, revendo-se na boneca vestida de camponesa, que lhe saiu tão bem, decerto a mais bonita que alguma vez teve… não a quis pôr à venda nem separar-se dela.

Neste tempo de prendas, o leitor amigo, quando passar na avenida principal de Alcácer, junto aos Bombeiros Voluntários, entre na Associação a ver o Museu e as prendas admiráveis que nos podem trazer a idade, a experiência e a arte de bem fazer bem.

sexta-feira, dezembro 14, 2007

DO TONEL AO POÇO


Olhemos outra vez para o interior do tonel: não está mais escuro lá dentro do que na praça pública onde Diógenes andava de lanterna acesa. E que vemos? A “Grande Mãe”?... Aquela a quem o efésio Heraclito tinha entregue o livro dos apotegmas obscuros?... O que eu vejo agora é um grande pai: como se fosse um poço fundo, no tonel ecoa o nome daquele que todas as “histórias da Filosofia” consideram o primeiro, o patriarca, geralmente famoso e estimado como um dos “sete sábios da Grécia” - Tales de Mileto. Era um homem capaz de mudar o curso dos rios, medir a altura das pirâmides e das estrelas, encomendar eclipses do Sol que punham termo a conflitos bélicos e… de especular negócios com lagares de azeite. Foi ele, segundo Aristóteles, daqueles “primeiros filósofos que consideraram formas de matéria como os únicos princípios de todas as coisas”; terá sido mesmo “o iniciador de tal filosofia”, a que o Estagirita chama dos “physiologoi”. Era pois um estudioso da physis, da natureza das coisas que compõem o cosmos, e terá considerado que essa forma material primigénita, substancial e subsistente da “natureza” seria a água…

Interessa-me aqui mais o poço. Olhando melhor, vê-se que também este sábio não menosprezava a companhia feminina. Diz-nos o eco: “Certa noite, Tales, enquanto olhava para cima, para os astros, caiu num poço. E conta-se que uma guapa e jovem criada da Trácia troçou dele, pelo ardor de conhecer as coisas celestes sem se dar conta do que tem diante si aos pés.” E acrescenta Platão ao conto: isto é uma “graça” que “serve para todos os que se dedicam à filosofia”, e que “têm apenas o corpo na cidade” mas cujo espírito viaja pelas extensões astrais ou (citando aqui um verso de Píndaro) vai “até às profundezas da terra”. O historiador Diógenes Laércio, refere o episódio, com pequenas diferenças menos lisonjeiras para o nosso cientista distraído. Em vez de uma jovem temos uma “velha”. Mais vivida, portanto; e mais sabida daquela sabedoria nocturna que se desfiava ao lume da lareira enquanto se fiavam as estrigas. (No séc. XV a primeira recolha de provérbios ibéricos, do Marquês de Santillana, será intitulada Refranes que dicen las viejas tras el fuego.) Sabiam e podiam muitas coisas, essas velhas, às vezes temidas e perseguidas como “bruxas”. E o Tales viu-se avelhacado por um velho cepticismo: - “Como é que tu queres conhecer o que está longe se não dás por o que tens ao pé?...”

Em honra do sábio, lembrarei que a tradição doxográfica atribui ao milésio uma série de ditos significativos de que ao “fisiólogo” não importava apenas a água, a altura das pirâmides, a composição da magnetite, os feixes de paralelas cortadas por rectas transversais ou outros problemas capazes de nos baldarem aos poços. Aforismos como os seguintes, em que o leitor logo reconhecerá a forma proverbial duma bem conservada sabedoria velha e o conteúdo de alguns que por cá a nossa tradição portuguesa conservou quase literalmente:

- As belas acções não carecem de belas palavras.
- Não deva a tua riqueza nada à justiça.
- Como tratares teus pais assim serás tratado por teus filhos.
- Difícil é cada um conhecer-se a si.
- Aprende e ensina apenas o bem.
- Mais vale ser invejado que compadecido
.
- Sê comedido.
- Se queres governar, começa por mandar em ti
.

Ao estudioso do magnetismo natural não terá faltado a lanterna de diogénio, se em seu nocturno passeio foi capaz de ir “até às profundezas da terra”, e tirar diamantinas respostas como esta que deu em certo lance:
« Defendeu que a vida nada tem de preferível à morte. E perguntaram-lhe: - “Então, por que não te entregas à morte ?” – “Porque não há diferença.” » E assim sendo, eu aposto que o tal poço de Tales foi também esse de onde bebemos a proverbial expressão “poço de sabedoria”.

sexta-feira, dezembro 07, 2007

A LIÇÃO DO CÃO ( I )


O leitor tem dúvida de que o Cão precisa de açaime?...

Suponha uma sociedade em que a maioria dos indivíduos era da raça do nosso Diógenes, que “opunha uma impassível segurança aos acasos da sorte”. E agora pergunte-se para onde iria a segurança das tão prósperas companhias de seguros…

Ou como seria uma sociedade em que todos a todo o momento tivessem relações sexuais com quem quisessem e os filhos de todos fossem tratados como de cada um? E não é tão interessante que as experiências históricas conhecidas que o tentaram acabassem mal sucedidas?

Nem preciso lembrar os extravagantes menus carnívoros…

Será que esta “atitude crítica” do filósofo de Sinope punha a sociabilidade humana numa “situação crítica”?... Situação insustentável e, por isso, logo abandonada ou corrigida por uma como “selecção natural”?... Que respondam os “filósofos de sofá” (armchair philosophers), sempre assentando que a “filosofia” é “atitude crítica” acomodada a esmoer argumentos e contra-argumentos de digestão livresca.

Dizia-se de Diógenes que ele “opunha às leis a natureza”. Ora, sejam as “leis”, aqui, o complexo aparato de todas as normas sociais e jurídicas com que as sociedades humanas vão procurando suster e sustentar a interacção dos indivíduos e a sua adaptação ao meio natural. Suponha-se, por outro lado, que a “natureza” da grande maioria dos indivíduos não tem as capacidades de um Diógenes – também capaz de “opor ao sofrimento a razão” -, ao invés se perde facilmente da razão no sofrimento e arrasta para este o semelhante. A lição do Cão seria, pois, a de um exemplar anómalo, incompatível com uma maioria incapaz de a compreender e aplicar? Mas, como explicar a existência e persistência de tais anómalos, desviantes até à marginalização e exclusão social? Não há que procurar um genezinho cínico, mas a resposta à questão: dar-se-ia o caso de estes cães farejarem e serem guardadores fiéis de outras possibilidades – efectivas possibilidades – da “natureza” humana se representar no teatro do mundo?...

Um mundo maravilhoso, onde os monstros podem ser belos príncipes; onde mendigos não avarentos podem ser mais ricos que banqueiros (e os banqueiros mendigos); ou como quem diz: poder um vagamundo andrajoso e sujo, sem eira nem beira, vivendo do dia a dia, ser mais que um gracioso filho querido de Atena... – um deus disfarçado!...



[ Vinha rosnador o molosso, do canil de Roy Lichtenstein (1923-1997), antes de ter provado aqui do Tonel… ]

A LIÇÃO DO CÃO ( II )



Assim falando, Atena tocou-lhe com a sua vara:
Engelhou a linda pele sobre os membros musculosos
da cabeça destruiu os loiros cabelos; em todo o corpo
lhe pôs a pele de um ancião já muito idoso.
Obnubilou-lhe os olhos, outrora tão belos,
vestiu-o com outras roupas vis, esfarrapadas,
E uma túnica rasgada, imunda, negra de sujo fumo.
Pôs-lhe sobre os ombros a pele esfolada do veado veloz,
deu-lhe um bastão e um alforge miserável,
cheio de buracos e suspenso numa correia torcida


(Homero, Od. XIII, 429-438. Trad. Port. Frederico Lourenço)


Ulisses não deixou de ser o polymechanos, de continuar perito em esquemas de desenrascanço. Quanto à divina vara, o leitor lembra-se de já a termos visto… nas mãos de Antístenes; e passou a Diógenes, não ao rei Alexandre. Mas há quem não veja senão um nodoso varapau, anedotas e carapaus. Por isso, correndo o risco de maçar com repetições o que já nas linhas e entrelinhas dos postais anteriores ficou sugerido, permito-me insistir no seguinte.

Uma lição a tirar é a de que um válido, robusto e convincente “argumento” filosófico pode ser, mais que outro qualquer, uma boa história: uma encenação bem formada para informar a visão e o ouvido atentos e disponíveis do espectador com entendida ideia de o que conta e pesa mais na “realidade” da existência humana no teatro do mundo. Já lembrei aqui a associação de Sócrates a Eurípides e Esopo; lembro agora o quanto valorizou Platão as histórias dos “antigos”. Seguiam nisto a lição (ambígua) do grande Parménides. Mas estou em que os nossos filósofos caninos faziam mais e melhor: ou a toque de Atena ou com o patrocínio de Héracles, eram eles próprios os originais criadores, encenadores e actores do argumento que era todo o seu estilo de vida.

Outra lição supõe respondida a seguinte pergunta: - que espécie de experiência seria essa, capaz de transformar um banqueiro em um mendigo? Ora aqui, ai de mim!, tenho pena e vergonha de confessar ao leitor amigo que bati com o nariz numa porta… cinicamente fechada. “Reservado o direito de admissão”… a quem tiver a dita de encontrar e conviver pessoalmente com quem já lá está dentro e é senhor da casa. Nesta porta fechada temos as limitações das histórias de que não somos personagens intervenientes: indicam ao espectador um caminho, mas depois, se queremos mais, temos de ser nós próprios a entrar em cena. Ou podemos continuar a conversar agradavelmente no foyer dizendo, por exemplo, que o Alexandre Magno terá ido às florestas de Bengala incomodar o sadhu pacificamente sentado no dorso dum tigre, quando tinha ali à mão na Grécia outros capazes de dominarem os nervos do parassimpático a ponto de se fazerem parar o coração. E podíamos, daquela instrução do Gita, em que um deus explicita os motivos por que o guerreiro Arjuna, pungido de escrúpulos e antecipados remorsos, deve acometer rijo numa guerra fratricida, - chegar à mesma impassível e transcendente serenidade que seria precisa a um grego (ou a qualquer de nós) para comer a carne de familiares recém-falecidos, conforme o lembrado costume dos calacianos.

Podíamos chegar, disse? Podiam chegar aqueles que, “seguindo a natureza”, entravam calmamente sozinhos e nus por uma floresta adentro, a entenderem-se olhos nos olhos com tigres. Isto é uma porta trancada para nós: os tigres estão em extinção, como a nossa dominadora vontade, transferida para máquinas e trabalhos noutros domínios. Sobra apenas o medo? Então seriam domínios em que somos nós os servos. Felizmente, sobra-nos mais e melhor. As ironias da história contam que Diógenes morreu exactamente no mesmo ano do imperador Alexandre. Contemos nós com isto: pouco mais de três séculos depois, outra porta se abriu. Por um caminho estreito, trata-se de uma porta estreita

Mas ainda permanece aberta.

quarta-feira, dezembro 05, 2007

Eu é que sou burro?

Eu cá não sou muito de futebóis. Mas também não o hostilizo e ele em paga também não me hostiliza a mim. A falar é que a gente se entende!
No entanto, hoje, embora com alguma disfunção temporal, tenho de manifestar a minha admiração ao treinador brasileiro, e eu não tenho grande simpatia pelos brasucas (embora tenha uma cunhada dessa nacionalidade), que pela segunda vez seguida chamou asnos a essa espécie, ou melhor subespécie, de escrevinhadores desportivos. O homem, depois deste tempo todo, ainda se há-de estar a rir e eu com ele.
De facto, os jornalistas desportivos, mais ainda, se for possível (neste caso, por incrível que pareça, ainda é), que os seus congéneres não desportivos, são umas (ia tendo um lapsus linguae - perdoem alguma incorrecção que o meu aprendizado de latim foi bebido no pirata do Astérix - mas depois sou processado e por isso não digo), perdão, são uns…“eu é que sou burro?”.
Se querem saber a verdade procurei arduamente um adjectivo que me pudesse servir e só conseguia voltar aquilo que os vossos olhos acabaram de ver.
Desde já lanço aqui a campanha, em subscrições, para o prémio Scolari para premiar o jornalista desportivo, com o tempo pode-se alargar a outras subespécies a láurea, que se revelar como aquele que, de forma indubitável, o merece.

domingo, dezembro 02, 2007

Língua e cidadania (I)

O número 21 da revista online Proformar é dedicada ao Português ensinado como língua não materna (ver). Esta é uma área que me tem interessado mais na sua vertente cívica do que na perspectiva linguística ou didáctica.
A perspectiva cívica reside em acreditar na importância do Português Língua Não Materna porque é fundamental que um cidadão imigrante domine o idioma português para se integrar na nossa comunidade e para exercer a cidadania de forma satisfatória. É que, como defendo no artigo que escrevi para este número da Proformar, se a língua é um factor fundamental para a integração social, ela pode ser também um factor de discriminação - um cidadão imigrante que não a dominar, verá diariamente os seus direitos serem agredidos ou diminuídos. Bom, mas aí a culpa é da estupidez humana e não da própria língua.