quarta-feira, janeiro 30, 2008

“Coimbra, 30 de Janeiro de 1951”

« Há dias em que concebo a humanidade inteira a escrever um diário como este, mais sincero ainda e secreto. Cada indivíduo, no recato da noite, a dar expressão consciente à sua vida, depois de ter passado o dia a dar expressão inconsciente à sua morte. Uma humanidade que deixasse o seu testemunho autêntico nas gavetas da secretária, já que não pode mostrar-se à luz do sol tal como é. Desabafos de menina contrariada no seu amor? Timidez de Amiel? Tudo isso, mas também a preservação duma consciência que torce mas não quebra, que persiste, que insiste, e que apesar de tudo tem esperança, porque não há palavra que se escreva sem esperança. »

Miguel Torga, Diário, vol. V.

segunda-feira, janeiro 28, 2008

INSOLITO Chamada Impossivel do INEM para Bombeiros

Agora sim! Fico sinceramente preocupado com o amadorismo e a letargia dos bombeiros voluntários do país.

Admiro genuinamente aqueles que se dispõem a ser bombeiros voluntários porque o Estado foge às suas responsabilidades. Mas a falta de competência e de responsabilidades assustam.

Quem quiser ver uma paródia a este vídeo, vá a: http://videos.sapo.pt/Jqim3j5WTIg9lCb2lpf4

Verão que a caricatura é menos caricatural que o original.

domingo, janeiro 27, 2008

Ainda sobre os ataques à ASAE (nótula)

Desta vez foi o PSD a atacar a acção da ASAE. Mendes Bota veio comparar este organismo de fiscalização do Estado, que zela pelo cumprimento da lei e pelos interesses dos consumidores (melhor, de toda a população), à PIDE de Salazar. Para o social-democrata algarvio, a ASAE é a PIDE do Portugal democrático. Em seguida, comentando este comentador, Filipe Menezes mitigou a afirmação, mas sempre deixou sair que a ASAE se comportava com o FBI.
Prometi que escrevia uma nótula; e uma nótula será. As palavras de Bota comentam-se a si próprias - sobre os termos deste demagogo provinciano nem me pronuncio. Avanço para Menezes: então o dirigente máximo do maior partido da oposição, o aspirante a Primeiro Ministro do país, não percebe que atacar um organismo fiscalizador do Estado é dar um sinal a quem pensa de que não poderá ser um competente defensor dos interesses dos portugueses? Quero acreditar que, com este gesto, Menezes não procurou minar a necessária autoridade do Estado mas apenas pretendeu esboçar um gesto popularucho - está na moda atacar a ASAE. Semelhante acto tinha já sido empreendido esta semana pelo PP, como comentei neste blogue.
Só uma curiosidade, uma ironia à portuguesa: quando a ASAE fechou os restaurantes chineses (que não serão menos higiénicos que muitas tascas, cafés e restaurantes lusitanos) recebeu o aplauso dos portugueses (sobretudo, dos consciente e subconscientemente xenófobos e racistas). Agora, os bestiais passaram a bestas.

sábado, janeiro 26, 2008

Robert Southey


Robert Southey (1774-1843) foi um polígrafo romântico inglês: poeta, historiador, articulista, biógrafo, etc. Ao longo da sua vida, visitou duas vezes Portugal: em 1795 e em 1800-1801. Das duas estadias resultaram cartas e diários de viagem com observações sobre os costumes dos portugueses, a situação política e social do reino, a cultura e a história lusitana. Em Inglaterra, Southey continuou a cultivar o seu interesse por Portugal e pelo Brasil. Publicou uma monumental História do Brasil e embarcou no projecto de escrever uma História de Portugal, que não concluiu. No post que se segue, apresento uma tradução de uma nota sobre a língua portuguesa. À luz dos conceitos e teorias linguísticas dos nossos dias, as afirmações de Southey estão pejadas de noções erradas, imprecisões e são marcadas pela falta de cientifismo. Pouco importa para este contexto. O excerto foi retirado de Southey's Common-place book, uma colectânea de notas e apontamentos compilada pelo genro, John W. Warter. O excerto vale pela elegância do estilo, pela subtileza e o humor das observações, pela forma como o inglês vê o Outro e por outros aspectos.

Indicação bibliográfica do texto que se encontra no post seguinte:
Southey, Robert, Southey's Common-place book. Second series. Special collections, vol. II, ed. John W. Warter, 2ª ed., Londres, Longman, Brown, Green, and Longmans, 1850, pp. 257-8 [ed. Original de 1849].

"Sobre a Língua Portuguesa", de Robert Southey

«Os Latinistas [que estudam a língua portuguesa] condenam os superlativos como bonissimo, malissimo, grandissimo, humildissimo e insistem em defender o uso de anomalias como optimo, pessimo, maximo, humilissimo, &c. Esta forma de encarar a língua, julgando o português pela sua analogia com o latim, acaba por resultar numa forma de corrupção do idioma. António das Neves Pereira observa: “Esta gente não se contenta com o facto de a língua portuguesa, como filha do latim, ter a carne e o esqueleto da sua progenitora, exigindo também a sua pele, a sua compleição e os demais traços.” “Sendo esta uma língua de palavras graves e sérias”, continua Neves Pereira, “seria mais digna para ser usada num convento cartuchinho do que para se misturar com os negócios e as conversas mundanas.”

Os puristas excomungam certas palavras como por capricho.

As lisonjas extravagantes que os autores portugueses esbanjam reciprocamente, desiludem o leitor e enojam e arruínam o elogiado.

[…] Enquanto língua, o português é um idioma com uma distribuição proporcionada de vogais e consoantes – ou seja, tem os ossos necessários para ter solidez, não sendo apenas ossos como o alemão.

Esta filha mais velha do latim foi a serva dos godos e a escrava dos mouros.

Reina uma moda na língua. A escolha de expressões dos melhores autores do português foi macaqueada [aped em inglês] pela, e acaba por influenciar a, oralidade. Desta forma, tais expressões tornaram-se cansativas e banais. Aqueles que não conseguiam montar Pegasus socorreram-se desta sela, sujaram-na e usaram-na até ficar gasta e em farrapos.

A moda das palavras francesas condenou alguns dos termos vernáculos ao desuso. Os fantoches da altura passaram a apelidar as palavras legítimas dos velhos autores, as “cisternas impolutas” da língua portuguesa, com epítetos como góticas, ferrugentas e obsoletas. Para os jovens compreenderem a sua língua mãe, é-lhes mais útil um dicionário de Francês do que um de Português. Tal facto é responsável por alterações na construção da frase. A estrutura da língua assenta na sintaxe invertida, que, não sendo confusa e difícil, confere a sua variedade, enquanto o francês possui uma fraseologia linear. Como resultado, as traduções têm empobrecido e aviltado o português.

A História da língua portuguesa divide-se em três épocas:
1. Desde a fundação da monarquia até Afonso V: quatro séculos.
2. Daí até Sebastião.
3. De então até ao presente.»

quinta-feira, janeiro 24, 2008

O "PESSIMISMO NACIONAL" ( 4 ) : TERAPÊUTICA


No seu último artigo de Janeiro de 1908 para O Norte, assere Manuel Laranjeira que “o nosso pessimismo quer dizer apenas isto: que em Portugal existe um povo em que há, devorada por uma polilha parasitária e dirigente, uma maioria que sofre porque a não educam, e uma minoria que sofre porque a maioria não é educada.”

Ainda se não provou que a “raça portuguesa” é “incapaz de adaptar-se à vida moderna”: Ora, “educar é adaptar”. Portanto, sublinho eu, “submeta-se [sic] este desgraçado povo, criminosamente desprezado e levianamente caluniado, à prova decisiva: eduquem-no, intensivamente, tenazmente, sem desfalecimento, e vê-lo-ão florescer e progredir como os povos cheios de saúde. (…) Pois que queriam que fizesse um povo que nem sequer sabe ler? (…) Ninguém lhe ensinou os seus direitos e os seus deveres. Ele dos direitos do Homem tem apenas a noção secular, tradicional – obedecer. Os seus direitos de cidadão livre? Mas como querem que ele os defenda, se nem sequer sabe que eles existem?...”

Para Laranjeira, “é preciso avançar desde o princípio”; “é preciso refazer tudo, refundir a sociedade portuguesa de baixo a cima, incansavelmente…”; é preciso recuperar o tempo perdido desde 1820, quando nos chegara “a rajada transformadora de redenção humana” que nos “soprou de França” o “espírito novo (que) demolia as velhas sociedades” e “inaugurar a era dos Direitos do Homem.” Teria sido preciso desde esse ano “reconstituir desde os alicerces sociedades novas”, mas, em vez disso, “a polilha daninha e parasitária começara a sua obra de devastação.” Por isso, “contar a história da enfermidade nacional seria contar a história do nosso constitucionalismo.”

A “Educação”… Tal a terapêutica do nosso médico, que o leitor paciente já teria adivinhado, de ouvir a tantos, antes e depois de Laranjeira, invocar essa musa. Escrevia o médico republicano num diário republicano a menos de três semanas do Regicídio que poria termo aos “dias terríveis” da ditadura franquista. Dois anos depois seria a vez de outra “quadrilha messiânica”, a qual se propunha “republicanizar o país”, nas palavras de um dos seus mais renomados pedagogos: João de Barros. E meteram mãos à obra logo dez dias depois da revolução do 5 de Outubro de 1910, não sem a 8 começarem por proibir o ensino público aos membros das “associações religiosas”. No dia 15, saía um decreto do Governo provisório a nomear uma comissão para elaborar um projecto de regulamento para a “instrução militar preparatória” das crianças, a partir dos 7 anos de idade, onde se dizia: “convém incentivar e radicar nos ânimos o espírito militar desde a primeira adolescência”… Desta comissão fazia parte o mesmo João de Barros. Grande novidade revolucionária? Era a reposição dos “batalhões escolares” que tinham sido criados por iniciativa do ministro Elias Garcia em 1881, para as crianças da instrução primária, as quais, na véspera de Natal de 82, tinham garbosamente desfilado no Arsenal de Marinha, fardadas e de espingarda ao ombro…

O leitor lembra-se:”começar de baixo a cima”… “refazer tudo”… E o “desgraçado povo” tinha de “submeter-se”…



[ Na imagem La Muse au Lever du Soleil, de Alphonse Osbert (1857-1939) ]


quarta-feira, janeiro 23, 2008

Afinal o mundo é uma grande ópera!

Desta vez, remetendo-me ao silêncio dos culpados, apenas assevero: isto é um roubo.
"Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prémios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu génio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal género de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros – e acaso para reconciliar-se com o céu –, compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
- Senhor, não desaprendi as lições recebidas – disse-lhe –. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e, se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés…
- Não – retorquiu o Senhor –, não quero ouvir nada.
- Mas, Senhor…
- Nada! Nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
- Ouvi agora alguns ensaios!
- Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto, estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa, dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muitas vezes o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa achar obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama."

terça-feira, janeiro 22, 2008

“Coimbra, 22 de Janeiro de 1962”

« Sim, temos paz social. A paz dum sepulcro do tamanho da pátria. »


Miguel Torga, Diário, vol. IX.

sábado, janeiro 19, 2008

"Coimbra, 19 de Janeiro de 1950"

«É difícil, mas é preciso ter a coragem de ficar só. Uma voz chega para enfrentar o mundo e ter razão. A morte está sozinha contra a vida inteira, e é verdade.»


Miguel Torga, Diário, vol. V

quinta-feira, janeiro 17, 2008

O “PESSIMISMO NACIONAL” ( 3) : COMPLICAÇÕES





“Não há coesão cívica “ na sociedade portuguesa, para o médico e escritor Manuel Laranjeira: “não existe essa coordenação colectiva que imprime aos aglomerados nacionais, que se chamam povos e nações, essa harmonia, essa unidade que os caracteriza como indivíduos e os impõe como verdadeiros organismos autónomos, de ordem superior, mercê da sua complexidade estrutural.” De aí a “desagregação da alma nacional”.

O autor pressupõe e não duvida da analogia entre a vida de um indivíduo e a das nações. “A vida duma nação não é uma ficção política, não é uma mentira convencional, para dividir povos. Existe, é uma realidade patente, como é uma realidade a vida de um homem, apesar de formado pelo um agregado de uma infinidade de vidas elementares. Como é uma realidade a vida dum enxame de abelhas, por exemplo.” Mas, entre nós, é diminuto o “espírito de colmeia, o instinto de conservação colectiva dominando e disciplinando o instinto de conservação individual”; por isso fica “o sentimento do interesse nacional abafado na confusão caótica dos sentimentos do interesse individual.” E prossegue logo depois:

“Em Portugal não existe o egoísmo da nação vencendo e disciplinando o egoísmo de cada português. A nossa vida política, económica e moral não tem sido senão uma série lastimosa de actos de egoísmo individual, impondo-se despoticamente ao egoísmo colectivo, ao interesse da nação e subjugando-o.” Com este parágrafo o autor parece estar a responder à questão que lhe tínhamos posto no postal anterior: afinal não terá havido nenhum período excepcional de “equilíbrio”, que fosse mister “restabelecer”: parece que “a nossa vida não tem sido senão…” E se, como viria a dizer o Poeta, “as nações todas são mistérios”, mais misteriosa fica sendo a vida da nossa portuguesa, tão cedo politicamente organizada em estado independente, e “que não tem sido senão…” Ao nosso autor não ocorreu nesse momento, talvez sob a pressão e indignação a respeito da ditadura de João Franco, questionar se esses actos individuais serão sempre “imposições despóticas” que “subjugam o interesse da nação”; ou se não podem ocasionalmente ser, ao invés, episódicas coincidências felizes do interesse individual e colectivo. Laranjeira tem sobre esta hipótese uma desagradada prevenção: “um dos aspectos mais típicos da vida portuguesa e um dos seus males mais funestos é a sua prodigiosa fertilidade messiânica.” Este mal deixa a nossa vida social à mercê de indivíduos e “quadrilhas messiânicas” que atacam o “corpo da nação”, como se fossem uma “polilha”, uma traça roaz a devorar os tecidos e órgãos do organismo nacional.

De passagem, numa penada de adjectivos, o autor não deixa de também intrometer a processo o grande bode pombalino e dos intelectuais conferencistas do Casino: a “influência corruptora e secular da educação jesuítica, sinistra e deprimente.” Enfim, não chega a ser uma complicação o outro membro da alternativa que tinha posto em tese: mais do que uma “psicose passageira”, não será o nosso mal-estar uma “fatalidade mórbida, originária, de natureza degenerativa”, uma “tendência irreprimível, progressivamente crescente para a dissolução”; não seria uma “verdadeira degenerescência psíquica colectiva” e não estaria “o povo português biologicamente condenado”? Para o médico Laranjeira, as degenerescências sucedem por infertilidade ou inadaptabilidade; ora, “são o cérebro e o braço português completamente estéreis”? Será a “raça portuguesa uma raça inadaptável”? Não só isso não está demonstrado como, pelo contrário, a “pasmosa resistência deste desgraçado povo” às penosas condições duma existência agravada pela “polilha parasitária e dirigente” aí está sugerindo “a medida exacta do inesgotável cabedal que existe no organismo português.”

Veremos no próximo postal qual é a terapêutica com que o médico português quer fazer passar de todo a “passageira psicose” portuguesa.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

A promoção da "queixinhice" como acto demagógico

Depois de várias semanas de abstemia, volto ao tonel para provar o licor de Diógenes. Será só para uma bebida curta. Mas fica prometida uma noite de copos e uma carraspana valente... quero dizer, fica prometida uma colaboração mais regular.

Regresso para falar da direita portuguesa; melhor dito, da única direita partidária nacional. Refiro-me ao PP, pues entonces. Quando vê que o seu partido está a ser esquecido pelas televisões, Paulo Portas recorre aos lances de popularismo barato e irresponsável. Desta vez, apontou as baterias à ASAE. Tendo em conta a baixa popularidade deste organismo fiscalizador, abriu uma linha virtual de comunicação (ou seja, criou um e-mail) através do qual o cidadão pode descarregar a sua insatisfação sobre a actividade da autoridade reguladora do comércio e da restauração. Claro que o PP está-se nas tintas para os casos que lhe vão ser relatados. Qualquer alma crítica percebe que a ideia de Portas é simular que ausculta a população e que é sensível às dores da plebe. Vimos pela Europa partidos políticos de extrema-direita crescer politicamente capitalizando as insatisfações irracionais.

A atitude do PP é irresponsável. Quer se goste quer não, a ASAE presta um serviço fundamental ao país no controlo da legalidade do comércio e da saúde pública. O que o PP está a fazer com esta iniciativa provinciana é desacreditar um organismo que necessita do apoio dos agentes políticos para o bem de todos nós. Com este gesto, o partido de Portas confirma o seu cariz demagógico, anti-cívico e irresponsável.

segunda-feira, janeiro 14, 2008

"Coimbra, 14 de Janeiro de 1937"

« A maior desgraça da vida, vistas bem as coisas, acaba por não ser a morte. (...) A desgraça verdadeira é esta de nós andarmos aqui a namorar o céu, a pisar a terra, a investir contra o mar - e nem o céu, nem a terra, nem o mar saberem sequer que a gente existe. »

Miguel Torga, Diário, vol I.

sexta-feira, janeiro 11, 2008

O “PESSIMISMO NACIONAL” ( 2 ) : ETIOLOGIA


«Ora eu creio que o valor do pessimismo em Portugal não tem sido justamente apreciado, e parece-me que esse sombrio prognóstico a respeito dos nossos destinos como povo é ainda, mais do que uma conclusão rigorosamente deduzida, um fenómeno meramente sentimental, derivado desse mesmo pessimismo que está florescendo no nosso país, luxuriosamente, como uma venenosa árvore de morte.»

Para Manuel Laranjeira, o pessimismo, “como a imensa maioria das outras perturbações de que o Homem sofre”, pode ter duas origens: ou é sintoma duma “dificuldade adaptativa passageira” e, neste caso, uma reacção normal de ajustamento do organismo colectivo a novas condições da vida ambiente; ou tem “uma génese francamente mórbida” e, nesta hipótese, “exprime um conflito irredutível, que só termina pela morte”; isto porquanto há “um esgotamento senil ou degenerativo, doloroso, e indica o estado desesperadamente agónico dum povo como entidade colectiva.”

O autor destas palavras quer crer na primeira hipótese. Então, de o que se trata e como se trata… “isto”? Parece uma questão de simples golpe de vista: “Basta lançar os olhos para o estado social português para se compreender imediatamente”… E eis o que o olhar radiográfico do nosso médico vê: “Somos um povo civilizado… na aparência, porque a negra realidade é que quatro quintos da população portuguesa nem sequer sabem ler e escrever. Vestimos à moderna, pretendemos viver à moderna, e pensamos e sentimos à antiga. Somos um povo pertencendo pelo aspecto aos tempos dos Direitos do Homem e pertencendo, na verdade, pelo espírito, aos tempos da pedra lascada.” E quanto ao quinto restante? “Existe uma minoria reduzida, uma parcela, embora mínima, que acompanha a civilização moderna e vai nas correntes do pensamento contemporâneo.” Esta “elite pensadora e civilizada” apresenta um “avanço educativo relativamente acentuado.” Mas não se salva duma lascada crítica. A fracção é uma fractura: “ essa minoria não sabe ou não pôde impor-se à maioria da nação a arrastá-la consigo nesse avanço progressivo”… para a tal “civilização moderna”.

Quanto aos “quatro quintos”, eram uma massa de inércia sem vontade própria e demasiado pesada para ir “nas correntes”? O caso era que: “Somos um povo sem comunidade de pensar e sentir”, dividido e desequilibrado. Ora, os organismos, individuais ou colectivos, carecem, para se adaptarem e sobreviverem de uma unidade e equilíbrio derivados da “estreita sinergia dos seus elementos” e, “em Portugal, essa sinergia não existe.” Precisamente “aí está o nosso mal-estar.”

O médico avisa: “se o equilíbrio não for restabelecido de maneira que a engrenagem social portuguesa volte a funcionar sinergicamente; se esta ficção de organização não for destruída e substituída por uma organização una e harmónica – a nossa existência como nação, como sociedade autónoma, será efémera”; acabaremos como uma “nação morta, condenada a ser devorada pelo ventre esfíngico e insaciável das nações vivas.”

Nestes artigos para O Norte, Manuel Laranjeira não diz quando é que, na nossa história nacional portuguesa, teria existido um tal “equilíbrio”, que agora deveria ser “restabelecido”. Mas terminava, no dia 31 de Dezembro de 1907, com uma nota de esperança: “Eu creio que sim, que isto se pode salvar ainda…”

Veremos como; mas, antes da terapêutica, ainda algumas patogénicas complicações.

sábado, janeiro 05, 2008

O “PESSIMISMO NACIONAL” ( I ) : SINTOMAS



«Diz-se que a sociedade portuguesa vai atravessando uma crise sobreaguda de sombrio pessimismo, o que é uma verdade de todos os dias; e há quem afirme com argumentos cheios de brilho literário que esse pessimismo é sintoma claro e indiscutível duma degenerescência do nosso povo…»

O leitor tem ouvido chamar a esta verdade de todos os dias - “depressão”; ou, numa terminologia psicologicamente menos temível: “crise”. Quem, naquele 31 de Dezembro de 1907, escrevia tais palavras bem se podia consolar então com o “brilho literário”: não havia muito se tinha afastado de nós um António Nobre, o autor do “livro mais triste”, deixando-nos menos sós com suas Despedidas (1902) e este verso: “Anda tudo tão triste em Portugal!”; dele contemporâneo, desde o ultra-romantismo reaccionário de um João de Lemos até à retórica panfletária de um Guerra Junqueiro, só para falar da poesia, “brilho literário” era o que havia abonde. Hoje… O brilho parece fanado na espessidão de palpáveis trevas, e parece fantasmática entidade de folclore ou anacrónica ideologia essa… “o nosso povo”.

Era o autor de tais palavras o jovem médico Manuel Laranjeira, que não só pelo “brilho literário” da obra feita mereceu lugar na opulentíssima e providente galeria dos nossos médicos escritores, que depois de mortos ainda nos dão hoje consultas de salutar proveito. Eram as palavras iniciais do primeiro de quatro artigos, com o título supra, que entravam por Janeiro de 1908 publicados no diário portuense O Norte. Estávamos nessa altura politicamente com a vida parlamentar suspensa pela ditadura de João Franco, apoiada pelo rei D. Carlos: a ditadura que, de há anos, várias personalidades de diferentes quadrantes ideológicos tinham pedido ao rei, mas que, agora, era detestada por todos os que não pertenciam ao partido franquista, e dava pretexto a que republicanos, carbonários e anarquistas se aliassem na subversão do regime pela rebelião armada.

O médico Manuel Laranjeira auscultara o mal-estar reinante, que parecia reinar com mais soberano senhorio que o dos reis: « O desalento e a descrença alastram, o mal-estar colectivo se vai resolvendo quotidianamente em tragédias individuais, o sentido da vida, em Portugal parece cada vez mais fúnebre e mais indicativo de que vamos arrastados, por um mau destino, para a irreparável falência e de que nos afundamos definitivamente. » Tragédias individuais quotidianas, que o paciente leitor ainda tem estômago para engolir dos noticiários populistas?... E o sentido da vida… Não há nada como um bom mau-estar para nos depararmos reposta a velha questão. Quanto à resposta…

Mas, pergunta ele, «o mal, na verdade será de morte? Estará isto, como se diz expressiva e resumidamente, irremediavelmente perdido?»

Não se perdeu ao menos o deíctico seco e expressivo – “isto”. E sobreviveu. Ainda cem anos depois temos isto connosco…

Veremos em postais seguintes a etiologia e o prognóstico que lhe fez o nosso médico.





sexta-feira, janeiro 04, 2008

Glossário

Continuando na minha egocêntrica produção de pilhar textos aqui e ali reproduzo, nesta ocasião, um texto ou glossário que já conta uns anitos, mas, ao contrário dos seus irmãos, não atingiu ainda a vetusta duração de 200 anos. Neste caso, imagino que nem o Pedro consiga determinar a sua origem e, se fosse um indivíduo abastado, atribuiria ainda um prémio para o decifrador da sua origem (como vêem, agora, mudei das campanhas para atribuir prémios para a sua verdadeira concreção). Isto já vai mais longo que eu algum dia suporia. It missa est.
Abstinência – só os abstémios pensam que beber é bom; Alavanca – não há pior alavanca do que a que não move nada; Anões – os anões têm uma espécie de sexto sentido que lhes permite reconhecerem-se à primeira vista; Contradição (Princípio da) – se não fosse pela contradição os contrários deixariam, por assim dizer, de existir, e diga-se de passagem, de se contradizerem; Contradictio in Adjecto – a Sinfonia Incompleta é a obra mais acabada de Schubert; Cristianismo e Igreja – as ideias que Cristo nos legou são tão boas que houve necessidade de criar toda a organização da Igreja para combatê-las; Escritor nasce, é ou faz-se? – digam o que disserem, o escritor nasce, não se faz. Pode acontecer que, finalmente, alguns nunca morram; mas desde a Antiguidade é raro encontrar algum que não tenha nascido; Fragmentos (1) – um fragmento é às vezes mais pensamento que todo um livro moderno. No seu afã de sintetizar, a Antiguidade chegou a cultivar muito o fragmento. O autor antigo que melhores fragmentos escreveu, fosse por disciplina ou porque assim o decidiu, foi Heraclito. Consta que todas as noites, antes de se deitar, escrevia o correspondente a essa noite. Alguns eram tão pequenos que se perderam; Guerra –se não fosse a Segunda Guerra Mundial, os aliados jamais teriam sonhado ganhá-la; Heraclitiana – quando o rio é lento e temos uma boa bicicleta ou cavalo, sim, é possível tomar banho duas vezes (e até três, de acordo com as necessidades higiénicas de cada um) no mesmo rio; História e Pré-História – Antes da História pode dizer-se que tudo era pré-história; Inteligência – a inteligência comete asneiras que só a asneira pode corrigir; O Artista e o seu tempo – quem nos diz que os bisontes das Grutas de Altamira não foram pintados por homens do seu tempo? O Heraldo, “Deve o artista pertencer ao seu tempo e vice-versa?” (esta vai com a respectiva referência, de outra forma não tem piada); Plágio – uma fatalidade. É uma coisa detestável mas às vezes deve aceitar-se, pois apesar do grande número de ideias que Platão nos legou, a Natureza é tão injusta que a muitos homens (e mulheres) não lhes coube ideia alguma e, assim, têm de recorrer às alheias para transmitir as suas ideias, geralmente, espúrias se não concordam com as nossas, se é também que a nós nos coube alguma; Universo – há poucas coisas como o Universo!
Ficou um pouco quilométrico, como os do Alexandre no tempo da cafeína, o que quer dizer que dos meus oito leitores só quatro vão ler até ao fim. Se foi esse o seu caso, deixe-me congratulá-lo.