domingo, março 30, 2008

“Travanca, Amarante, 30 de Março de 1980”

« Traçadas para deixar passar velozmente o progresso, as estradas de hoje cortam a direito, sempre a atalhar. E é por elas que obrigatoriamente, como os demais, galopo, a maior parte das vezes cheio de remorsos de deixar de lado o Portugal que sobretudo me interessa: o de raízes e vínculos. Há séculos desejoso de o surpreender também nestas paragens, e só agora o faço. Olhava de cima o vale onde se esconde, e seguia caminho, a maldizer a pressa do meu tempo. E o que perdi durante tantos anos sem ver e admirar ao natural uma das criações mais belas do nosso românico! Esta igreja de S. Salvador, acolhida ao seu torreão ameado, simbiose emblemática da cruz e da espada que fundaram a pátria primordial. Pátria a que em quase todo o resto do território apetece chamar mátria, pelo vigor feminino da sua fisionomia espiritual, mas que aqui, singularmente, é masculina no corpo e na alma. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.

quarta-feira, março 26, 2008

O "PAIAÇU"



Tal o nome tupi que deram os índios brasileiros ao nosso padre António Vieira: o “pai grande”; e não apenas pela elevada estatura física senão pelo grande amigo e protector que nele tinham.

Regressara em 1653 às terras do Brasil, onde se tinha criado desde os seis anos de idade, e que não via há doze. Quem fora em Lisboa o pregador famoso e protegido do rei D. João IV, que o enviara pela Europa em missão diplomática ao serviço da Restauração portuguesa, chega agora com provisão real de superior das missões jesuítas no Brasil. E o que fora antes defensor da repatriação do cristãos-novos portugueses contra os interesses e mentalidade instalados na Inquisição, chega agora a S. Luís do Maranhão com uma ordem do rei para se libertarem todos os índios cativos dos colonos. Ora estes dependiam absolutamente desta mão-de-obra para as plantações da cana do açúcar e do tabaco… Aos colonos, no sermão da Quaresma desse ano de 53, o pregador prega-lhes a consciência sem meias-medidas:

« Sabeis, cristãos, sabeis, nobreza e povo do Maranhão, qual o jejum que quer Deus de vós esta Quaresma? Que solteis a atadura da injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos. Estes são os pecados do Maranhão; estes são os que Deus me manda que vos anuncie. Deus me manda desenganar-vos e eu vos mando desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal; todos viveis e morreis em estado de condenação; e todos vos ides direito ao inferno. Já lá estão muitos, e vós também estareis cedo com eles, senão mudardes de vida. »

Mudar de vida! Bem ciente da dificuldade do ponto, o pregador antecipa objecções:

«Pois quem nos há-de ir buscar um pote de água ou fazer duas covas de mandioca? Teriam de ser as nossas mulheres, os nossos filhos?...
Primeiramente, não são estes os apertos em que vos hei-de pôr… Mas quando a necessidade e a consciência obriguem a tanto, digo que sim, e torno a dizer que sim: que vós, que vossas mulheres, que vossos filhos e que todos nós nos sustentássemos de nossos braços; porque melhor é sustentar-se do suor próprio que do sangue alheio. Ah, fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram, haviam de lançar sangue! »

As consequências práticas foram os “cristãos” desacatarem a ordem do rei e impedirem por todos os modos que os jesuítas tratassem com os índios senão para, como diziam, “ensinar-lhes a doutrina”. Aos colonos, ensinou-lhes a doutrina de Santo António aos peixes: fizeram-se desatendidos, encavaram-se na mandioca, encapados em ressentimento pouco cristão, e o resultado foi oito anos depois lançarem os jesuítas fora das terras do Maranhão e de Belém do Pará, obrigando Vieira a regressar a Portugal. Era o prelúdio do que viria a suceder no século seguinte, com o ditador Pombal. De novo aqui deste lado do Atlântico, falecido o protector e amigo D. João IV, a Inquisição ficava livre para deitar a mão a quem há muito desejava agarrar.

domingo, março 23, 2008

RESSURREIÇÃO


Já, sobre a terra, a Estrela da manhã
(«Faça-se a Luz…») trouxera a anunciada
Bênção de paz, ressurreição cristã.

Quando Maria, pálida e açodada,
Correu ao horto, viu a Sepultura,
Mas não Jesus. Na alegre matinada

De aves e rosas, contra a névoa obscura,
À beira do Sepulcro, revestindo
Pulcras roupagens de fulgente alvura,

Airoso o porte, o gesto grave e lindo,
Velavam os dois Anjos triunfantes,
Por sob as doces lágrimas sorrindo.

E, comovendo os ecos mais distantes,
-« Ressuscitou! Ressuscitou! (diziam)
E nada mais será como foi dantes…»

Anjos formosos! Donde surgiriam?
Qual o nome seu? Que treva os arreceia?
Por que princípio e fim ali viriam?

Miguel, o herói da célica epopeia?
E Gabriel que trouxe a Anunciação
Cheia de graça e de promessa cheia?

( Perdoa-me, Senhor! Se, em erro e em vão,
Mais uma vez tresvaira o pensamento
Da lídima, evangélica lição;

Perdoa-me, Jesus! Acaso invento,
No sonho arrastador me descaminho,
Mas vê: não há malícia em meu intento. )

Estranhos Anjos, pelo que adivinho,
Não os criara o céu em glória e amor,
Mas sim o mundo em louco torvelinho!

Não viram sumo bem ao derredor,
Mas sim o mal, a tentação, o crime,
Orgulho, humilhações, remorso e dor.

Ah! Não vieram, não, da paz sublime,
Mas dum tufão que estorce e despedaça
Almas tão débeis como a folha e o vime.

Sombras do exílio, filhos da desgraça,
Alastram na terra, em ânsia atroz,
Qual nódoa sobre nódoa, a Culpa e a Raça.

Restruge o marulhar da humana voz
No grito que em seu peito sobreleva:
Nesses dois Anjos, - somos todos nós!

Não desceram da Luz: sobem na treva
Dos séculos vindoiros e passados…
- Somos nós todos: são Adão e Eva!

Adão e Eva, sim! Transfigurados
Na mística visão que inda seremos
Em vida e morte limpa de pecados,

Já quando o tempo, aos confinais extremos,
Tornar, após a noite, ao fogo e unção
Com que na mão de Deus amanhecemos.


António Corrêa d’ Oliveira, Verbo Ser e Verbo Amar

quinta-feira, março 20, 2008

A QUINTA-FEIRA DA CEIA DO SENHOR


Oh divino banquete, onde foi dada
Toda a glória do Céu por iguaria!
Nunca aparteis desta alma o santo dia
Da morte de meu Deus, por mim causada.


Pagando em cruz o amor sem dever nada,
Inda lhe pareceu que nos devia,
No tempo em que de nós se despedia,
Ir-se, e ficar numa hóstia consagrada.


Finos toques d’amor, raros extremos,
Se os Anjos vos não podem entender,
Os que somos humanos, que faremos?


Contento-me, Senhor, basta-me crer
Que nessa hóstia sagrada onde vos temos,
Mais, nem menos, no Céu não poderia ser
.


Frei Agostinho da Cruz

[ Moço criado na casa de D. Duarte, neto del-rei D. Manuel I, e na dos duques de Aveiro, entrou aos vinte anos de idade no conventinho franciscano de Santa Cruz, da serra de Sintra. Mudou depois para o da Arrábida, da mesma Ordem. Com sessenta e cinco de idade, e quarenta e cinco anos de vida cenobítica, pediu e obteve licença para passar à vida eremítica, que viveu isolado na serra por mais catorze anos. Chegou ao cume e tocou o Céu aos 14 dias do mês de Março de 1619. ]

quarta-feira, março 19, 2008

“Coimbra, 19 de Março de 1984”

« Deixar-me ser assim como sou. Ao mesmo tempo lúcido e capaz de sucessivos actos de loucura. Proceder instintivamente, guiado pela razão. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIV.

terça-feira, março 18, 2008

Tuxedomoon, "No tears"

Num dia em que falhei cabalmente como administrador deste Tonel e na gestão de conflitos laborais, deixo este video dos míticos Tuxedomoon, que me acompanhou numas férias algarvias de 87.

quinta-feira, março 13, 2008

UM LADO E O LODO DO ESTADO A QUE “ISTO” CHEGOU


Quisera eu depois desta sombria série à sombra de Laranjeira, divertir com assuntos mais amenos para desfastio do leitor. Infelizmente, não me deixam e não posso. Não posso moralmente deixar de tomar posição diante de certos acontecimentos da actual conjuntura social portuguesa. Refiro-me a um sector que é precisamente aquele onde o médico Manuel Laranjeira tinha esperanças de aplicar uma terapia regeneradora da vida nacional, como vimos aqui. E não só ele como tantos e tantos outros antes e depois dele, desde a reforma anti-jesuítica pombalina dos Estudos Menores e os debates parlamentares de 1820-22, que precederam a aprovação da primeira Constituição escrita em Portugal. E embora ele não precise, também não posso deixar o nosso Alexandre aqui só, a comentar um assunto que tem valiosa e valorosamente enfrentado em sucessivos e oportunos postais.

Trata-se da situação que se vive no sistema público de educação, principalmente aos níveis do básico e do secundário. Dentro e fora do sistema, tenho ouvido e lido observadores de diferentes quadrantes ideológicos concluírem todos numa palavra que se me figura o termo mais comedido e exacto: - “catástrofe”. Ou, com equivalente conotação, também estoutro: - “caos”.

A situação tem causas próximas, com 34 anos de idade; outras mais longínquas, que podem remontar a datas como as relembradas acima. Compreende-se que se os erros acumulados vêem de longe, os efeitos se possam tornar com o tempo mais agudos, dolorosos e intratáveis. Mas, para além do passivo, o que faz peculiar a extrema gravidade da actual conjuntura é que não se vislumbra para o médio-longo prazo senão mais do mesmo: tenteios erráticos de apagar fogos que não cessam de se multiplicar; repintar ruínas; demolição do pouco que resiste; promoção e venda de falsas remédios; continuado socavar da depressão. Mais reformas sobre reformas, que são remendos sobre remendos.

Na perspectiva do prolongamento indefinido da calamitosa situação, professores e alunos têm de se forrar de paciência e de preservar um mínimo de lucidez possível. Quando se está diante um tal terramoto, temos de reconstruir a partir de novos e mais sólidos fundamentos. Tudo tem de ser repensado desde os princípios. Infelizmente, os cidadãos em geral, hipnotizados desde os anos 80 do passado século com as questões económicas, não têm olhado a sério para a educação, a começar nas suas próprias casas. Acresce agora uma geração de pais, na casa dos 34-40 anos, que foi a primeira a afogar-se de todo no caos do sistema público educativo; uma geração pessimamente (des)educada, e que se prepara hoje para assumir responsabilidades na condução da vida pública e política. E as gerações que lhe vão suceder…

Quando se dá uma catástrofe, os que lhe sobrevivem ou calam-se ou falam muito sobre ela. Esta, que é tamanha, tem muito que se lhe diga. Como está para ficar por muitos anos, nem pode no essencial ficar pior, teremos tempo. Para já, desejo aqui dizer apenas duas coisas, e mais uma.

Primeira. Que o assunto “a educação” é subsidiário e dependente doutro mais vasto – que é o homem, singular e colectivo, na sua circunstância cultural e existencial própria. Nenhuma esperança de repor direito o que está torto sem repensar fundo e claro o seguinte: Que é educar um ser humano? Isto é: por que princípios e para quais fins se educam homens e mulheres? Quais são e quais devem ser os principais responsáveis pela educação? Que meios são e devem ser precisos para firmar os princípios e realizar os fins da educação? O que é e o que deve ser educar no actual momento histórico português e mundial? Tais as primeiras e principais questões para que os pais, encarregados de educação, e cidadãos em geral deviam abrir bem os olhos da sensibilidade e da inteligência – para não se queixarem depois da qualidade da vida social que têm. Também se deixa ver claramente que as respostas a estas questões, pedagogicamente decisivas, dependem de uma mais fundamental: - o que significa ser humano? Cuja resposta não pode deixar de ser dada e, de facto, sempre é dada, mais ou menos conscientemente, mais ou menos inconscientemente, por cada época. A da nossa época, nesta parte do mundo intoxicada de consumismo hedonista e tecnodependência, é uma resposta típica e, só por si, muito reveladora e relevante para o estado de coisas a que chegámos.

Segunda. Que, na actual conjuntura portuguesa, estou inteiramente solidário com os professores que de há anos, com tenacidade admirável, amor à profissão e ponderado bom senso têm dado o melhor de si e, tanto quanto possível, têm protegido dum sistema adverso e perverso os mais fracos e menos culpados de todos: as crianças e jovens seus alunos.

Disse que mais uma coisa tinha para dizer. O leitor interessado que a procure no comentário anexo. Não quero eu aqui misturar o sujo com o limpo.


[ Mas digo-lhe já, sobre a imagem supra, que não se enganou se pensou numa escola que foi vandalizada. De facto, trata-se de uma escola abandonada, no interior algarvio, uma das mais de 3 000 que os actuais gestores se propuseram fechar durante a legislatura. Levados pela obcecação orçamentista, mascarada com sofismadas e indemonstradas “vantagens pedagógicas”, contra a vontade dos povos e das autarquias, afastam mais e mais as crianças das famílias e continuam a desertificação humana do interior do país. Os cidadãos decentes não deveriam esquecer que os vândalos, antes de se porem a atacar, sem discriminação séria, a classe dos professores, começaram e continuam a prejudicar os mais fracos e menos culpados de todos. ]

terça-feira, março 11, 2008

“Coimbra, 11 de Março de 1951”

« Resposta a um inquérito do Journal des Poètes:

(…) O que fez da Poesia um dos picos imaculados da cultura europeia, e ao mesmo tempo um factor decisivo da consciência universal, foi o seu heroísmo e a sua fidelidade a tudo o que é eterno. E para que continue entre os povos europeus essa missão purificadora e unificadora, é necessário que ela seja a expressão dos mais puros anseios de cada um e de todos. É preciso que abrace não apenas um indivíduo ou uma classe, mas o Homem. O Homem que as religiões salvaram para o céu nas catacumbas e no martírio, e que a Poesia deve salvar para a terra, à clara e alegre luz da beleza. Porque só a beleza nos arranca à solidão e nos une na mesma comunhão fraternal. Sorriso do mundo, só ela é capaz de nos oferecer aqui um ideal isento de armadilhas e contradições. (…) Nem caridade, nem humanitarismo. Simplesmente a revelação gratuita e maravilhosa da face permanente do circunstancial, a esperança libertadora ansiosamente desejada por todos os mortais.»

Miguel Torga, Diário, vol. VI.

sábado, março 08, 2008

Decálogo do naufrágio do ensino em Portugal

Vou estar hoje na manifestação de professores. Protestarei contra o estado calamitoso a que este Ministério da Educação está a votar o ensino público em Portugal. Acompanho convictamente com os meus colegas nesta luta; mas sinto que os professores não estão a saber explicar a gravidade da situação em que a Escola pública se encontra por responsabilidade deste governo. Na televisão ouvem-se protestos contra “este modelo de avaliação dos professores” ou contra “este modelo de gestão das escolas”. Desta forma, a opinião pública nacional fica com a ideia de que os docentes se batem por meras razões de interesse próprio – o que em muitos casos é infelizmente verdade.

No entanto, o problema é muito mais fundo e corrói todo o sistema de ensino público. Em detrimento de uma argumentação longa e impraticável num blogue, opto por apresentar os dez pontos da falência do ensino público, sem os desenvolver. Aqui vai o Decálogo do naufrágio do ensino público em Portugal:

1. As medidas e as intervenções públicas da Ministra da Educação estão a denegrir e a desvirtuar o importantíssimo papel do ensino e da educação em Portugal. (E não esqueçamos que as medidas são propostas por uma socióloga, que devia compreender o dano social dos seus actos.)

2. As medidas e as intervenções públicas da Ministra da Educação estão a minar a necessária credibilidade e a autoridade dos professores.

3. A recente legislação do Ministério da Educação promove uma ideia de irresponsabilidade e de laxismo na mente dos futuros cidadãos - a assiduidade não é importante, o esforço dos alunos não é um factor necessário nem valorizado, etc.

4. O Ministério não promove nem encoraja uma cultura de exigência e seriedade entre os alunos – procura antes pressionar fortemente os docentes a implementar um clima de facilitismo na avaliação dos discentes.

5. As reformas que estão a ser feitas são orientadas por mesquinhos objectivos economicistas e estatísticos. I.e., a economia e a estatística sobrepõem-se à formação dos cidadãos de amanhã. (LINDO!!!)

6. As pseudo-reformas promovidas pelo Ministério são remendos, intervenções de maquilhagem na necessária melhoria do sistema de educação em Portugal: nada vão alterar para melhor, muito vai piorar.

7. A política de educação é dirigida para os media e não para os alunos: tornou-se uma preocupação polítiquice imediata (e mediática) e não um investimento social e humano de fundo.

8. O modelo de gestão das escolas desvirtua a autonomia das escolas e, mais grave, a autonomia pedagógica do ensino nelas ministrado.

9. O presente modelo de avaliação de docentes não é justo para os professores e, indirectamente, condiciona de forma negativa as aprendizagens dos discentes.

10. Os professores mais novos não têm lugar no sistema (por razões economicistas) e ainda são sujeitos a provas humilhantes e descabidas, que podem assassinar injustamente a carreira de docentes promissores e zelosos.

sexta-feira, março 07, 2008

“Coimbra, 7 de Março de 1952”

« Não se modifica o fácies dum povo. (…) É ver como calha sempre bem, como se aguenta entre nós o tipo de governante autoritário sem o parecer, beato mas com uma vara laica na outra mão, paternal mas distante do povo. A lição liberal e republicana não nos valeu de nada. Aquele esforço de convívio cívico, de liberdade pressuposta, de diálogo colectivo, de religiosidade temperada, em vez de aliciar as consciências parece que as ressabiou. À autodisciplina da democracia opôs-se imediatamente a licença da anarquia. (…) O temperamento é uma grande lei. O nosso é de carneiros tosquiados, um tudo nada recalcitrantes ao assobio do pastor, que é sempre um tipo bifronte: dum lado, a cara rubicunda do cura de freguesia; do outro, a fria máscara do meirinho da vila.»

Miguel Torga, Diário, vol.VI.

quinta-feira, março 06, 2008

Não arranjei nada adequado para poder dar título ao raio desta coisa

Do mesmo autor a quem rapinei, aqui atrasado, um texto, aqui vai outro, mais ou menos, do mesmo coturno. Desta vez é a história dum funcionário público que é deglutido por um crocodilo e inexplicavelmente continua vivo dentro das miudezas da alimária. Um amigo, por ele instruído, dirige-se ao seu chefe e tenta resolver a sua situação laboral, almejando uma pensão para a consorte (mas podia ser dum professor, neste caso, para fazer o jeito à nossa colega que nos escreve lá dos picos das suas montanhas alpinas). Pode ser que desta vez haja consenso acerca do seu autor, porém, ponderando bem, às vezes, o consenso pode resultar apenas no erro colectivo.
O dono do crocodilo ao “princípio, assustou-se muito, pensando que o crocodilo ia rebentar, mas logo que se convenceu de que estava tudo bem, ficou arrogante e muito satisfeito por poder duplicar os preços.
- Triplicar, talvez quadruplicar! O público agora vai afluir, olhe que os donos de crocodilos são gente esperta. Além disso, estamos na época das vacas gordas, em que o público tem vontade de se divertir.”
E voltando à carga o superior: “digo-lhe com toda a franqueza que o caso é extremamente complicado. É difícil de resolver, mas o mais prejudicial é que ainda não houve exemplo semelhante. Se houvesse um precedente, ainda teríamos ponta por onde lhe pegar. Mas, assim, que decisão se pode tomar?
- Uma vez que lhe foi destinado permanecer nas entranhas do monstro e, por vontade da Providência, com vida, não seria possível organizar as coisas de tal maneira que ele apresentasse o pedido de ser considerado ao serviço?
- Huumm… só se for em situação de gozo de férias e sem ordenado…
- Não, mas com ordenado?
- Com que fundamento?
- Situação de comissão de serviço.
- Qual e onde?
- Nessas mesmas entranhas, as entranhas do crocodilo… Para fins de informação, por assim dizer, para analisar os factos no terreno. É claro que seria uma inovação, mas é progressista e, ao mesmo tempo, mostraria o interesse pela iluminação…”
Depois de alguma reflexão, continua o chefe: “mandar um funcionário em comissão de serviço às entranhas de um crocodilo… que missões pode haver lá?
- Estudos da natureza, por assim dizer, no terreno, ao vivo. Hoje em dia estão em voga as ciências naturais, a botânica… Ele poderia viver lá e elaborar comunicações… sei lá, sobre a digestão, ou, simplesmente, sobre os costumes. Recolha de materiais, de factos.
- Ele comunicará os factos, por assim dizer, deitado. Será possível estar-se deitado no serviço? Seria mais uma inovação, ainda por cima perigosa; e, mais uma vez, não haveria precedentes. Se tivéssemos pelo menos um precedente, então sim, talvez pudéssemos arranjar uma comissão de serviço para ele.
- Mas também nunca tinham cá trazido crocodilos vivos…
- Huumm, pois! De acordo, esta sua objecção é justa e até poderia servir de base para o desenvolvimento ulterior do caso. Mas tenha em consideração que, se com o aparecimento dos crocodilos vivos começassem a desaparecer funcionários e se, depois de se encontrarem lá, no quentinho, começassem a exigir comissões de serviço só para estarem deitados… tem de concordar que isso seria um mau exemplo. Às tantas, todos tentavam meter-se lá para receber o ordenado sem fazer nada”

O LEGADO DE LARANJEIRA: UM “DRAGÃO DE CEM CABEÇAS”


Até agora, “preferi deixar falar largamente este espírito doloroso. Ouvi-lo é debruçarmo-nos sobre uma das vidas portuguesas mais trágicas do nosso tempo”, tal como dizia Vitorino Nemésio num artigo que dedicou ao autor feirense. Laranjeira faleceu em 1912, mas Nemésio fala em 58 do nosso tempo. Joel Serrão, por seu lado, que larga e compreensivamente trata do nosso autor no notável estudo que fez “Em Torno da Experiência Oitocentista do Tédio”, - diz e sublinho isto: “ Ora a verdade é que, independentemente das filosofias e vivências pessoais, a qualquer mente reflexiva deste nosso agora, que busque situar-se, com a objectividade possível, no nosso tempo histórico se deparará um dragão de cem cabeças que se mostra disposto a devorar-nos a todos, se não soubermos ou pudermos defendermo-nos. É o tedium vitae…” A “experiência oitocentista”, afinal, é do “nosso agora”, do “nosso tempo”. E do sopro do dragão, vem “essa desagregação do psiquismo ocorrida no nosso tempo e revelada, entre tantos outros índices, pela visão picassiana, pelo surrealismo, pela pintura abstracta, pelos romances de Sartre, pelas filosofias do absurdo e do nada…” “Desagregação”, dizia o prof. Joel. E o leitor lembra-se do que tinha dito Laranjeira: “dissolução”.

Tem de facto muitas cabeças o dragão. A monástica acedia; o entejo; a “menencoria” (já tão finamente analisada pelo nosso rei-filósofo D. Duarte no séc. XV); o nojo, o aborrecimento, o romântico tédio, a “inércia” (de que se queixava Antero ao tempo em que destruiu o seu praticamente concluso Programa de Trabalhos Para a Geração Nova) e a náusea existencialista; as prolixas etiquetas médicas – astenia, psicastenia, neurastenia, distimia… E a popular “depressão”, que a Organização Mundial de Saúde prevê como a segunda causa de morte no mundo dentro de vinte anos. Tais e tantas são as cabeças da policéfala avantesma. Entenda-se: no nosso mundo obeso e rico, atolado na abundância e fartura de pão e circo, que as carências dos pobres são de outra ordem.

Do legado de Laranjeira cabe-nos o advertido reconhecimento de algumas feições da hidra. Deixou-nos ele pano para mais que mangas: um inteiro vestido, que temos de vir a provar de quando em vez, a ver se não é camisa de madeira forrada de chumbo. Mas, por agora, não quero entediar mais o leitor desta série sobre tédio e pessimismo. Um só derradeiro aceno para o homem que nos acompanhou.

Era um filho de pedreiro e lavradeira, nascido numa obscura aldeia das terras da Feira. Pobre e filho de pobres, nasceu num país onde era possível aos 30 anos de idade ser médico, com influências, apoios e competências que o motivaram para candidatar-se à direcção da Escola onde se formara; era um intelectual superiormente informado; era um cidadão civicamente empenhado. Tinha bastantes amigos, alguns muito capazes de o compreender e admirar. Era atraente para não poucas mulheres, e não se desaproveitava disso. Tinha uma posição social invejável, e com o triunfo próximo do regime republicano podia ter tido uma não menos invejável posição política, ao menos local. Quando padecimentos físicos sem remédio se vieram somar aos outros, sentindo ele que não podia ser mais útil a ninguém, antes pelo contrário, não teve dúvidas (como havia prevenido há anos) em recorrer sozinho ao que já hoje holandeses, belgas e luxemburgueses têm à legal disposição da vontade assistida.

O leitor reparou: já hoje. E repare também no que Laranjeira dizia: “tenho a impressão de que deveria ter nascido daqui por dois séculos”… Parece então que nos não podemos despedir assim sem mais do “entediado-mor da sua geração” (Joel dixit), antes vamos despedidos ao encontro de alguém que se antecipou e nos espera… “Isto”, continua connosco. Na semana passada, num estudo da SEDES – uma organização informal de gente bem colocada e bem informada, que há mais de 34 anos apresenta estudos periódicos sobre o desenvolvimento social e económico do nosso país – pode ler-se: “sente-se hoje na sociedade portuguesa um mal-estar difuso, que alastra e mina a confiança necessária à coesão social”… Mas não serão apenas assimetrias de rendimentos, défices orçamentais, sobre-endividamentos (há pessoas com mais de 2000 euros de rendimento mensal a recorrerem ao Banco Alimentar contra a Fome)… “Isto”, será outra coisa – “passada na alma de cada um”, como vimos e veremos.

Por falar em hidra, o caro leitor lá verá se tem consigo a hercúlea clava para mantear a besta. Ou se tem força para levar o bordão que Torga aqui lhe deixou no passado 22 de Fevereiro. Não se esqueça também da lanterna de diogénio, para não andar nem bater às cegas. Não são trabalhos novos para uma “geração nova”: são os de sempre.

Agora, se me vem dizer que não pode, que nada disso lhe serve… Veremos se achamos alguma coisa que mais lhe possa servir.

quarta-feira, março 05, 2008

Haverá mesmo habermasianos na Rinchoa?

Enquanto althusseriano de Alfornelos, não paro de me colocar a questão: haverá habermasianos na Rinchoa? A dúvida parece-me tão intrigante como saber como vão os kraussianos de Gambelas. (E as popperianas de Gambelas, Xor Z?) Já quanto aos agostinianos de Azambuja, parece-me que andam a perder a pujança!! Talvez os Lulianos de Aveiras de Cima lhe tragam mais arcaboiço teórico e mais fundamentação teológica...

segunda-feira, março 03, 2008

"Eiras, 3 de Março de 1968"

«(...) num largo de paz provinciana, onde o Espírito Santo tem morada e o povo castamente se diverte. (...) O pote a voar de mão em mão, a finta súbita, a hesitação prevista, o estampanço da vasilha e o explosivo gáudio colectivo. Esqueço instintivamente todos os monstruosos Vietnames do mundo, e alargo à humanidade inteira esta fraternidadae sadia e convivente.


O homem não pode continuar no caminho que leva, de tristeza, agrassividadae e morte. Há-de por força voltar a trás, e começar de novo a viver alegremente a vida. É a partir do quadro que tenho diante dos olhos que se me antecipa o futuro, pacífico e feliz no terreiro do universo, a estoirar panelas de barro em vez de bombas atómicas. »

Miguel Torga, Diário, vol. X.

sábado, março 01, 2008

Educação, contra-informação e ruído de fundo

A democratização do exercício da cidadania é uma conquista da Terceira República. Trinta e quatro anos após a Primavera de Abril, a democracia e a cidadania em Portugal são ainda adolescentes incautos que não conseguiram ainda chegar à maturidade. Várias manifestações existem deste fenómeno. Aqui, centro-me num. Se é certo que o português sabe agora reivindicar mais e ousa opinar sobre vários assuntos, nem sempre o faz com propriedade informada, com honestidade intelectual e com respeito pela Verdade (quem quer que essa senhora seja). Lembro aqui a frase inglesa que assim reza: "Opinions are like asses: everybody has got one". Os meios de comunicação social contribuem certamente para estas deficiência cívica do povo português; mas não são os únicos responsáveis.

O intróito verborreico serve para analisar as declarações do Presidente da República e de Albino Almeida (presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais - Confap) sobre os protestos dos professores contra as reformas educativas. Ambos decidiram fazer um frete ao Governo. Ponto comum às declarações de ambos: acusar os docentes de estar a criar um clima crispado no ensino que prejudica o ano escolar e o processo educativo dos alunos. Ora, se não há desonestidade nestas palavras, há ignorância irresponsável.

Resumo, de forma bem resumidinha, a minha ideia. Os protestos dos professores, que estão a decorrer em horas não lectivas (após as 18h30 e aos sábados), em nada estão a prejudicar o andamento das aulas nem o aproveitamento dos alunos – nenhum docente leva para as aulas os protestos contra as medidas governamentais. Que desonestidade imbecil daqueles que afirmam o contrário.

O que o auto-proclamado e limitado presidente da Confap não quer compreender é que esta reforma prejudicará a vários níveis os jovens alunos. Explico apenas um desses níveis. A avaliação dos docentes, por ser burocraticamente muito pesada, irá roubar aos docentes tempo precioso para investir no trabalho escolar: preparação de aulas, inovação didáctica e envolvimento em actividades extracurriculares. Também esta é uma reforma que desencoraja os docentes a investir na sua formação, ou seja, a se tornarem melhores professores. Por fim, esta reforma não contribui para um melhor ensino porque pressiona os docentes para não serem exigentes com os seus alunos. Tudo está feito para promover a permissividade avaliativa: o regime de faltas será ilusório, a aprovação dos alunos revelar-se-á quase automática e a ideia será completar a escolaridade secundária sem trabalho nem esforço, a bem das sacrossantas estatísticas.

Nova colaboradora do Tonel

Tivemos de deitar abaixo uma das placas que encima a sede deste blogue, placa onde se podia ler "Minina não entra". É que acaba de ser contratada para colaborar no nosso Tonel a ínclita Edelweiss: humorista corrosiva, mãe de família, analista perspicaz de assuntos variados da vida nacional e internacional, que vão desde a alta política portuguesa e a legislação nacional até à moda em Paris, a culinária, as roupinhas para bebés e a educação. Consta mesmo que espicaçar os professores é o seu passatempo preferido... isto se não puder optar por um tentador bolo de chocolate.
Edelweiss fundara e escrevera no blogue Flor dos Alpes, onde deu provas de todas as qualidades que aqui lhe apontámos e de muito mais. Contratá-la para o Tonel de Diógenes traduziu-se num avultado esforço financeiro da administração deste blogue. Mas o investimento revelar-se-á plenamente compensador.
Bem vinda seja, Senhora Edelweiss.

A "ENGRENAGEM MAL MONTADA"




Afinal, amigo, eu também nasci místico

“Sobre Espinho paira um céu gris, sujo e depressivo – um céu canalha. Imagine como estarão os meus nervos infelizes!” Esta impressão era suficientemente forte para Manuel Laranjeira a registar como post scriptum a uma carta, a última conhecida que enviou ao amigo Amadeu de Sousa Cardoso, em 9 de Junho de 1910. É um tipo de impressão que se repete e multiplica por muitos lugares do Diário e das Cartas; como nestoutra ao mesmo, de três anos antes: “Sobre Espinho está caindo uma bruma pesada, parda, e no meu espírito está-se formando uma nuvem gris, fria, álgida, húmida – como tédio. Este céu imóvel como o tampo duma imensa sepultura, se nos deixa respirar os pulmões, não deixa respirar a alma.” O leitor notou a transição do nome “gris”, que tantas vezes aparece nas suas páginas: passou do “céu” para “o meu espírito”.

Que fazer, sob um tal céu?

“Para nós, místicos desta vida moderna, sem Deus, sem outro ideal, a fórmula prática de realizar o ideal, de viver adentro do ideal, como o santo em Deus, - é trabalhar, trabalhar. Trabalhar é o único meio, actualmente, de compor a vida como uma obra de arte e uma obra de arte como a vida.” Eis o que dizia a 7 de Janeiro de 1908 ao amigo e pintor António Carneiro. O problema, para “um filho deste século”, como já vimos aqui, era “exigir à vida coisas que ela não podia dar.” O problema era o “ideal” que motivava ou orientava a feitura dessa “obra de arte”: - “Eu também caí na sandice de criar um ideal, de conceber a vida como um ideal de felicidades. Estou-o pagando. Claro: eu só poderia ser feliz vivendo a vida à altura do meu ideal, feita ideal, tal como eu a desejo… Veja que série de loucuras! Se a suprema sabedoria da felicidade – está precisamente em viver a vida sem ideal. É o que fazem os brasileiros e os nabos. Por isso são felizes. Em paz! Não os invejo, todavia. Nunca invejei o grotesco.” Noutra carta a Sousa Cardoso: “A felicidade mais duradoura sobre a terra é a dos imbecis, a do Lopes brasileiro – e essa, bem vê, é pouco invejável. Eu por mim, pelo menos, confesso-o: apesar das horas negras que me corroem, apesar do tédio que me arrasa continuadamente, não queria ser o Lopes, embora ele seja o máximo de felicidade actualmente sobre a terra. Quanto à que me adviria do oportunismo, isso seria bom se eu fosse oportunista. Mas por esse género de felicidade sinto eu uma boa dose de desprezo: isso é apenas o ideal dos sem-ideal. (…) Fico-me comigo e com as minhas tristezas –e fico melhor. Não os invejo, lamento-os. (…) Você verá o que é pensar com lógica – e sentir sem lógica: verá que o meu mal não é pensar demaiItalics: é sentir demais: são os conflitos da razão e do sentimento. Quando o sentimento diz: a tua felicidade está aí; vê-la? – a razão responde: vejo; mas vejo também que só seria felicidade em dadas condições. E se o sentimento exclama: mas assim é impossível obtê-la! – a razão responde glacialmente: exactamente! – é impossível: desiste, pois. O sentimento desiste. Sofre, sofre, mas desiste.” A ênfase nas palavras é do autor, que depois enfaticamente nega que os Lopes brasileiros (ou os “Esteves sem metafísica”, da Tabacaria…) sofram destas “tragédias sentimentais”: só de “insofríveis joanetes”.

“Fico-me comigo”… Consultando-se, o médico diagnosticava com notável precisão: “O meu grande mal, amigo, é este apenas – estar eu perdendo a fé em tudo e em todos.” Isto dizia ele apenas dois meses antes de iniciar os esperançosos artigos para O Norte, com que iniciámos esta série aqui. Queria crer; mas sabia que isso era “de quando em quando um lampejo de fé, que se extingue logo.” Quanto ao “místico da vida moderna”, com não menor precisão acertou em “compor uma obra de arte como a vida”: trabalhou anos num livro de versos em que soube condensar com eloquente simplicidade esses “conflitos da razão e do sentimento”. Comigo, foi o título que deu ao livro que nos deu. Publicou-o em 1912, e desistiu de respirar “sob este céu imóvel como o tampo duma imensa sepultura”.

Logo no espelho do título o leitor fica avisado de que é consigo: “comigo”… é connosco.


[A sanguínea é de António Carneiro (1872-1930)]