terça-feira, abril 29, 2008

"Coimbra, 29 de Abril de 1981"

«Música gregoriana. E fiquei-me, enlevado, a pensar na humanidade do catolicismo. Na sua capacidade de harmonizar dentro de nós o que temos de bom e de mau, de puro e de impuro, de limpo e de sujo. Quase que podia jurar que os monges que ouvia, e atingiam no canto não sei que sublimidade, estavam longe de ser criaturas exemplares. Mas conseguiam arrancar de si inflexões de tal maneira lancinantes e pacificadoras, que era como se em cada modulação transformassem as trevas terrenas na claridade celeste.»

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.


[ Exactamente dez anos depois, o poeta - o homem - enfrentava-se de novo com o Anjo (ou, como se diz agora: “a consciência”) no duro caminho do seu “pendor religioso”. Advirta-se que pendor ou vertente é caminho que tanto se pode descer como subir… ]



Coimbra, 29 de Abril de 1991

« Durei o suficiente para tirar todas as provas reais à minha natureza. A mais difícil e concludente é esta em curso. O meu pendor religioso nem perante o sofrimento atroz em que agonizo cede à tentação dum qualquer alívio beato. Continuo fiel à realidade de ser uma pobre criatura transitória de barro, sem aparência instintiva de bênção redentora de qualquer graça providencial solicitada. Morro roído de dores, na perplexidade de sempre, a consciencializar maceradamente a extensão dos meus erros e falências, sem me perdoar de ter sido excessivo em tudo, e deixar o mundo triste e desiludido de mim, a olhar complacentemente os felizes que compram, com a renúncia à lucidez, a ilusão da sobrevivência eterna num outro mundo anestesiado.»

Miguel Torga, Diário, vol. XVI.

sábado, abril 26, 2008

"Coimbra, 26 de Abril de 1988"

« Falávamos do descalabro nacional. Mas, diante das minhas desalentadas futurações, interrompeu subitamente a conversa, com a afirmação peremptória de que nunca faltaria à pátria quem lhe regasse as flores. E deixei-o ir, repeso do meu descoroçoamento. Não há lucidez que tenha o direito de contrariar uma alma transportada de fé. A vida não presta sem milagres. E para os haver é necessário que alguém acredite neles.»

Miguel Torga, Diário, vol. XV.

sexta-feira, abril 25, 2008

Saudações de Abril






"Tudo se levanta como um cravo"

Herberto Helder (1963)

"Coimbra, 25 de Abril de 1988"

« Passeio pelos campos do Mondego, a ver o povo dar sentido, de enxada na mão, a uma data que outros, à mesma hora, festejavam com a retórica que parasita a História. Só ela, de há muito, martela os ouvidos de Portugal. O suor não tem voz. »

Miguel Torga, Diário, vol. XV.

quarta-feira, abril 23, 2008

TERRAS DE PITÕES E DA PICONHA



Esta Terra de Barroso, este altiplano cercado pelo diadema de serranias que vêm lá da Peneda, Soajo, Amarela e Gerês até à Cabreira, Alturas, Leiranco e Larouco parece a soberana coroa telúrica do nosso Portugal. Pois seja assim o régio viajante servido de sair de Montalegre e, cortejando pela beira do Alto Cavado, aponte o ceptro a norte, e assuba por Covelães à serra da Mourela, até à enorme e erma planura da Chã de Forninhos ( “forninhos” é um pitoresco e bem achado nome para o que seriam antas…), a meio da qual desviará para Pitões das Júnias, nas faldas do Gerês: “Um dos mais velhos rincões /Proclamamos com listreza; / Não há terra igual / Tão unida e tão leal / Nesta terra portuguesa”…

Nos anos 40, chegou aqui antes dos etnógrafos um jornalista ao que era então “um dos pontos mais longínquos e menos visitados de Portugal”; e escreveu isto:

«Na intimidade do seu viver, duma fraterna comunidade, não ganhou raízes por estes sítios a “erva ruim” da Inveja ou a “raça daninha” do Egoísmo. Todos os seus vizinhos convivem em suave harmonia, como se constituíssem uma única família. Não há ricos nem indigentes nesta humilde povoação, de gente singela, de todo consagrada ao amor à terra que lhe foi berço.
«Seus limites não figuram nas cartas geográficas do nosso Pai. Os naturais costumam defini-los ainda por uma série de “cruzes de termo” que se erguem, aqui e além, nos píncaros da Mourela e do Gerês (…). Sobre esta última baliza [ da Fonte Fria] colocou a Natureza dois relevos cónicos de rocha viva – que, vistos a distância parecem, numa visão estranha, os mamilos de uma “deusa votiva”.
«Terra de humildes agricultores e robustos pegureiros, repartem seu labor entre os prados e a serra, contentes por não terem outras ambições que não sejam o amanho das suas folhas de centeio, a colheita das batatas e do milho; enquanto os gados, de pelo lustroso e olhos meigos, apascentam nos terrenos maninhos que, embora retalhados como manta de farrapos, são ainda hoje pertença de cada um e de todos… Seu sustento é o mais frugal. Há o leite, há queijos saborosíssimos, há batatas que são concentração de farinha alimentícia, mel perfumado, água fresca e puríssima, e ainda um clima sanatorial que serve, para além do mais, para curar os mais saborosos presuntos de toda a região.
«Na aldeia há apenas cinco casas cobertas de telha. As restantes, em conjunto de estranha beleza, são choupanas de colmo, tão originário e acolhedor como os corações dos lavradores, dos pastores e das serranas, que espontaneamente acolhem o forasteiro num alvoroço de hospitalidade, como se o viandante que por aqui se encontra fosse sempre bem-vindo; de caras lavadas, tez morena, mãos calejadas, olhar franco, palavras simples e bem pesadas, todos buscam ser agradáveis e prestáveis a quem chega.»

O viajante que por aqui se encontra com o melhor de si há-de conferir esta breve impressão, inclusa no velho Guia de Portugal, com a minuciosa monografia que o etnógrafo Manuel Viegas Guerreiro publicou quarenta anos depois, em trabalho digno dos memoráveis publicados por mestre Jorge Dias sobre Rio de Onor e Vilarinho da Furna.

Listreza”, reparou acima o leitor no verso do “Hino de Pitões”: é palavra que não encontro nos melhores dicionários; mas o preciso e precioso significado será necessário descrevê-lo, se não o intuiu já? Olhe agora outra que Viegas Guerreiro ouviu, fixou e confirmou por aqui: “direitura”. Rimam com a rijeza e bravura daqueles de quem o mesmo Guia, a propósito da Guerra da Restauração, nos conta: « alguns anos antes [c. 1660], noutra investida algumas forças filipinas atacaram a povoação de Pitões das Júnias; os próprios moradores, porém, com as suas fundas e foices roçadoiras, escorraçaram-nos, não tendo sido necessária a intervenção das tropas regulares.» Ai deles, se neste ermo as forças naturais ficassem à espera da intervenção das “forças regulares”!...

Rijeza e bravura não menores foram precisas aos que, dois quilómetros a sul do povo, no recanto dum fundeiro vale refrescado pela ribeira de Campesinho, fundaram o mosteiro de Santa Maria das Júnias, anterior à reforma de Cister, cuja regra seguiu a partir do séc. XIII. Há notícia de intervenção beneditina, mas pode ser que seja muito anterior, recuando a um ermitério coetâneo dos primórdios da evangelização peninsular e que talvez assentaria primeiro no monte onde fica hoje a ermida de S. João da Fraga; a esta vêm a pé de Pitões em romaria anual, tão florescente e digna de se ver que já traz gente do Porto a ela.

Também não escapou ao leitor o olho lúbrico que o supracitado jornalista deitou aos “mamilos da deusa”. Pois fique sabendo que aos tais chama aqui o povo “Cornos da Fonte Fria”, em pleno Gerez, no sítio onde foi apanhado por um nevão e morreu de frio o santo abade Gonçalo Coelho, na noite de 2 de Fevereiro de 1501: foi encontrado de joelhos, enterrado na neve, com os braços em cruz e os olhos fixos no céu. A história não refere que estivesse acompanhado, nem explica o curioso caso de um abade monacal a andar sozinho, àquelas horas, em tal ermo.

Se, voltando à escalvada planura da Chã de Forninhos, o viajante prosseguir para norte, descerá até à não menos vetusta aldeia de Tourém, fronteira à Galiza. Dela, para leste, partia um caminho de pé posto, ladeando sobranceiro a margem esquerda do rio Salas; era o “caminho privilegiado” até às terras do Couto Misto de Rubiás, que saudámos aqui há dias. Atravessava a vetustíssima terra da Piconha, a que D. Sancho I deu foral conjunto com Tourém; tinha um castelo de que só nos falam hoje algumas quase desapercebidas ruínas num monte, próximo à aldeia galega de Rondin, e o bonito desenho de Duarte d’ Armas, no seu Livro das Fortalezas: é que foi completamente arrasado pelos espanhóis na Guerra da Restauração, em 1650. O da última vez lembrado Tratado dos Limites, de 1864, deixou aos espanhóis o monte e as ruínas. Era o caminho dito “privilegiado” porque todas as mercadorias que por ele transitavam, fossem de contrabando, entre Tourém e Rubiás, não podiam ser objecto de vistoria ou confisco nenhuns por quaisquer autoridades. Ora, entre os privilégios do Couto Misto encontrava-se o de os habitantes livremente cultivarem o tabaco e terem moinhos para o moer. Mas já desde os finais do séc. XVIII as autoridades espanholas instavam com as nossas para acabarmos com a produção e proibirmos o cultivo; do nosso lado, eram os poderosos Contratadores Gerais do Tabaco a instigarem o mesmo: pagavam eles 2. 400 cruzados de imposto ao Tesouro… Em 1850 tentou-se limitar ao menos a produção, confinando-a às estritas necessidades de consumo privado de cada produtor. Parece, no entanto, que os 300 pés de planta atribuídos a cada um estavam longe de satisfazer os couteiros, que eram uns fumadores inveterados e continuavam a encher de fumos o invisível “caminho privilegiado” do contrabando… O Tratado de 1864 satisfez enfim as preocupações sanitárias dos capitalistas – e acabou com o vício.

Faz-se tarde, a caminhada foi longa e vai cansativo este postal. Se não sobrou para o leitor nenhuma broa cozida no monumental forno do povo, de Tourém (uma broa que vale por um jantar!), retroceda a Pitões à Casa do Preto ou à Taverna Celta: recomendo um cabrito guisado à barrosã, junto à lareira desta Terra Fria, acompanhado com um aquecedor tinto da Terra Quente. A sobremesa, faço eu questão de lha oferecer aqui no próximo. Para já, fique-se com um pequeno, digestivo passeio à lumieira da Lua, há poucos dias cheia. O quê, não se lembra da última vez que viu o luar? Não faz mal: nunca viu nenhum assim. Se olhar em torno com atenção, verá mais: que estes fragões de granito rilhados das ventanias e nevadas não estão imóveis nem são mudos. E é fácil responder-lhes em agradecido verso.

terça-feira, abril 22, 2008

"O Navio de Espelhos", Mário Cesariny

Este "Navio de Espelhos" é mais lírico e simbólico do que o "Há uma hora". Quase se trata de uma pequena alegoria. Alegoria de quê? Deixo ao leitor a liberdade de interpretar. Solicitam-se interpretações aos mais afoitos.
Segundo Cesariny, o mote para esta composição poética foi o conto "Manuscrito encontrado numa garrafa", de Edgar Allan Poe. Nesta breve narrativa, o narrador, que sobrevive ao naufrágio do seu barco, é recolhido por um navio misterioso. Mais misteriosa é ainda a tripulação de personagens fantasmáticas, que são como que clones de um mesmo molde e que parecem existir num mundo paralelo.
Voltando ao poema de Cesariny, retenho estes versos inspiradores:

"Quando um se revolta há dez mil insurrectos
(Como os olhos da mosca reflectem os objectos)"

sábado, abril 19, 2008

Há Uma Hora, de Mario Cesariny

É por poemas como este, mas não só!, que considero Cesariny um dos maiores poetas dos três quartéis finais do século XX. Admiro-o também porque levou à prática a sua filosofia de vida surrealista, visceralmente antiburguesa. Qual Diógenes, também no seu caso a arte e os princípios teóricos, de facto, se casaram com e fecundaram a vida.

Depois há aquele intensíssimo poema de um só verso:


Ama como a estrada que começa.

quinta-feira, abril 17, 2008

TRÊS LUGARES MÍSTICOS




Estes lugares, elíseos só na altitude e beleza natural, têm precisas coordenadas de latitude e longitude terrenas. Se ao leitor já sucedeu compulsar alguma documentação das nossas antigas chancelarias, terá reparado numa expressão recorrente: “mero e misto império”. Neste caso, “misto/mixto” tinha como equivalente semântico - “místico” -, um arcaico adjectivo corruptamente derivado daquele. E é assim que uns seis dos sessenta admiráveis livros da chamada Leitura Nova, que o nosso “Rex Magnificus” D. Manuel I mandou compilar, copiar, iluminar e arquivar na Torre do Tombo, têm o nome de Livros dos Místicos. Eram estes uma miscelânea de documentos legislativos de diversa natureza, que envolviam diversas comarcas conjuntamente. E aquela expressão “mero e misto império” significava um direito ou poder absoluto, não dividido ou partilhado, legalmente detido por alguma entidade sobre alguma coisa. Não chegava a mais o misticismo dos nossos bacharéis legistas. E não me chega a mais o despudor de soprar poeira de arquivos sobre o leitor, que vinha convidar a sítios arejados.

A estes lugares benditos que há na nossa terra portuguesa quero crer (não me desmintam) que não chegou aquela pestilência de que falámos no postal anterior, parece que a mais mortífera que assolou a humanidade em toda a História, e que matou gente desde a Lapónia à Papuásia: a “gripe espanhola”, como também ficou conhecida. E é curioso, até parecia ser labéu aplicado de justiça à mortandade que o imperialismo colonialista castelhano fez por essas Américas. Mas, se o leitor amigo é um rábido crítico anti-colonialista, não se precipite; também aqui os micróbios aproveitaram a oportunidade para a sua estratégia de letal de colonização: a varíola, o tifo e o sarampo mataram muitíssimo mais ameríndios que as armas de Cortez e de Pizarro.

Afinal, o nome “gripe espanhola” é muito injusto para a Espanha, que não foi o foco inicial nem transmissor da peste, e deve-se apenas ao facto de ter sido durante a 1ª Guerra um país neutral com a liberdade de expressão e comunicação que não existia nos países beligerantes, afectados pela censura. Foi através dos noticiários espanhóis que os europeus ficaram a saber melhor do que se passava, e o nome que lhe pregaram foi o prémio de ter garantido um elementar direito de cidadania…

Tivemos, portanto, no século XX as maiores guerras e a maior epidemia de todos os tempos. Parece que a Grande Mãe Gaia tomava as suas precauções para poder suportar os seis mil e quinhentos milhões que tem de sustentar agora. Imagine o leitor que não tinham existido tantas e tais guerras e pestilências… - Estávamos condenados hoje à leitura obrigatória do sr. Ricardo Malthus desde os bancos da escola, e a nossa Terra em risco de saltar da órbita, com o peso de tanta gente…

Com estes rodeios vamos rodeando o caminho, em boa paz e sossego, que o viajante maravilhado com as vistas da entrada pelo Alto do Fontão, no Leiranco, não há mister de atalhar com pressa automóvel. Eis-nos chegando às Terras do Barroso, em pleno maciço central galaico-duriense, cuja capital se ufana de exibir um dos nossos mais belos castelos dionisinos: Montalegre. Dominando o vale do Alto-Cávado, temos uma corda de serras em redor. Se escolher a mais alta, tente chegar ao “Grande Corno” do Larouco, às nascentes do rio na Fonte da Pipa. Tem aos pés a fronteira galega. Olhe na direcção noroeste: diante si estão cerca de dois mil e setecentos hectares da terra onde ficavam os “três lugares místicos”, como assim os chama e escreve no séc. XVIII o escrivão do juiz Custódio Machado, ao serviço da ducal Casa de Bragança: eram Rubiás e Santiago, a sul do rio Salas; Meãos (ou Meaus, em galaico), a norte desse rio. O termo destes três lugares formava o antiquíssimo Couto de Rubiás, cuja origem se perde na “bruma do tempo”. Cada homem destes lugares tinha o privilégio de escolher, na boda do seu casamento, qual a nacionalidade que queria para si e para os seus: se levantava o copo em honra do rei de Portugal, ficava português e gravava um “P” no lintel de pedra da porta de sua casa; mas, se brindava ao monarca espanhol, era um “G” que punha sobre a porta. Assim, presume-se, um nascido galego podia tornar-se português quando do casamento, e vice-versa. Portugueses e galegos governavam-se por um juiz, eleito entre eles e confirmado pelo juiz de Montalegre, de que dependiam na vara do crime, em nome do Duque de Bragança, senhorio da maior parte deste Barroso desde o séc.XV; para efeitos religiosos, dependiam da diocese galaica de Orense. Além de um tributo anual simbólico que cada um pagava à respectiva Coroa da sua nacionalidade, estavam os habitantes do Couto isentos de mais impostos ou contribuições de qualquer género; e, entre outros privilégios, estavam isentos de todo o serviço militar, de licença de uso e porte de armas de caça ou defesa e podiam asilar foragidos às justiças dos dois países. A jurisdição mista destes lugares místicos terminou com a integração total em Espanha, pelo Tratado dos Limites de fronteira, de 1864, que redefinia este e outros casos de marcação duvidosa ao longo da raia luso-espanhola, até à embocadura do Caia com a Guadiana (e só até aí, por causa de Olivença). Mas nenhum outro caso havia com população mista e com tais e tantos privilégios. Era uma espécie de Andorra encravada entre Portugal e a Galiza.

Se o leitor acordou naturalmente alegre e bem disposto em Montalegre, e olhando a ocidente lhe riram convidativos os dentes rochosos do Gerês reluzindo ao sol da manhã, eu lhe direi para a semana que havia um outro caminho – um “caminho privilegiado” – para chegar ao velho Couto de Rubiás. E se acordou feliz por estar asilado das pestilências das tumultuárias urbes, deliciado com os aromas das urzes e giestas floridas esparsos no ar diáfano destas altitudes, eu lhe contarei como os problemas luso-espanhóis com os místicos lugares foram possivelmente muito agravados por causa… do tabaco.

terça-feira, abril 15, 2008

"The Road Not Taken", de Robert Frost

TWO roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there

And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I—
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.


(Os três versos finais sintetizam "the story of my life".)

"Coimbra, 15 de Abril de 1988"

«Tentar ser livre a todo o custo. Não para o conseguir, mas para ficarmos a conhecer até onde seríamos capazes de ir se o fôssemos.»

Miguel Torga, Diário, vol. XV.

segunda-feira, abril 14, 2008

“S. Martinho de Anta, 14 de Abril de 1965”

« A aldeia, o campo, a primavera. Três faces da mesma evidência. A colmeia inamovível de gerações sucessivas, a extensão quinhoada; a vez da sazão das seivas. O estável no instável, o estremado no desmedido, a permutação circular. A lei sem a letra. A ordem natural, visível. O equilíbrio do universo físico, a harmonia do real. O homem, em vez de escravizado ao futuro e sem pé no presente, integrado no tempo cíclico das estações, entanguido ou abrasado como elas, periódico também nos gestos essenciais, a semear em Maio e a colher em Setembro. A constância das forças elementares, a fonte a jorrar do Inverno e a secar do verão, o pássaro a fazer ritualmente o seu ninho. É neste ritmo de vida que no íntimo acredito, só nele encontro paz e tenho esperança. O dia de trabalho e a noite de sono, o domingo de repouso no fim da semana afadigada, a morte a alimentar a certeza da ressurreição, a luz do sol a ofuscar todas as candeias. Sei o que a técnica e a antropotécnica querem e conseguem, compreendo as violências que o progresso exige, e há trinta e tantos anos que profissionalmente pasmo de ver até onde a biologia pode ir e a fisiologia se acomoda. Seres criados por inseminação artificial, horas trocadas, pílulas alimentícias. Mas não me reconheço inteiramente nessas sábias e desembaraçadas manipulações. O pensamento entra na retorta e deixa de fora o instinto, fiel ao chouto da terra. Por mais cera científica que meta nos ouvidos, continuo a ouvir os protestos conservadores da espécie, que teme no meu corpo uma aventura em que vislumbra, aterrada, a sombra do seu aniquilamento.»

Miguel Torga, Diário, vol. IX.

"Stopping by Woods on a Snowy Evening", de Robert Frost (1874-1963)

Whose woods these are I think I know.
His house is in the village though;
He will not see me stopping here
To watch his woods fill up with snow.

My little horse must think it queer
To stop without a farmhouse near
Between the woods and frozen lake
The darkest evening of the year.

He gives his harness bells a shake
To ask if there is some mistake.
The only other sound's the sweep
Of easy wind and downy flake.

The woods are lovely, dark and deep.
But I have promises to keep,
And miles to go before I sleep,
And miles to go before I sleep.


(A lapidar quadra final serve de mote a muito boa gente em certos momentos das suas vidas.)

quinta-feira, abril 10, 2008

"Coimbra, 10 de Abril de 1989"

« Cinco enfermeiras austríacas assassinaram cinquenta doentes num hospital de idosos. Depois dos campos de extermínio, nada é de estranhar neste mundo sem alma. Deus morreu realmente na consciência humana. Agora, quando temos pelos no coração, nenhum código penal nos detém. Vamos até aos confins da nossa animalidade. »


Miguel Torga, Diário, vol. XV.

quarta-feira, abril 09, 2008

LA LYS




« 24 de Dezembro de 1914. Véspera de Natal. Frio. O termómetro da nossa janela marca zero.» Não achou mais neste dia que falar senão só do tempo o nosso ministro em Paris, João Chagas. Figura das mais gradas e prestigiadas do novel regime republicano, em que já fora ( e voltaria a ser) efémero primeiro-ministro, a prosa habitualmente minuciosa e estirada do Diário ficou a documentar um dos políticos que, desde a primeira hora, mais se bateram pela nossa intervenção europeia na Guerra. Ainda no dia 23 anterior escrevia mais uma longa carta, esta endereçada ao recém-empossado ministro português dos Estrangeiros, a contrastar “a nossa intervenção na guerra” com a neutralidade assumida pela “retrógrada e reaccionária Espanha”: - “é um novo Aljubarrota” (sic)!...

Nessa mesma noite, a frente do “teatro de operações” está em sossego, como suspensa das cenas inauditas a que vai assistir: das linhas alemãs irrompe, não a voz da metralhadora mas a dum anónimo soldado a cantar uma canção tradicional de Natal. Outras se lhe juntam em coro; e, quando acabam, são os antagonistas na trincheira em frente que lhes respondem com outras inglesas… Na manhã de 25, quando o nosso ministro passeava placidamente pelas ruas de Paris em automóvel e chauffeur emprestados pela condessa de Carvalhido, soldados britânicos e alemães organizavam na “terra de ninguém” um jogo de futebol… Esta “terra de ninguém” era o nome da área que ficava no meio das primeiras linhas de trincheiras em confronto. Ficaria ela conhecida entre os nossos soldados pelo nome de “avenida Afonso Costa”, em justiceira honra do chefe político que viria a impor a nossa intervenção.

De facto, chegavam ao sul da Flandres em Janeiro de 1917 os primeiros soldados do Corpo Expedicionário Português, que se previa vir a contar com cerca de 50 mil homens, mais 10 mil do que os que enviámos para África nos quatro anos de guerra. A esposa do nosso embaixador Chagas já andava a coser meias para os soldados desde os princípios da guerra; porém, os nossos primeiros mortos foram amortalhados numa serapilheira cosida e envoltos na bandeira britânica, por não haver nenhuma portuguesa disponível, e tiveram de ser os nossos capitães a cotizarem-se para mandarem confeccionar umas tantas…. Mas no Inverno de 18, que naquelas planuras da Flandres foi ainda mais agreste que o costume, os nossos tinham recebido umas sobrecasacas de pele de carneiro sem mangas, semelhantes aos pelicos usados pelos pastores alentejanos; uma indumentária que os alemães, na trincheira em frente, a menos de 100 metros, receberam com um gozador coro de “mé-més”!...

Até que veio a madrugada de 9 de Abril de 1918, no vale da ribeira de La Lys, com a divisão portuguesa, fustigada pelo Inverno e pelos ataques repetidos ao longo do mês de Março, à espera de ser rendida por uma divisão britânica, o que estava combinado para o dia seguinte. E é precisamente no sector desta divisão que oito divisões alemãs irão concentrar a investida, preparada desde as 4.15 da manhã com uma fortíssima barragem de artilharia pesada que varreu as linhas recuadas dos postos de comando e neutralizou as comunicações com as primeiras linhas de defesa. Às 7.50 iniciava-se o assalto da infantaria, a coberto do nevoeiro que se fazia sentir, em grupos de 20-30 homens de baioneta armada e precedidos por metralhadoras ligeiras. A batalha viria a terminar às 15.40, com a retirada dos batalhões luso-britânicos para Saint Venant. Ficaram aí mortos nesse dia mais de um milhar dos nossos. Nas zonas conquistadas pelos alemães, em algumas bolsas que tinham resistido sem rendição nem recuo, foram depois encontradas umas toscas cruzes de madeira com este dizer: “Hier ruth ein Taffer Portuguiese Krieger”: “Aqui jaz um valente soldado português”.

Não ficou anónimo e desconhecido entre os mortos de La Lys um transmontano de Murça cuja fotografia encima este postal. Já notado e elogiado nesse dia, o soldado Aníbal Augusto Milhais, três meses depois, “em Huit Maisons atacou com grande vigor o avanço inimigo, não abandonando o posto senão quando portugueses e escoceses já haviam retirado, salvando alguns destes de caírem nas mãos do inimigo, pois protegeu a retirada de todos manejando a sua metralhadora, indiferente à artilharia e metralhadoras inimigas.”

A 11 de Novembro, às 12.55 horas, terminava a 1ª Guerra Mundial com cerca de 20 milhões de mortos, militares e civis. Depois da epidemia de tifo, que tínhamos sofrido em 1917, os nossos soldados regressavam a Portugal com a “pneumónica” que, entre nós, em dois anos, terá feito mais de 150 mil mortos, e em todo o mundo mais de 50 milhões de mortos. Os vírus, as pulgas e os piolhos tinham provado serem mais letais que as armas inventadas pelos homens. A lição que estes tiraram foi alistar os micróbios nas forças armadas e pô-los de prevenção em culturas de laboratório, para alguma futura guerra bacteriológica.

A 8 de Maio de 1919 assinava-se o Tratado de Versalhes. Os nossos 7 908 mortos na guerra valeram-nos a restituição de Quionga, em Moçambique, que aos alemães haviam tomado, e o direito de pertencermos à comissão fundadora da Sociedade das Nações… João Chagas apontava no seu Diário: «… o parlamento francês celebrou já a apoteose dos aliados da França. Falou-se em todos: não se falou em nós. De resto, é de toda a evidência que existe o propósito de ocultar o caso de Portugal…» O outro paladino da nossa nunca consensual, adiada e finalmente desastrada intervenção europeia, o dr. Afonso Costa, chefiara a delegação diplomática portugesa às negociações do Tratado. Pelo facto, receberia dias depois a medalha da Ordem da Torre e Espada. A mesma que condecorava o peito do soldado Milhais.


terça-feira, abril 08, 2008

"Ozymandias", de Percy Shelley



I met a traveller from an antique land
Who said:—Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. Near them on the sand,
Half sunk, a shatter'd visage lies, whose frown
And wrinkled lip and sneer of cold command
Tell that its sculptor well those passions read
Which yet survive, stamp'd on these lifeless things,
The hand that mock'd them and the heart that fed.
And on the pedestal these words appear:
"My name is Ozymandias, king of kings:
Look on my works, ye mighty, and despair!
"Nothing beside remains: round the decay
Of that colossal wreck, boundless and bare,
The lone and level sands stretch far away.

(Ozymandias era o apelido grego de Ramsés II.)

“Lisboa, 8 de Abril de 1965”

[Visitando no Museu de Arte Antiga os Painéis atribuídos a Nuno Gonçalves]

« (…) Mas se a nacionalidade do seu autor é brumosa, que deslumbradora claridade portuguesa irradia da obra! (…) »

Miguel Torga, Diário, vol. X.

[Visitando o seu familiar miradoiro de S. Leonardo ( …proa de um navio de penedos, /A navegar num doce mar de mosto ) onde hoje gravados na pedra estes versos que o poeta lapidou no coração, dizia noutro ano: ]


S. Leonardo de Galafura, 8 de Abril de 1977

« O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da Natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta. »

Miguel Torga, Diário, vol XII.

domingo, abril 06, 2008

“S. Martinho de Anta, 6 de Abril de 1955”

« Conseguir na prosa a dignidade e a força descarnada destas fragas, e nos versos a pureza e a largueza dos horizontes que delas se descortinam, é o instintivo propósito da minha ambição de artista. (…) »

Miguel Torga, Diário, vol.VII.

sexta-feira, abril 04, 2008

SIDÓNIO MIGUEL: DO ELO MANTIDO NA NOITE ( 4 SONETOS )



António Ribeiro da Silva e Sousa não é lá muito poético nome de poeta!… Nasceu em Leiria, 1886, quem foi de Lisboa olissipógrafo erudito; o jornalista, dramaturgo, romancista, crítico musical e melómano tradutor duma colecção de biografias de grandes compositores; quem foi também um importante doutrinador do regime corporativo, - o poeta que se deu o nome Sidónio Miguel e nos deixou, entre 1929 e 1943, uma série de volumes de poesia, entre os quais seis só de sonetos. Para além dos títulos das obras, pouco mais consta da notícia biográfica da Grande Enciclopédia, redigida quando o poeta ainda era vivo. Pelo Dicionário Cronológico de Autores Portugueses ficamos a saber que faleceu em 1957. E nada mais se encontra nas Histórias da Literatura (Lopes & Saraiva; Lopes & Marinho; António Barreiros) e na enciclopédia Biblos, - porque todas o ignoram. Injustamente, como o leitor apreciador reconhecerá logo à primeira leitura. Reconheceram-no os poetas coetâneos José Régio e Alberto de Serpa, quando o incluíram na Antologia de Poesia Religiosa Portuguesa que organizaram. É, de facto, com aqueloutro que aqui já homenageámos, um dos poucos que no nosso século XX cultivaram a difícil forma do soneto como meio de expressão preferida e habitual; e este Miguel conseguiu refiná-la a níveis que por certo farão a delícia do analista sintáctico e estilístico. (Baste citar a pluralidade de leituras que este mestre da elipse e do hipérbato consegue sugerir nos dois últimos versos do terceto que fecha com áurea chave o primeiro soneto dos apresentados infra.)

Não é por termos tido uma maré-cheia de muitos muito bons poetas no nosso século de ouro literário - que foi o XX português (o canto do cisne?...) -, que hoje na podrida vasa em que nos atolamos podemos dar-nos o luxo de esquecer os esquecidos. Esquecido, Sidónio Miguel? Apenas nós dele; que ele, com “ força e punhos da mão que as mãos estreita” as deu a “meus vindouros que num mundo irmão / do meu que cessa me esperam…” Aqui fica pois um aceno de lembrança e comovido reconhecimento ao discreto que “na voz sumida em todas que domina / um alargar do coração vidente”, previu e soube levantar um grito: “… o grito me levanta / dos temporais na súplice cadeia / de elo perdido em noite que vem perto…” A noite chegou e é onde estamos. Quem o ouviu, e não soçobre de assombrado em abatimento mudo, responda, e retome o elo: “ o pequenino laço / do que me é sonho e dói na claridade ”…

Sendo assim, “a voz não cessa” – e a dura vigília pode vir a ganhar a manhã… a “outra idade”…
*
HORA COM DEUS

Luz se me apaga de intelecto vivo,
Duma razão que os mundos compreenda,
Quando dos céus um suplicar me prenda
Ao seu azul, perpétuo e fugitivo?...

Verbo de Amor, da Fé, apenas venda
De olhos que fecha o tributar passivo
A uma saudade, longo e pungitivo
Cismar o meu sem termo e sem emenda?...

-Orgulho cale. Engenho não persista
Duma ignorância que se desconhece,
Real e triste, que um dizer ilude…

Cale e mais longe veja em quanto exista,
Verdade minha onde ilumina a prece
De hora com Deus humana a plenitude…


*


MOMENTO

Fechada natureza sobre si,
dum Céu que meus desígnios acompanha,
me surpreende o jeito que de estranha
a vida torna em minha, a que sorri…

De estrelas é o momento, onde tamanha
de mundos tais e tantos que não vi,
verei jamais a conta onde me li,
me leio em profundeza da montanha;

me escuto a sós e grito dum viver,
cá dentro as infusões da viva graça,
duma harmonia oculta do meu fim…

Destino que me envolve num crescer
- ao ritmo dum segundo que me passa –
da Eternidade aberta sobre mim…


*

MEU UNIVERSO

Meu universo doutros que pressinto…
De meu lhe quero, o meu querer lhe vota,
uno e concorde de expirante nota,
dos corações meu coração retinto…

Meu na grandeza viva, donde brota
uma unidade, o meu dizer de instinto,
verbo afogado dum rezar distinto
numa harmonia súplice e remota…

Verbo de calma envolta o meu sentir,
suspende os mundos todos de imperfeita
endeixa minha, gemebunda e vaga…

Eco teimoso, glória do porvir,
força e punhos da mão que as mãos estreita,
vidas me aperta a vida em que me apaga…



*


O CANTO DA CRIAÇÃO


A voz não cessa. Eterno, o Anjo ardente
das asas longas tem descido o beijo.
Escuta, envolve em matutino adejo
rumo das cousas, uno e persistente…

…Rumo das almas, uno e largamente
nos céus, na terra, o eco dum harpejo;
sorriso e coro aberto e benfazejo
às gerações que nutre ao sol vivente…

…Irradiado a coro que suscita
hoje, amanhã, mais longe, a outra idade,
da Criação o canto e a humana grita

da terra aos céus, da terra quanta invade,
cobre e domina de almas de infinita
onda e sussurro o mar da Eternidade…








quinta-feira, abril 03, 2008

"Vila Real, 3 de Abril de 1976"

« (…) Começo a temer que estejamos no fim da nossa História. Derrubadas as fronteiras naturais, seremos um trago na garganta da Europa. (…) »

Miguel Torga, Diário, Vol. XII.