sábado, agosto 30, 2008

O MELODINO



« Vemos que dos nossos insignes como sábios poetas portugueses, tem feito já o tempo tão pouca conta, que mal entre nós duram ou se conhecem seus nomes: dignos certo de prevalecer contra a guerra dos dias. Não só os ignoram de todo os estrangeiros, nós próprios os desconhecemos. Réu é nosso descuido de sua infâmia. A malícia do tempo se escusará com a nossa malícia. »

Melo digno era de lembrança e aplauso unânime por parte de castelhanos e portugueses, se pôde ser julgado “el hombre de más ingenio que produjo la Península Ibérica en el siglo XVII, a excepción de Quevedo” – pelo exigente crítico que foi don Marcelino Menéndez y Pelayo. E logo até por motivos de nascimento – 1608 -, sendo D. Francisco Manuel de Melo filho de portugueses pelo pai e de castelhanos pela mãe. Mas foi também um consumado bilingue, na tradição dos nossos quinhentistas, sem deixar de ser o cosmopolita europeu que tanto se podia encontrar no comando militar duma hoste, nos campos da Flandres ou da Catalunha, como a conferenciar com sábios na universidade de Lovaina ou a tratar com os príncipes nas cortes de Inglaterra, França e Itália.

Estava de facto talhado para grandes feitos, este que aos 18 anos de idade já tinha escrito uma Concordância Matemática das Antigas e Modernas Hipóteses e, embarcado na esquadra que guardava a nossa linha costeira, de tal maneira se houve contra os piratas que mereceu ser armado cavaleiro pelo capitão do seu navio – D. Manuel de Sousa Coutinho (sim, o mesmo que viria a ser Frei Luís de Sousa). Não foi o menor dos seus feitos o ter sabido aproveitar os 11 anos de preso e 3 de degredado, numa relativamente curta vida de 58 anos, para compor uma copiosíssima obra literária, infelizmente na maior parte perdida ou ainda inédita. Como ele mesmo disse: “Não perdi tempo que não aproveitasse neste honesto lavor da escritura.” Nós é que por infâmia nossa o perdemos e por malícia o não aproveitámos. E de todo o não merecia, já pelo valor intrínseco de tanto que escreveu quem é um dos maiores artistas da nossa prosa, já em paga do erudito generoso que, membro da selecta Academia dos Generosos, foi o primeiro a trabalhar numa Biblioteca Lusitana (“um Catálogo de todos os escritores deste Reino, em qualquer ciência, arte, faculdade ou disciplina”), só no século seguinte levada a efeito pelo padre Diogo Barbosa Machado.

Foi D. Francisco Manuel, como diz António Sérgio, “um homem do mundo, aristocrata e artista que frequentou cortes, exércitos, armadas, ambientes populares, academias, que viajou e que tratou com todas as classes, que soube lidar com todos os homens e interessar-se por todas as coisas, que logrou transmitir-nos com pitoresco a sua variadíssima experiência, e que ao pé do ditame de um filósofo nos alega o de um recoveiro, ao lado da sentença de um monarca nos apresenta os ditos de um plebeu.” E por isso que nesse “homem do mundo” a pletórica experiência das diversíssimas circunstâncias, felizes ou infelizes, da vida que lhe coube viver não lhe entibiou nem entediou a responsabilidade de reflectir para si e com os outros sobre como melhormente viver, - então pode-se dizer, com o mesmo Sérgio, que ele “é sempre, essencialmente, um moralista”. Um moralista que, em duas palavras, sendo “homem do mundo”, soube ensinar-nos com o próprio exemplo a vencer o mundo. Dou já a seguir breve prova disto, guardando outra mais dilatada e definitiva para outro dia. É uma carta a D. João da Gama, em que o nosso autor, experimentando pela primeira vez a prisão (durante cerca de um ano, em 1637-38, após os motins populares de Évora contra o domínio castelhano) agradece umas maçãs que aquele enviara de presente.


« Amigo: Este achaque é já velho nas maçãs: serem fruta de culpa e de discórdia; mas estoutro de esquecimento, de que vós as culpais, nunca ouvi que até hoje se lhe descobrisse. Pelo menos as que me mandastes livres estão desse perigo, porque são tais que eu me lembrarei sempre delas e de vós, Senhor, ainda que para mais não seja que para vos pedir outras. De haver faltado em vo-las agradecer tem culpa o portador, que se voltou tão depressa como se mas vira estar contando. Mas, pois elas foram sem conto, porque eu as não contei, sejam também sem conto as graças que eu vos dê por elas; dizei muito embora que eu vo-las pago com graças.

O licenciado N. cuidou que vos lisonjeava em vos convidar do seu engano; que, entre enganos e lisonjas, não há parede em meio. Mal me podia ver no coche, se não saí de casa; salvo se, para ser mais mofino, ando em duas figuras, porque uma só não pode dar aviamento a tanta desgraça.

Agora me mandam crer me querem soltar hoje. O mesmo me prometeram a semana passada. Já me não entendo com palavras de Príncipes. Pode ser que com a semana se passasse a memória da promessa. Nos grandes até as faltas são venturosas, porque nem se lhes provam nem se lhes emendam. Donde vem haver tão poucos que se emendem, se acaso têm de que emendar-se. Desta sorte me têm aqui. Deviam de querer dar-me este martírio da esperança, vendo que ao da desesperação eu me não rendia. Este é o meu estado; o meu desejo ver-vos e servir-vos, e que vos guarde Deus, amigo e Senhor, como a todos nos importa.

Castelo, 16 de Novembro, 1638. »


Ao que dizem abalizados críticos, não prendaram com muitas graças ao nosso poeta Melodino as “musas afáveis” (como ele as trata, em carta ao citado Quevedo). Assim terá sido, que eu (não por surdez) quase nada inda ouvi de como ele tocou a “tuba de Euterpe” ou a “sanfonha [sic] de Calíope”. Sei que era capaz de escrever poemas de quilate antológico como este, com que termino e aqui deixo fiado ao gosto do leitor.


Soneto LIX

ANTES DA CONFISSÃO

Eu que faço? Que sei? Que vou buscando?
Conto lugar ou tempo a esta fraqueza?
Tenho eu mais que acusar, por mais firmeza,
Toda a vida, sem mais como, nem quando?

Se cuidando, Senhor, falando, obrando,
Te ofenda minha ingrata natureza,
Nascer, viver, morrer, tudo é torpeza.
Donde vou? Donde venho? Donde ando?

Tudo é culpa, ó bom Deus! Não uma e uma
Descubro ante os teus olhos. Toda a vida
Se conte por delito e por ofensa.

Mas que fora de nós, se esta, se alguma
Fora mais que uma gota, a ser medida
Com o largo mar da tua Graça imensa?

quinta-feira, agosto 28, 2008

"S. Martinho de Anta, 28 de Agosto de 1979"

« Cada vez mais propenso ao silêncio. Nele, ao menos, posso escutar o que a própria voz me não deixava ouvir. Passou o tempo em que toda a minha infelicidade se resolvia na felicidade de um verso. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.

quarta-feira, agosto 27, 2008

"S. Martinho de Anta, 27 de Agosto de 1986"

« “Na minha terra sou quem sou; na terra alheia sou quem vou.” É escusado. Por mais que leia e releia, nada consigo aprender com a sabedoria dos sábios que o povo já não tenha plasmado num rifão. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIV.

terça-feira, agosto 26, 2008

"Chaves, 26 de Agosto de 1991"

« Viver clandestinamente. Que outra maneira airosa tem o poeta de o ser neste mundo de hoje, senão a de parecer uma coisa por fora e ser outra por dentro? Mas sê-lo, então, de verdade, frontal e desassombradamente, com a prova insofismável da poesia. »

Miguel Torga, Diário, vol XVI.

sábado, agosto 23, 2008

"S. João da Pesqueira, 23 de Agosto de 1979"

« Olho mais uma vez de um dos seus altos mirantes este meu Doiro, único rio emblemático de Portugal, e a sucessão tumultuosa de montes que vai sulcando. E dou íntimas graças ao destino por me ter feito nascer num cenário assim, tão naturalmente grandioso e onde tão naturalmente me sinto poeta. Não há bardo sem palco próprio. O meu não podia ser outro. A minha voz é também uma levada barrenta de esperança que tenta rasgar e reflectir a tormentosa ortografia da vida. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.

quarta-feira, agosto 20, 2008

TRINDADE COELHO



“Quando chegará, minha boa amiga, o ‘reino de Deus’? ”…

… Com esta grande pergunta terminava a breve “Autobiografia” que, em 1902, José Francisco Trindade Coelho enviava a uma amiga e correspondente estrangeira. Em Novembro de 1907, corria em pleno a ditadura franquista, “foi publicado um decreto que sujeitava os processados políticos à alçada do juiz criminal, para serem julgados pela lei de 13 de Fevereiro de 1896, contra os anarquistas – a lei celerada, como lhe chamavam os avançados. Trindade Coelho não se conformou com esta determinação governativa. Para não a ter que aplicar, como magistrado do Mistério Público, pediu a demissão do seu cargo, sem olhar a interesses pessoais, sem considerar que o seu lar ficava sem o pão de todos os dias. Confiava, o pobre ingénuo, em que lhe viria a ser dada uma reparação…”

Não era a primeira vez que o integérrimo advogado da Justiça dizia “- Não!” aos políticos. O funcionário público não aguentou mais aplicar leis com que não concordava. E já uma vez os desgostos da profissão e o excesso de trabalho lhe tinham quebrado ao ânimo e as forças, que precisaram de meses a recuperar fora da cidade e dos tribunais. Agora, quem ainda nesse mesmo ano de 1907 impulsionava e ajudava a lançar a Liga Nacional de Instrução ( em que também colaborou Manuel Laranjeira ), não iria resistir a novo e irrecuperável quebranto. Por um Agosto de há cem anos, com apenas 47 anos de idade, deixava-nos Trindade Coelho, não sabemos nós se atraído por uma grande resposta…

Não nos deixou sem palavras com que nos consolássemos. E bastariam só as da mais popular das suas obras – Os Meus Amores. Amores que o povo fez seus, de neles tanto se rever, a ponto de lhe recontar trechos como essa “Parábola dos Sete Vimes”, que eu em criança ainda tive a dita de ouvir de viva e convicta voz. Quando veio de Mogadouro e era pré-universitário estudante num colégio do Porto, um obscuro jornalista dum obscuro jornal o reconhecia, convidava e apresentava assim aos leitores: “O artigo que vai ler-se é de uma verdade incontestável e manifesta claramente que o seu autor tem um coração bondoso e a consciência de um justo.” E continuando a escrever sempre em jornais e revistas, o mesmo se manifestou a alguém menos obscuro – Camilo Castelo Branco. Sem o conhecer pessoalmente, este tanto o notou e se interessou por Trindade Coelho que viria mesmo a empenhar-se encobertamente para lhe apadrinhar os primeiros passos da carreira profissional, como delegado da Procuradoria Geral da Coroa nas comarcas do Sabugal e de Portalegre. Assim o grande mestre de Ceide reconhecia quem lhe podia continuar o testemunho…

lembrei aqui um e também outro nomes dessa linhagem ilustre, não falando em Torga, que semanalmente nos tem acompanhado. O que mais quero lembrar agora é que não será por acaso que Os Meus Amores (1891) – um livro que tenho na prosa ao mesmo nível de correspondente entendimento com o (1892), de António Nobre, mas depurado da face sombria da Saudade - abre com esse justamente famoso “Idílio Rústico”. Digo “justamente”, pensando na pessoa “bondosa” e “justa” que fechou a sua biografia inquirindo pelo Reino de Deus. O leitor lembrará que o conto começa com uma madrugada que é como a madrugada do mundo, com um moço e uma moça pastores que se encontram num ermo, a salvo dos lobos, no meio de pacíficos e inocentes animais. É, como bem notou o crítico Óscar Lopes, um mundo de antes do pecado ter entrado no mundo… E lembrará depois que o livro fecha com a citada “Parábola dos Sete Vimes”, que um velho pai moribundo representa aos seus sete filhos, a melhor lição que o português Trindade Coelho poderia ter deixado aos seus órfãos portugueses.

- Mas, que estou ouvindo, como é que diz o leitor?... Não leu? Não ouviu? Não tem uma edição acessível do livro? Está esgotado? E sabe o que é um feixe de electrões a bailarem numa tela de plasma, mas não sabe o que sejam “vimes”? Pois digo-lhe eu que não sei se é o livro ou se somos nós que estamos… esgotados. E, se ainda não lhe foram assaz reparadoras as balneares férias algarvias, tem aqui os mais tónicos e despoluídos ares que hoje podemos respirar:

http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/ebooks/os_meus_amores.pdf


[ Se me permite mais uma sugestão, comece a leitura pela Autobiografia, que nas últimas edições impressas tem aparecido no fim do livro. A pessoa de Trindade Coelho é o melhor mestre de cerimónias para nos introduzir naquele “Reino Maravilhoso” de que falava Torga. Quem sabe se não descobrirá o mais maravilhoso: que o outro Reino – o dos Céus – afinal não anda muito longe deste… ]

terça-feira, agosto 19, 2008

THE HOLLIES

Estes têm 46 anos de actividade e ainda mexem, mas saudemos aqui no Tonel também todos quantos, novos e velhos, podem apreciar canções como a que fica aqui.

Quando eu era dos novos, naqueles felizes quatro meses das férias grandes escolares que tínhamos, gostava de ouvir esta e outras na juke-box da esplanada da praia. Era uma máquina em que se punham moedas e tocava discos. Eram músicas que tocavam o azul do céu e a alva espuma do mar. Era o Verão da vida.

Era.

segunda-feira, agosto 18, 2008

“Orense, 18 de Agosto de 1959"

« (…) A caridade, embora não seja um processo de solução social, é uma predisposição humana para a encontrar. (…) »

Miguel Torga, Diário, Vol. VIII.

sábado, agosto 16, 2008

“Vila Nova, 16 de Agosto de 1936”

« Isto de religião está cada vez pior dentro de mim. Depois de uns arrancos fundos e angustiosos, a coisa foi secando, secando, até chegar a esta mirra mística, que já não há Jordão teológico capaz de vivificar. Mas quanto mais pobre estou desse conteúdo humano, mais cheio me sinto de desespero. (…) »

Miguel Torga, Diário, vol. I.

quinta-feira, agosto 14, 2008

DIRECÇÃO DOURO



Pouco há vimos aqui em Junho de 1754 um inglês assaz excêntrico para nos procurar sem vir “Oporto”, de peito feito à feitoria, a levar-nos as pipas do fino e as grossas mais-valias. Nesse ano, azedavam as relações entre os vinhateiros portugueses e os ricos comerciantes do burgo portuense, e tanto que levaram o governo de Pombal a intervir e a criar, dois anos depois, a Companhia Geral das Vinhas do Douro ( a quem o marquês vendia a bom preço os vinhos da sua quinta… de Oeiras). Acolhemos com gosto mister Fielding, que não emborcou para emborcar, e vinha ocupado com bem mais graves problemas que os passados da finada feitoria: os problemas permanentes da companhia geral dos homens, que nenhum ditador pombalino ainda resolveu por nós…Entretanto, como bons serviçais portugueses, bem vestidos e agaloados com lacaia libré europeia, sirvamos outro turista.

Chegado na noite anterior, este só tinha olhos para os olhos da companhia amável que trazia, e não viu mais nada. Agora, abrindo os cortinados da janela à luz da manhã, uns longes de vista fazem sair à varanda do quarto o turista maravilhado e curioso. Uma pergunta impõe-se-lhe, inevitável: se eram homens ou titãs os que escadearam e esculpiram esse imenso anfiteatro de montanhas a descer para o fundão abrupto do rio… É o Douro! E eram homens os que desta Terra Quente tiraram a cálido vinho velho que ontem à ceia lhe serviram para abafar os doces: era « um fogo potável nos espíritos, uma pólvora incendida no queimar, uma tinta de escrever na cor, um Brasil na doçura, uma Índia no aromático»…

Mas quer ele saber agora quem eram estes homens que, se esculturaram e com tal arte humanizaram estes brutos cerros, bem capazes estavam de cultivar e civilizar qualquer parte do mundo. Lembra-se da turística brochura impressa, que por desfastio relanceou na viagem: falava de “Portugueses”, de “Descobrimentos”. Ah! Então eram estes? Eram, de facto, estes que desde Fevereiro até fins de Maio, às vezes meados de Junho, vinham de lá de cima de além Tua, pelo Pinhão, pela Régua, arriscando várias vezes a vida nos desnivelados saltos do leito – os “pontos” – com as águas a referverem em cachões e traiçoeiras restingas; em que à mínima falta de atenção ou de firme e pericial mão no leme as barcas se espedaçavam e o vinho se misturava com o sangue dos homens nas águas do torvo rio de “mau navegar”. Eram os orgulhosos “marinheiros” (como justamente a si próprios se chamavam) do Porto e de Gaia que, na embalagem das mortais acrobacias fluviais, bem puderam sair barra fora a navegar o mundo; e eram os mesmos que, subindo o rio a remos ou a sirgar, nos mesmos “pontos” alavam os rabelos à força de bois ou dos pulsos. Por causa deles, com partilhada justiça e sem a menor desvalia para o duríssimo trabalho do camponês, pode-se chamar do “Porto” o vinho nado e criado aqui. “Eram”, “foram”?...

O turista curioso quer sair a conhecer directamente o titã escultor destes montes, o “herói modesto, despretensioso e proteico que, mal comido e mal agasalhado, aos rigores de um Inverno de gelo e de um verão de fornalha, surriba, planta, enxerta, tesoura, poda, ergue, enxofra, sulfata, vindima, pisa e trasfega num afã sem descanso” (Torga). Num desvio do caminho estreito, murado de xisto, mete conversa com um ou outro dos que trabalham a terra: respondem-lhe em ucraniano, em senegalês ou paquistanês… Noutra altura, percebe com espanto que os alegres e tagarelas vindimeiros falam… a sua própria língua: são uns europeus ricaços que pagam “turismos rurais” para alombar com os cestos vindimos (50 a 60 quilos) de geio em geio, escaleiras arriba. E como vão ligeiros, felizes de andarem livres de morder o pó em tediosos aparelhos, nos seus ginásios climatizados! Mas, então, os “portugueses”, os tais dos “descobrimentos”?...

… Andam veleiros, de impecável bata branca, velando em esconsos laboratórios, navegando em meio de cursos superiores de enologia e computorizados processos de vinificação a descobrir como acertar todos os anos no “vintage”. E destarte terão alcançado fazer este vinho mais saboroso do que nunca terá sido? Sabem-no os deuses, que desertaram o Olimpo e ainda para lá não voltaram… Mas o turista não gosta de batas brancas sem nódoa de mosto, que não sejam lavadas num rio cheio de sangue, suor e lágrimas; não quer um plácido lago de águas barradas pelas barragens, mas uma levada selvagem como fio de dionisíaco riso!

O turista é exigente. Num caso assim, para lhe satisfazermos cabalmente a vontade, só vejo uma saída: levarmo-lo às caves, a conhecer quem lá temos em repouso. Eu disse “quem”; disse bem. Já no próximo postal, serviremos ao leitor deste Tonel uma das nossas melhores reservas.


terça-feira, agosto 12, 2008

"Nazaré, 12 de Agosto de 1969"

[ No seu dia de aniversário. ]

« (…) A pobre luz natural do meu espírito nunca quis ceder o passo a qualquer claridade sobrenatural. Enfrenesiou-se sempre em ser ela o único sol que me guiava. E era alumiado por tão precária candeia que queria descobrir a verdade nas trevas da minha noite humana! (…) Daí o terror com que vejo aproximar-se o fim, onde só posso chegar no pavor biológico de bicho consciente. (…) »

Miguel Torga, Diário, vol. XI.


« Coimbra, 12 de Agosto de 1991.

[ Numa reunião de amigos, festejando os 86 anos de idade. ]

(…) Todos sabemos, clara ou brumosamente, que nascemos sós, vivemos sós e morremos sós. E que, até nas horas menos infelizes, no mais fundo do nosso inconsciente, lateja, cruciante, a dor incurável dessa condenação. Mas sabemos também que a Bíblia, o livro dos livros, nos ensina que não há homem sem homem, e que o próprio Cristo teve, a caminho do Calvário, a fortuna dum Cireneu para o aliviar do peso da cruz. O que, trocado por miúdos, significa que a solidão radical de cada existência – que, nos poetas, a cegueira de Homero ilustra premonitora e paradigmaticamente -, é mitigada por uma força que, se não vence o destino, inconformadamente desde sempre o desafia. Essa força, de que nenhum de nós ignora o nome e as virtudes, tem feito, entre outros, o milagre de nos juntar nesta data e tornar festivo um acontecimento que o não foi. (…) »


[Dois anos depois, a reunião foi a 14.]


« Malaposta, 14 de Agosto de 1993.

(…) Toda a vida humana é uma breve ou demorada despedida, que começa, de facto, logo à nascença, e acaba aparentemente no dia da morte. (…) O homem é um mistério encarnado, opaco a maior parte das vezes aos olhos mais penetrantes. Por isso ninguém conhece verdadeiramente ninguém. Mas os poetas mostram-se sempre como são. Não por serem mais sinceros, mas por imposição da própria poesia. Porque irrompe das profundezas ígneas do ser, quando se manifesta traz à tona a verdade ainda a fumegar. (…) »

Vol. XVI (os dois).

quinta-feira, agosto 07, 2008

JOGOS OLÍMPICOS


« Coimbra, 25 de Julho de 1980.
Jogos Olímpicos. O que o homem é capaz de fazer do homem! Até onde se pode levar o desrespeito pela sua condição! Aquelas medalhas de oiro, prata e cobre, em vez de honrarem a espécie, celebram apenas a desumanidade do nosso tempo, que confunde a mecânica com a fisiologia, e põe no mesmo pé de igualdade a máquina que sai de uma oficina e um corpo que nasce dum ventre. Que exige, com igual insensibilidade, mil rotações a um motor e outras tantas pulsações a um coração.»

Miguel Torga


Quando eu ainda tinha tempo e paciência para ver televisão, lembra-me das vezes que assisti, horrorizado, àquelas gigantescas paradas de uniformismo colectivo das “massas”, exibindo cenografias rigorosamente orquestradas num gigantesco mecanismo esmagador de qualquer saliência ou identidade das pessoas individuais, cujos gestos serviam apenas para compor a figura do idolatrado líder ou os símbolos do Partido. Não custa prever que na “festa de abertura” de amanhã, adentro da policiadíssima “Great Firewall of China”, teremos uma versão politicamente correcta desse espectáculo degradante em que chineses e norte-coreanos são especialistas, colaborado e refinado com as tecnologias da comunicação e da propaganda comercial “ocidentais”. O que ainda não há muitos anos parecia impensável a não poucos ingénuos aí está: a mediatizada síntese perfeita entre o despotismo totalitário do mandarinato imperialista chinês e a ideologia tecnocrática e capitalista das chamadas “democracias”. É a festiva demonstração de como o capitalismo convive muito bem com os mais díspares e aparentemente antagónicos regimes políticos.

Se me lembra bem, foi pelos anos em que Torga acusava no registo em epígrafe a total perversão do “espírito olímpico”, que eu ouvi falar de atletas na União Soviética que eram obrigadas a ter relações sexuais (às vezes com os próprios treinadores) para engravidarem e, ao fim de 2-3 meses de gravidez, abortarem pouco antes dos Jogos: era uma maneira de conseguirem um nível hormonal óptimo com efeitos na força e resistência musculares… Mas já antes e depois se vinham desenvolvendo outros métodos de “treino” pouco convencionais. Nos anos 90, uma investigação levada a cabo na ex-República Democrática Alemã revelou um vasto, sistemático e continuado plano, desde meados de 60, de experimentação bioquímica e dopagem maciça de milhares de atletas, com óbvia ênfase nos de alta competição. Abertos e vistoriados os arquivos do Ministério da Segurança do Estado (o “Stasi”), lá estava bem documentado, com a habitual minúcia burocrática alemã, o envolvimento de cientistas e académicos “ilustres”, investigadores, médicos, treinadores, etc. As cobaias e vítimas eram os atletas, muitas vezes enganados com “tabletes vitamínicas”, quando não forçados sob ameaça de represálias de natureza social e profissional. Lá estão detalhados também os lesivos efeitos secundários, físicos e psicológicos, sofridos principalmente pelas jovens atletas, às vezes expostas a esses tratamentos desde os 9 anos de idade. Tudo, evidentemente, submetido à planificação central dos órgãos estatais e dos quadros superiores do Partido.


É de lamentar e de temer que aquilo que, a Leste, estava tão bem documentado, formalizado e centralizado, tenha andado e ande muito mais informalmente, disperso, oculto e inacessível ao escrutino público nas nossas sociedades “abertas”, que gostamos de pensar livres, democráticas, respeitadores dos direitos humanos e muito bem aconselhadas por múltiplas “comissões de ética”.

De maneira que, desde os nos 70 do passado século, sempre mais e mais, os “jogos olímpicos”, afora a competição política dos nacionalismos e a comercial entre patrocinadores oficiais e não oficiais, são principalmente competições entre a equipa dos estimulantes, esteróides anabolizantes, injecções de androgénios e eritrócitos - e a equipa dos testes de despistagem. Ora, como aquela se reforça todos os dias com novas drogas de síntese ainda não detectáveis e métodos de iludir as já detectáveis… Está a ver o leitor quem é que leva a medalha, e quem é que tem a partida tão perdida que nos deixa a impressão de que os testes, os comités anti-doping e os badalados casos apurados e sancionados são mera propaganda para manter no público a crença de que o “espírito olímpico” está vivo e há jogo limpo. Mas, se “o público”, seja lá como for, o que quer é “vibrar” com recordes e recordistas cada vez mais “espectaculares”… Pois o respeitável público bem pode contar com mais animação, porque já se voltou a curva e já se começa a correr na pista da engenharia genética: quando se injectarem genes directamente nos músculos, pulmões e demais órgãos e tecidos relevantes para melhorar o rendimento “desportivo”… Para já, só nos animais, depois… Como é que eles serão detectáveis?... E qual é a meta para onde correm? – Deixemos dissipar-se a nuvem de poluição que cobre Pequim, uma vez que os déspotas ordenaram a transitória paragem na laboração de centenas de fábricas na cidade e arredores, a ver se distinguimos mais nítida a meta. Então, que temos?...

… Temos suposta a história que normalmente se conta sobre a “evolução” do género Homo neste mundo. Temos as tecnologias precisas para intervir nessa evolução. Temos as cada vez maiores pressões ambientais, ou sejam as decorrentes do dinamismo natural, ou sejam as precipitadas pelos despóticos frenesins desenvolvimentistas, como esses que estão a destruir rapidamente a maravilhosa e variada paisagem da China. Por outro lado, temos as multidões identificadas com os triunfadores dos Jogos, que eram uma espécie de heróis semi-divinos, laureados pelos deuses. E estes sonhados deuses fazem tudo o que os humanos gostam de fazer, mas em grande e, sobretudo, livres da decadente velhice e dos sofrimentos da mortalidade. Eis a meta. Os atletas são seres humanos modificados para competição. Os humanos somos seres modificados pela “evolução”. Parece não haver boas razões para discernir ao certo, em última análise, as modificações “naturais” das “artificiais”; e muito menos para decidir se aquelas seriam necessariamente “boas”, e estas necessariamente “más”. Subindo as encostas do Olimpo, a meta é modificarmo-nos para sermos o que sempre desejámos ser: - deuses.

Mas, todos nós, dando por isso ou não, querendo isso ou não? Os pendores olímpicos são escarpados, cada vez mais íngremes, os cumes estreitos: são precisos bons equipamentos, pulmões bem oxigenados, nem que seja a poder de eritropoietina… Leitor amigo: não lhe esqueça que a corrida evolutiva é uma competição, e que há uma “selecção” – natural ou artificial! Já ouviu por certo falar do “sobrehumano”, vaticinado por um famoso filósofo do XIX que também gostava de escalar cumes. Menos conhecidos são os “parahumans” previstos por Joseph Fletcher, e concebidos para ficar a meia-encosta… Foi já em 1974, no livro The Ethics of Genetic Control, e o seu autor é tido como um do padrinhos da “bioética”(!)…

“Parahumanos” é um nome significativo. Em 2001, nos laboratórios da universidade de Stanford, o biólogo Irving Weissman injectou células estaminais do tecido neural de fetos humanos abortados no cérebro de fetos de ratos: as humanas evoluíram normalmente para células neuronais e gliais, aparentemente bem integradas no tecido cerebral do rato e constituindo 1% deste. Já em 1996 o neurologista de Yale Eugene Redmond tinha feito o mesmo com macacos caribenhos. Ambos continuavam os trabalhos pioneiros de hibridação feitos por Ilya Ivanov, na União Soviética dos anos 20. Falando de norte-americanos e russos, falemos de chineses para voltarmos àquela festiva síntese multicultural de que a festa de amanhã há-de ser um grandioso símbolo. Seja pois o dr. Ying Chen e colaboradores da universidade de Xangai que, em 2003, trnsferiram núcleos de células somáticas humanas para ovócitos enucleados de coelhas; deixaram os embriões desenvolver-se até aos 14 dias e depois mataram-nos; como resultado, as células estaminais produzidas (e colhidas, escusado será dizer) continham o genótipo humano e genes mitocondriais das coelhas… - Homens ou coelhos?... Homens ou macacos?... Homens ou ratos?... – “Parahumanos”…

Quanto à outra face da desumanização que ressentiu o nosso Torga, os engenheiros Ian Pearson, Chris Winter e Peter Cochrane, que nos anos 90 trabalharam nos laboratórios da British Telecom no projecto chamado “Soul Catcher” já propuseram nomes para as várias espécies do “sobrehumano” que sucederão ao Sapiens: Homo Cyberneticus… Homo Hybridus… Homo Machinus…

Isto é uma ínfima amostra do que publicamente se sabe, a confrontar com o que ficou dito acima sobre o ambiente de confiança e transparência que creditamos às nossas sociedades “abertas”. Acresce o facto de, na China e vizinhanças, não existirem “comissões de ética” a empecilhar o caminho. A perversa vantagem disso é que, às vezes, aparece gente a falar directo e claro. Como exemplo, fiquemos por hoje com estas palavras de um político de Singapura, em entrevista ao jornal Boston Globe, de 29.04.1994, que eu dedico (sem grandes esperanças) aos nossos comissários de ética e (com mais esperanças) ao leitor que sabe que tem de fazer ou refazer, em sua consciência – enquanto a tem… enquanto pode… - as opções decisivas que urgem. Dizia o sr. Lee Khan Yew: « Para nós, na Ásia, um indivíduo é uma formiga. Para vocês é um filho de Deus. »



[ A comunicação “Hormonal doping and androgenization of athletes: a secret program of the German Democratic Republic government”, bem como as mais feitas por ocasião 16º Congresso Internacional de Química Clínica - subordinado ao tema Doping in Sport and Society: Misuse, Analytical Tests and Legal Aspects -, realizado em Londres, 1996, pouco tempo antes dos Olímpicos de Atlanta, podem ser lidas integralmente aqui: http://www.clinchem.org/cgi/collection/doping

A linda caveira da fotografia supra está desvestida da pele sintética tatuada com o respectivo nome de fabrico. Neste artigo da Wikipedia, o leitor interessado tem uma boa notícia introdutória acerca do nome e finalidades da empresa fabricadora: http://en.wikipedia.org/wiki/Transhumanism

Se quiser ouvi-la falar, um dos teóricos mais famosos dessa empresa, actualmente na universidade de Oxford, faz aqui uma curta e atraente sessão de propaganda:
http://www.youtube.com/watch?v=Yd9cf_vLviI

Aqui, ameaçam-nos com certas “unpleasant consequences”, se não aderirmos à campanha:
http://www.youtube.com/watch?v=455wiqupFw0

E aqui verá o leitor outro exemplo de reputadas universidades que patrocinam e cada vez mais publicamente vão cobrindo a campanha: http://sss.stanford.edu/ ]

quarta-feira, agosto 06, 2008

"Gerês, 6 de Agosto de 1955"

« Há sítios no mundo que são como certas existências humanas: tudo se conjuga para que nada falte à sua grandeza e perfeição.
Este Gerês é um deles. Acumularam-se e harmonizaram-se aqui tais forças e contrastes, tão variados elementos de beleza e de expressão, que o resultado lembra-me sempre uma espécie de genialidade da natureza. »

Miguel Torga, Diário, vol. VII.

terça-feira, agosto 05, 2008

"Albufeira, 5 de Agosto de 1987"

« Deambulo por estas ruas atulhadas de automóveis e de turistas, a ouvir falar a Europa. É uma algaraviada de línguas, que se cruzam indiferentes umas às outras, aéreas, sem pés no chão, e que são entendidas aos farrapos pela avidez indígena. Compro um quilo de figos, bem nossos, bem castiços, e atravesso aturdido a onda sonora, no pânico de que possa um dia alastrar ao resto do país, e a desejar das veras da alma que um terramoto arrase este cosmopolitismo e Portugal regresse aqui na sua plenitude, a gente a ser gente, o idioma pátrio a ter dignidade, as casas carácter, as virtudes estatuto, e a terra volte a estar coberta de amendoeiras, figueiras e alfarrobeiras, secas de sede por fora e verdes de esperança por dentro. A nação inquieta reencontrada no seu paraíso terreal e a inquieta a sonhar o longe do seu cais natural. »

Miguel Torga, Diário, vol. XV.

sábado, agosto 02, 2008

QUINADO EM QUIBIR



Já as Cortes de 1562-63 tinham reconhecido a necessidade estratégica da guerra no norte de África (“mais justa e conveniente que a Índia”) para segurar o avanço dos turcos, há pouco entrados em Argel, que assolavam o nosso litoral algarvio a ponto de, nesse ano de 1562, subirem a atacar Sines. Corsários cometimentos que mauritanos e turcos vão prosseguir e aumentar na década seguinte. Mas perspectiva-se também por esses anos uma alteração do vector estratégico da nossa expansão ultramarina, que se pretendia deslocar do Índico – económica e militarmente insustentável – para o Atlântico, estribado no domínio do litoral africano e brasílico.

Em Julho de 1574, D. António, prior do Crato, é nomeado para governar a capitania de Tânger, reforçada com gente de cavalo, lanceiros e infantaria. No mês seguinte, é o próprio D. Sebastião que desembarca em Ceuta e passa em Tânger, “para entender melhor e de mais perto o como poderia mandar fazer guerra ao Xarife, e com maior poder, como tenho ordenado que se lhe faça”. Voltou em Novembro, dizendo que “vinha de África, para tornar a África” contra o Xarife Almalique, aliado dos turcos. O projecto africano foi facilitado com o desvalimento político dos irmãos jesuítas Gonçalves da Câmara, que se lhe opunham; e sustentado com o pecúlio de donativos e medidas financeiras e fiscais que, sobretudo às custas do alto clero e da nobreza, sem gravame para o povo miúdo, renderam para cima de 1 milhão de cruzados. Na entrevista de Guadalupe com Filipe II, em 1576, este parece compreender a necessidade da jornada magrebina, face ao avanço do turco sobre Gibraltar, prometendo ajuda militar. Diga-se de passagem que neste encontro ficou aprazado o casamento do nosso D. Sebastião com a filha mais velha de Filipe, a infanta D. Isabel, enlace que se combinou seria publicitado só quando da tornada de África. O nosso não duvidava tornar… A ajuda do espanhol, que tinha bons negócios como os marroquinos, cifrou-se em estorvar o mais possível a recruta de voluntários em Espanha e depois mandar 2 dos prometidos 5 mil soldados.

Em 1577, Mulei Alquerim, deposto em Fez por Almalique (o “Maluco”, na linguagem dos nossos cronistas), entrega Arzila aos portugueses e põe-se debaixo da protecção do nosso rei para recuperar Fez. A conjuntura, além de premente, torna-se assim extremamente favorável a uma intervenção desejada e adiada desde os tempos de D. João III, que lá queria ir com o infante D. Duarte, depois do abandono táctico e provisório dalgumas praças africanas.

Os preparativos militares, iniciados em 1574, põem no mar, em Junho de 1578, para além da galé real com sua escolta própria, 60 galeões e naus, e mais de 100 outros navios de menor porte; transportavam uma força de cerca de 25 mil homens, cavaleiros e peonagem, entre os quais 3 mil alemães, 600 italianos e os sobreditos espanhóis. Não falando no erro capital de se aventurar sem filho herdeiro fiador da independência do trono,  é então que o bem preparado e competente regedor do Reino, que D. Sebastião tinha mostrado ser até essa altura, vai dar lugar ao deficiente estratego militar, demasiado presumido do valor próprio e mal atinado com os conselheiros que decidia ouvir e seguir. Demora tempo em Cádis, com festas e folganças e, em vez de ir direito a Larache, ainda passa por Tânger e demora-se em Arzila (32 dias ao todo!) com prejuízo dos mantimentos que já escasseavam e dando tempo a que o Malique juntasse cerca de 50 mil cavaleiros e 30 mil peões; dá proeminência no comando militar ao capitão Aldana, com ofendida contrariedade doutros mais graduados espanhóis; tarda muito na 1ª ordem de carregar e esquece depois outras, em resposta às sucessivas e devastadoras descargas de artilharia com que os mouros, pelas 9 horas da manhã do dia 4 de Agosto, iniciaram a batalha no sítio de Alcácer-Quibir. Uma batalha que, apesar de tudo, estivemos quase a ganhar. Um jovem estudante da Universidade de Coimbra tinha vindo com colegas seus a correr para Lisboa, para acompanhar el-rei integrado no famoso e desventurado terço dos Ventureiros, que lá deixou enterradas nas areias de Alcácer centenas de guitarras… guitarras de Coimbra. Eis o que diz o jovem Miguel Leitão de Andrada: « Se prosseguíramos acabando de ganhar a artilharia e com ela a liteira do Maluco, onde já estava morto, perto dela, e cortando-lhe a cabeça e com ela levantada num pique aclamando a vitória com que ali nos vimos, cousas eram para se poder conseguir, com tão belo sucesso, a maior vitória que nunca no mundo se viu ». De nada valeu a espantosa energia e bravura de que el-rei deu mostras, como tantos outros, que lá ficaram enterrados ou cativos. O “belo sucesso” redundou no trivial espectáculo das ressacas bélicas: «E tudo gritos e lamentos, mortos em cima de vivos, e vivos de mortos, todos feitos pedaços, cristãos e mouros abraçados, chorando e morrendo, uns sobre a artilharia, outros braços a tripas arrastando, debaixo de cavalos, em cima espedaçados, e tudo muito mais do que já vos posso dizer, porque aperta comigo a dor na lembrança do que passei. »

Outro, um anónimo autor e testemunha presencial da Jornada Del-Rei D. Sebastião às Partes de África, terá assistido aos últimos momentos. Cercado, e acompanhado de uns poucos fidalgos, é intimado pelos mouros a desarmar e render-se: para eles “era de maior proveito e mais honroso tomá-lo vivo”. O mesmo lhe implora o valido dilecto, D. Cristóvão de Távora, com lágrimas nos olhos. Mas el-rei responde que “a liberdade real com a vida se havia de perder”… A estas palavras, o conde de Vimioso acomete a chusma dos mouros num derradeiro arranco de fúria suicida, e é então que surge um certo mouro a oferecer ao rei e ao Távora um corredor de saída. Morto o Vimioso, lançam-se em perseguição do rei, que resiste e, já mal ferido, teriam acabado por matar. “Mas o certo é que achando-se depois da batalha milhares de cousas que nela se perderam, e resgatando-se tudo a dinheiro a quem o queria comprar, das armas reais não apareceu uma só peça, nem houve quem a visse e desse fé dela, sendo todas as fivelas cheias das mesmas armas esculpidas”… Por isso, logo após a batalha, começou a levantar-se com o vento do deserto um certo rumor… Reforçado nessa mesma noite quando um pequeno grupo de cavaleiros entra as portas de Arzila levando com eles um embuçado que, no dia seguinte, na mesma embuçado recolhe a um navio da nossa armada…

Daquele rei, que foi um dos mais populares e amigos do povo que tínhamos tido desde D. Pedro I, daquele cujo aparecimento tinha sido tão ansiado e querido como “o Desejado”, desapareceu naquele dia o corpo que tinha de desaparecer um dia, esse que “com a vida se havia de perder”… O outro, da matéria daqueles “que se vão da lei da morte libertando”, haveria de subsistir, embuçado ou encoberto, sempre pelos séculos adiante… Desejado. –

Era um domingo de Maio de 1962, na povoação de Pinhas, a sul de Fortaleza, no Nordeste brasileiro. Uma longa fila de carroções carregados de cereais, víveres e ferramentas abre caminho por entre os magotes de gente que estão no largo da povoação, em frente da igreja, depois da missa. Essa gente vai atrás dos carros e engrossa mais e mais: é a multidão dos esfomeados, dos sem terra e sem trabalho. Quando começou a descarga para os armazéns bem abastecidos dos fazendeiros açambarcadores e exploradores, tentam o assalto e o saque, enfrentam as balas de jagunços e carabineiros. Há dezenas de mortos e feridos. Antes, pelo caminho, alguém ouviu e guardou estas vozes que gritavam: - « Estamos sendo enterrados vivos!... D. Sebastião voltará!... Nos dará o que nos é devido!... Os fazendeiros o têm preso e encantado!... D. Sebastião nos livrará!... Nós o livraremos!... Liberdade! Liberdade! »



[ Na imagem, um dos “retratos ignorados” de D. Sebastião que há poucos meses atrás o dr. Bernardo da Gama Lobo Xavier trouxe Regressado a este nosso deserto português de “morrer devagar”...]