quarta-feira, dezembro 31, 2008

"Coimbra, 31 de Dezembro de 1988"

« É quase meia-noite e começa a erguer-se por toda a cidade uma onda de alegria ruidosa. O ano velho está a dar os últimos suspiros. Foi bissexto, e não deixa saudades. Guerras, terrorismos, fomes, desastres, terramotos. E é o advento do novo que celebramos festivamente. Sempre assim aconteceu nesta data. Amaldiçoa-se o passado e bendiz-se o futuro. Que mais pode fazer a impotência humana? Tentamos forçar a benevolência dos fados com a força redentora da esperança. Os fados é que se devem rir da candura. E da falta de memória. O mal não está no tempo. Está na nossa condição. »

Miguel Torga, Diário, vol. XV.

segunda-feira, dezembro 29, 2008

"Malaposta, 29 de Dezembro de 1987"

« Conviver. Dizer sim aos acenos amigos e afastar do espírito as razões que fazem de nós lobos solitários. Transigir nas ideias, trocar amabilidades, dialogar no vazio. Esquecer durante algumas horas que a dignidade do homem é uma tensão sem tréguas. Ter a ilusão de que também há repouso para a lucidez. »

Miguel Torga, Diário, vol. XV.

quarta-feira, dezembro 24, 2008

NATAL

Turvou-se de penumbra o dia cedo;
Nem o sol espertou no meu beiral!
Que longas horas de Jesus! Natal…
E o cepo a arder nas cinzas do brasedo…

E o lar da casa, os corações aos dobres,
É um painel a fogo em seu costume!
Que lindos versos bíblicos, ao lume,
P’lo doce Príncipe cristão dos pobres!

Fulvas figuras para esculpir em barro:
À luz da lenha, em rubro tom bizarro,
Sou em presépio com meus pais e irmãos.

E junto às brasas, os meus olhos postos
Nesta evangélica expressão de rostos,
Ergo em graça a Deus as minhas mãos.



Afonso Duarte (1884-1958)

terça-feira, dezembro 23, 2008

BENJAMIN BRITTEN (1913-1976)

Era o mês de Março de1942 e estava no auge a Batalha do Atlântico. As flotilhas submarinas alemãs do almirante Doenitz atacavam em "matilha" os comboios mercantes que atravessavam o Allântico norte, tentando concretizar um bloqueio naval à Grã-Bretanha.

A bordo de um cargueiro sueco em viagem de volta dos Estados Unidos, num exíguo compartimento não longe do martelado roncar mecânico da casa das máquinas, o compositor Benjamin Britten compunha o seu opus 28: A Ceremony of Carols. Era um conjunto de 11 pequenas peças para solista, coro infantil e harpa, inspiradas em canções populares do Natal remontando à época medieval.

Nem a "matilha" nem as máquinas puderam afogar a música que, em certo trecho, cantava este verso de Robert Southwell:

This little Babe will thy guard!


segunda-feira, dezembro 22, 2008

DIANTE DE UM PRESÉPIO


Deus – e não um deus, mas Deus, - vê-se hoje na figura de um menino pobre, deitado e risonho sobre a palha humilde. Palpita oculta nesta imagem breve uma ideia imensa que será talvez (quem poderá negá-lo?) a ideia humana superior e eterna: a noção de que a força que domina os corpos não é tal um atributo do verdadeiro Deus, e que só o é a grandeza espiritual estreme, a que ao puro espírito se revela e impõe. Deus é um menino, um menino é Deus. É um sopro de vida sobre um berço humilde, onde o bem das almas se concentra e jaz. Eis aí como ele pousa, tão menininho e frágil: sem sombra de domínio, sem poder algum… Adorai-o por isso, sem poder algum: e digamos agora que este mundo triste só terá uns longes de esplendor divino quando a última nuvem da superstição da Força se dissipar no cariz do alvorecer das almas, e admirarmos somente o que é Forma pura, amplíssima caridade, aspiração sem termo: - conforme à imagem do Natal do Cristo, que no divino presépio se nos mostra e ri. Deus é um menino, um menino é Deus!

Passou em triunfo um glorioso César, dominador e forte: e deram-lhe não só uma reverência externa, que poderá ser prestável para o bem dos corpos, senão que o próprio coração dos homens se prostrou com ímpeto e se rojou humilde, adorando e orando; e em triunfo o Opulento, como um novo César… Mas o Deus-menino sobre a palha riu, nulo no braço porque tem a Ideia, sopro de vida que é um menino e Deus…

O menino riu, voltando-se sempre com ternura límpida para as almas dos que negam a divindade física, o deus omnipotente e regedor dos átomos, responsável da maldade deste mundo mau; sorriu para os que odeiam a adoração da Força, para os que afirmam que o divino é uma Bondade nua, um puro Inteligível, uma Beleza inerme… Entendei o Presépio, ó irmãos que o adorais: Deus é um menino, um menino é Deus!

(Natal de 1925)

António Sérgio, Ensaios VI, 1971.

quinta-feira, dezembro 18, 2008

ETTY HILLESUM (1914-1943)


“3 de Julho de 1942. Sexta-feira às oito e meia.”

« (…) Essa é uma certeza que tenho dentro de mim, que não é perturbada pela nova certeza: que querem o nosso extermínio. Também isso eu aceito. Sei-o agora. Não vou incomodar outros com os meus medos, não vou ficar amargurada se outras pessoas não entenderem do que se trama para nós, judeus. Esta certeza não vai ser corroída ou invalidada pela outra. Trabalho e vivo com a mesma convicção e acho a vida prenhe de sentido, cheia de sentido apesar de tudo, embora já não me atreva a dizer uma coisa dessas em grupo. O viver e o morrer, o sofrimento e a alegria, as bolhas nos meus pés gastos e o jasmim atrás da porta do quintal, as perseguições, as incontáveis violências gratuitas, tudo e tudo em mim é como se fosse uma forte unidade, e eu aceito tudo como uma unidade e começo a entender cada vez melhor, espontaneamente para mim, sem que ainda o consiga explicar a alguém, como é que as coisas são. Gostava de viver longamente para, no fim, mais tarde, conseguir explicar; e se isso não me for dado, pois bem, nesse caso uma outra pessoa irá fazê-lo e então um outro continuará a viver a minha vida, ali onde a minha vida foi interrompida, e por isso tenho de viver a minha vida tão bem e tão completa e convincentemente quanto possível até ao meu derradeiro suspiro, para o que vem a seguir a mim não precise de começar de novo nem tenha as mesmas dificuldades. (…) »


É um trecho do Diário (1941-1943), traduzido directamente do neerlandês por Maria Leonor Raven Gomes. O livro saiu cá em Abril deste ano. Sim, muito oportuna e apropriadamente no nosso Abril português, o tempo da nossa Paixão.

A autora foi uma mulher « refinada, suficientemente experiente para figurar entre o número das boas amantes » (diz ela), que podia ter passado a vida a jogar jogos de sedução e poder com os homens; era uma intelectual que podia ter sido uma escritora socialmente prestigiada; podia ter sido uma empenhada revolucionária anti-fascista; uma sionista que podia ter fugido da Holanda natal e ser contada hoje como uma das fundadoras do Estado de Israel. Escolheu ficar.

Tornou-se « a rapariga que não conseguia ajoelhar-se e que afinal aprendeu a fazê-lo no tapete áspero de fibra de coco de uma casa de banho desarrumada ». Preferiu oferecer-se para trabalho voluntário no campo de concentração holandês de Westerbork. Entrou lá em Agosto de 42, com uma Bíblia e dois livros de Rilke. Lá acabou aprisionada com a família. No dia 7 de Setembro de 1943 saiu num comboio para Auschwitz. Tinha 29 anos de idade. Nesse mesmo dia, um amigo preso no campo holandês escrevia aos amigos de Etty: « (…) Mas nós continuamos, enquanto eu escrevo isto vai tudo continuando mais e mais longe em direcção a leste, para onde realmente queria ir fervorosamente. Acho que na realidade ela estava satisfeita por ir agora viver esta experiência, por ir ver agora tudo e compartilhar esta vivência que nos foi preparada. E havemos de voltar a vê-la, sobre isso estamos nós (os amigos especiais aqui) de acordo. Depois da partida, falei com a pequena russa e várias das suas outras protegidas. E só o modo como reagiram à partida dela ilustra bem o amor e confiança que deu a estas pessoas. »

O livro que os leitores portugueses agora temos acessível, e é útil e oportuno como poucos, conta-nos como é que naquelas circunstâncias um ser humano pode chegar a “realmente querer fervorosamente…” Acontece o senso comum não ser as mais das vezes capaz de discernir entre a sabedoria e a alienação mental. Mas para vencer Auschwitz era precisa mais que uma medida comum. Era, e será.

O amigo prisioneiro dizia: - “havemos de voltar a vê-la…” Não se enganou, falando só deste mundo. Na década de 70 do século passado, a consciência nacional judaica começou a articular publicamente as questões cruciais: - “Aonde estava Deus?”… - “Como falar de Deus depois de Auschwitz?”… -

… Em 1981, na Holanda, saía a primeira edição do Diário.

Os leitores cientes de que Auschwitz não é um assunto entre alemães e judeus – e que “o nosso extermínio” não é uma questão resolvida do passado -, faríamos bem agora em reparar nas últimas palavras do primeiro transcrito: « para o que vem a seguir a mim não precise de começar de novo nem tenha as mesmas dificuldades. »

terça-feira, dezembro 16, 2008

"Coimbra, 16 de Dezembro de 1942"

« Um inferno de dores. Mas quanto mais esta carne apodrece, mais me convenço que, duma maneira ou doutra, só dela posso arrancar a salvação. Nenhuma esperança de melhorar, evidentemente. (…) Não. Refiro-me a uma salvação mais profunda: de individual renúncia biológica e de cósmica confiança. É que nem a terra me come se vou para a sepultura em pecado mortal de desespero. A pior traição que o homem pode fazer à natureza é ser durante a vida uma cega urtiga raivosa, eriçada no seu egoísmo. Tenho, pois, de reagir. (…) Coragem, companheiros! Chegai à janela, e olhai em redor. É um maravilhoso formigueiro que se move. Há flores, há rios, e há, sobretudo, paz – uma paz humosa, funda, ampla, universal, que nenhuma inquietação particular perturba. Nós? Nós somos apenas grãos de areia dessa grande praia coberta de sol e de agitação! Somos da terra, amigos. »

Miguel Torga, Diário, vol. II.

sábado, dezembro 13, 2008

ORTEGA Y GASSET: PARA UMA REFORMA DA EDUCAÇÃO



Um dos mestres que Vitorino Nemésio citava na “última lição” que nos deu aqui na passada semana era José Ortega y Gasset (o outro era don Miguel de Unamuno, que também já tivemos ocasião de saudar). O filósofo espanhol estivera entre nós em 1939, e voltava agora em 1942, vindo da Argentina. Alugara um apartamento no nº 10 de Avenida da República, mas « todas as noites subia os quatro andares até à casa do nosso amigo dr. Martins Pereira e (…) durante alguns anos, no mágico quarto andar da rua Alexandre Herculano (…) num ambiente de constante construção de mitos e de construção-à-vista de todos os mundos imaginários, Lisboa foi, para nós uma espécie de cidade fantástica, onde tudo e todos tinham um hálito de mito e de poesia. Nós descobrimos alguém que, com gratuitidade inteira, sem interesse nem de vaidade nem de compensação económica, se entregava, ludicamente, à maravilha de ver e de contemplar como iam vivendo os outros homens. » No caloroso convívio dos seus contertúlios lisbonenses, entre os quais Vitorino Nemésio e Pedro de Moura e Sá (de quem citei o pessoal testemunho escrito e publicado em Vida e Literatura, 1960), Ortega cicatrizava os traumatismos da terrível guerra civil espanhola, os achaques duma saúde abalada e as desilusões da estada recente na América: quase totalmente à margem da vida cultural oficial lisboeta, abria o coração aos seus jovens amigos, e a razão à potência poética e mitogénica que, na sua juventude, reprimira em si próprio e se atrevera a criticar naquele Unamuno que fora o seu despertador para a Filosofia. É que, como enfim viera a reconhecer e escrever: « O mito suscita em nós as correntes induzidas dos sentimentos que alimentam o impulso vital, mantêm à superfície o nosso afã de viver e aumentam a tensão das mais profundas forças biológicas. O mito é a hormona psíquica. » O órgão que segrega esta hormona tem um nome: imaginação criadora.

Nesse mesmo ano de 42, a 7 de Agosto, o nosso Torga registava isto no vol. II do seu Diário: « El Tema de Nuestro Tiempo, de Ortega y Gasset. Não há dúvida nenhuma que este homem é um dos maiores entendimentos que a Península deu, e que há neste livro uma admirável crítica ao racionalismo no que ele tem de seco e desvitalizante. » Não sei se Torga saberia que, nessa altura, “este homem” estava entre nós e passeou pelas ruas da sua Coimbra… Sei que, discorrendo certa vez o filósofo com os seus amigos lisboetas pela Avenida da Liberdade, divertidos com certa linguagem cifrada que o grupo se tinha criado só para si, diz Moura e Sá: « Sobre esta linguagem cifrada erguiam-se os “palácios confusos” do mito. (Lembro-me do entusiasmo com que Ortega me falou desta designação toponímica descoberta por ele num letreiro de rua, em Coimbra.) » “Palácios confusos”? “Letreiro de rua”? Parece-me a mim que, ou há aqui confusão, ou então será o próprio texto um exemplo daquela linguagem cifrada… Que a mim me apraz decifrar assim: o que Ortega leu em Coimbra foi o letreiro duma certa república de estudantes – sim, essa mesma de que o leitor se lembra de termos falado aqui: o “Palácio da Loucura”, que, na década de 50, seria habitada pelo nosso Camilo de Araújo Correia.

O texto de Ortega y Gasset excertado a seguir – “Sobre o Estudar e o Estudante” – é “inaudito, escandaloso, perturbante, provocatório mesmo”, diz a sua apresentadora e tradutora, a drª Olga Pombo, que o juntou a outros três na edição que preparou de Quatro Textos Excêntricos (Lisboa, 2000) sobre temas e problemas fundamentais da Educação. O texto orteguiano, diz ela, « funciona como exemplo, e ao mesmo tempo como testemunho, da coragem que é necessária ao bom professor para abalar velhos hábitos de pensamento, questionar opiniões vulgarmente aceites, não recear o absurdo, o paradoxo, o enfrentamento da aporia. »

O “paradoxo cruel” não deve ser exagerado. Ortega faz estas observações de passagem, no contexto da 1ª das catorze Lecciones de Metafísica (leccionadas em Madrid, 1932-33) e, logo após o trecho adiante citado, prossegue dizendo que estudar e ser estudante é, « sobretudo hoje, uma necessidade inexorável» , na actual circunstância de dependência em que o homem se colocou relativamente à ciência e à técnica. Será mesmo um imperativo de sobrevivência. A solução do paradoxo não está em não estudar, mas sim em « voltar o ensino do avesso e dizer: ensinar é primária e fundamentalmente ensinar a necessidade de uma ciência, e não ensinar uma ciência cuja necessidade seja impossível fazer sentir ao estudante. »

O que seja isso de ensinar “a necessidade” ou como seja isso possível, não me parece o menor dos problemas da pedagogia orteguiana. O trecho que aqui fica não é, evidentemente, recomendável aos gestionários políticos que, de há décadas, têm andado por cá a tentar “reformar a educação” num afã experimentalista que, nos últimos três anos, mexe e remexe com frenesins de insânia. Para estes psicóticos burocratas da estatística e do orçamento, o texto que segue está numa… “linguagem cifrada”! Nem eu o recomendaria, por outro lado, como óptimo ponto de partida para uma reflexão, que as circunstâncias da hora presente impõem como ainda mais necessária e urgente, - sobre os fundamentos da educação. É um ângulo de ataque à questão, sem dúvida necessário, mas derivado e subordinado às questões basilares iniludíveis: o que é ser humano e o que é que a educação pode ser e deve fazer para orientar à realização do humano. Questões, aliás, de que o filósofo necessariamente estava ciente. Para mim, o texto vale sobretudo como mais um testemunho daquela atitude mental e cívica que Ortega y Gasset - o filósofo e o homem - sempre pôs na obra escrita e na vida vivida: - a exigência de genuinidade, de autenticidade. Como tantas vezes o autor de Misión de la Universidad (1930) não perdeu ocasião de marcar, não há aprender nem ensinar que valham senão originários da íntima e vital necessidade de quem quer aprender e, com a vida vivida e meditada, se dá aos outros no quanto aprendeu por si com os outros. E é por isto que o problema da pedagogia orteguiana se resolve de uma forma muito simples, embora rara e privilegiada: naquelas discretas mas inolvidáveis formas de superior convívio como as que aconteceram com os seus jovens amigos de Lisboa.

Ainda assim não deixa o que segue de levantar uma mancheia de problemas decisivos – dos quais, para mim, destaco o adiante referido “paradoxo colossal dos últimos decénios”, hoje mais e mais agravado.

Sem dúvida um tonificante estímulo para quem, no meio das nossas ruínas, quiser pensar desde os alicerces.

SOBRE O ESTUDAR E O ESTUDANTE

« (…) Deixemo-nos de idealizações sobre a rude realidade, de posições beatas que nos conduzem a diminuir, esfumar, adoçar os problemas, a limar as suas mais agudas cruezas [a ponerles bolas en los cuernos ]. O facto é que o estudante-tipo é um homem que não sente necessidade directa da ciência, que não está preocupado com ela e que, no entanto, se sente forçado a ocupar-se dela. Aqui se manifesta desde logo a falsidade geral do estudar. Em seguida, vem a necessidade de uma concretização quase perversa pelo particular: o estudante é obrigado, não a estudar em geral, mas sim a confrontar-se com uma situação em que, quer queira quer não, o estudar lhe aparece dissociado em cursos especiais, cada qual constituído por disciplinas singulares, por esta ou aquela ciência. E quem poderá pretender que um jovem, num certo momento da sua vida, possa sentir efectiva necessidade por uma ciência determinada inventada um belo dia pelos seus antecessores?

Daquilo que, para os criadores da ciência, foi uma necessidade tão autêntica e viva que a ela dedicaram toda a sua vida, faz-se agora uma necessidade morta e um falso saber. Não tenhamos ilusões: com um tal estado de espírito, não se pode chegar a saber o saber humano. Estudar é pois algo constitutivamente contraditório e falso. O estudante é uma falsificação do homem. Ser homem é ser só o que se é autenticamente, por íntima e inexorável necessidade [ el hombre es propiamente sólo lo que es auténticamente, por íntima e inexorable necesidad ]. Ser homem não é ser – ou, o que é o mesmo – fazer qualquer coisa, mas ser o que irremediavelmente se é. Há muitos modos distintos de ser homem. O homem pode ser homem de ciência, homem de negócios, homem político, homem religioso porque todas estas coisas são, como veremos, necessidades constitutivas e imediatas da condição humana. Mas, por si mesmo, o homem nunca seria estudante, da mesma maneira que, por si mesmo, o homem nunca seria contribuinte. Tem que pagar contribuições, tem que estudar, mas não é, nem contribuinte, nem estudante. Ser estudante, tal como ser contribuinte, é algo “artificial” que o homem se vê obrigado a ser.

Estamos perante uma afirmação que, podendo de início ser chocante, consubstancia afinal a tragédia constitutiva da pedagogia. É porém deste paradoxo tão cruel que, em minha opinião, deve partir a reforma da educação.

Tendo em vista que a actividade, o fazer que a pedagogia regula e a que chamamos estudar, é, em si mesma, algo de humanamente falso, nunca será de mais sublinhar que, mais do que em qualquer outra ordem da vida, é no ensino que a falsidade é mais tolerada, constante e habitual. Todos sabemos que também há uma falsa justiça, que se cometem abusos nos julgamentos e audiências. Mas, cada um dos que me escuta poderá perceber pela sua apropria experiência que nos daríamos por muito contentes se, na realidade do ensino, não existissem mais insuficiências, falsidades e abusos do que os que ocorrem na ordem jurídica. Na verdade, o que aí se considera como abuso intolerável – a saber, que não seja feita justiça – é quase a ordem do dia no ensino: o estudante não estuda e, se estuda, pondo nisso toda a sua boa vontade, não aprende. Claro que, se o estudante não aprende, seja por que razão for, o professor não poderá dizer que ensina. No máximo, poderá dizer que tenta ensinar mas que não consegue.


Entretanto, amontoa-se gigantescamente, geração após geração, a mole pavorosa dos saberes humanos que o estudante tem de assimilar, tem que estudar. Quanto mais o saber aumenta, quanto mais se enriquece e especializa, mais longínqua será a possibilidade de que o estudante sinta uma necessidade imediata e autêntica desse saber. Quer isto dizer que cada vez haverá menor congruência entre esse triste fazer humano que é estudar e o admirável fazer humano que é o verdadeiro saber. Trata-se de uma situação que irá aumentar ainda mais a terrível dissociação, iniciada pelo menos há um século entre a cultura viva, o saber autêntico, e o homem médio. Como a cultura, ou o saber, só tem realidade se responde e satisfaz, em qualquer medida, necessidades efectivamente sentidas e, como a forma de transmitir cultura é o estudar, o qual não implica que essas necessidades sejam sentidas, o que acontece é que a cultura, ou o saber, vai ficando a pairar no ar, sem raízes de sinceridade no homem médio, obrigado apenas a ingurgitá-la, a engoli-la. Introduz-se na mente humana um corpo estranho, um reportório de ideias não assimiláveis ou, o que é o mesmo, mortas. Esta cultura sem raízes no homem, que não brota espontaneamente dele, não é autóctone ou indígena; é antes algo de imposto, extrínseco, estranho, estrangeiro, ininteligível, em suma, irreal. Sob a cultura recebida mas não autenticamente assimilada, o homem ficará intacto, quer dizer, ficará inculto, ficará bárbaro. Quando o saber era menor, mais elementar e mais orgânico, era mais fácil poder ser verdadeiramente sentido pelo homem médio, que então o assimilava, o recreava e revitalizava dentro em si. Assim se explica o paradoxo colossal destes últimos decénios: o facto de um gigantesco progresso da cultura ter produzido um tipo de homem como o actual, indiscutivelmente mais bárbaro que o de há cem anos. E que a aculturação ou acumulação da cultura esteja a produzir, de forma paradoxal mas automática, uma rebarbarização da humanidade [que la aculturación o acumulo de cultura produzca paradójica pero automáticamente una rebarbarización de la humanidad ]. (…) »


[ Do pintor basco Ignacio Zuloaga (1870-1945), um retrato de Ortega contemporâneo do texto. ]

sexta-feira, dezembro 12, 2008

"Coimbra, 12 de Dezembro de 1966"

« (…) Reajo como posso contra a pedagogia que se esquece de acrescentar às lições de quantas ciências ensina que as aves cantam, que as águas sussurram, que só há um acto que o homem pode repetir eternamente com originalidade: olhar a natureza. »

Miguel Torga, Diário, vol. X.

quinta-feira, dezembro 11, 2008

"Coimbra, 11 de Dezembro de 1951"

« Não me valeu de nada arrancar a liberdade das mãos de Deus. Ficou mais presa ainda nas mãos dos homens. Claro que me prometem o futuro… Mas é triste. Eu que não acreditei no paraíso do céu, onde viveria ressuscitado, tenho de acreditar no paraíso da terra, onde serei adubo. »

Miguel Torga, Diário, vol. VI.

As faltas dos deputados e a verdadeira face de Soares

Quebro, hoje, o meu silêncio de séculos (seculum seculorum, perdoem as gralhas no latim porque o meu mestre foi o pirata do Astérix) para comentar as declarações do decano (sim, de cano, porque ele supõem que a nossa inteligência cabe no cano de uma mini sagres) da política portuguesa. Em primeiro lugar, atesta o inefável, a propósito das faltas na AR, que os deputados têm direitos. Olhe que não, sr. dr., olhe que não, o que eles têm é regalias, privilégios, benefícios e prerrogativas que mais ninguém neste país tem, olhe que sim, sr. dr., olhe que sim. O que é indiscutível é que, em outra ocasião, já alguém veio assegurar que eles de facto, ia dizer só, assistiam aos plenários, mas, e este mas é fundamental, trabalhavam muito nas comissões e em casa, murmuraram-me aqui ao lado que foi um lapsus linguae, que o que o homem queria dizer é que trabalham muito para a sua própria casa, mas eu pacientemente fiz-lhe ver que ele é que tinha tido um lapsus audio.
Em segundo lugar, certifica que a ministra da educação tem como característica ser possuidora de uma coragem invulgar (acho que não foi este o termo, mas a ideia é que a mulher é corajosa à vigésima quinta casa). Este, pensava eu, não devia ser o apanágio dum político mas sim, digamos, de Aquiles, para recuar até à idade clássica, que morreu cedo, porque morrem cedo os que os deuses amam. O que no caso da D. Maria de Lurdes não aconteceu, o que me leva a pensar que não era corajosa ou que só o foi já muito tardiamente, aqui ao meu lado sussurram-me teimosa, mas eu não posso, em consciência, titulá-la de tal.
Por último, o elogio do nosso “engenheiro”, que o homem faz o que pode e como diz a sabedoria popular, a mais não se é obrigado. O que é um facto é que é o “socialismo na gaveta” a elogiar aquele que o “trancou num cofre a sete chaves e as deitou todas fora para lugar que é impossível de imaginar”. Neste caso rumorejam-me aqui ao lado que o “engenheiro” deve ter prometido ao nosso decano que a descendência, finalmente, iria arranjar a sua colocaçãozinha, mas eu, digo-o à puridade, não posso, não quero, nem devo acreditar em tal asserção que me parece ofensiva e apenas se poderá aceitar condicionalmente, como pura hipótese conjectural num mundo onde só a lógica imperaria.

terça-feira, dezembro 09, 2008

AMOR, VERDADE, LIBERDADE

“Coimbra, 9 de Dezembro de 1993”

« E chega ao fim, com este volume, um livro que comecei a escrever um pouco estouvadamente há sessenta anos, e acabo agora com mais assento. Como é sabido, ninguém conhece o dia de amanhã, e, pelo que me diz respeito, fui um mártir dessa incerteza. E iniciei o presente tomo quase seguro de que o não terminaria. O resultado está à vista: um estendal de dúvidas e gemidos. Mesmo assim, talvez valha a pena que se junte aos outros, como seu natural remate. Mais do que páginas de meditação, são gritos de alma irreprimíveis dum mortal que torceu mas não quebrou, que, sem poder, pôde até à exaustão. E se despede dos seus semelhantes sem azedume e sem ressentimentos, em paz de ter procurado vê-los e compreendê-los na exacta medida. E que confia no juízo da posteridade, que certamente lhe vai relevar os muitos defeitos e ter em conta as poucas mas sofridas virtudes. De alguma coisa me hão-de valer as cicatrizes de defensor incansável do amor, da verdade e da liberdade, a tríade bendita que justifica a passagem de qualquer homem por este mundo. »

Miguel Torga, Diário, vol XVI.

segunda-feira, dezembro 08, 2008

"Penamacor, 8 de Dezembro de 1961"

« (…) No meio doutras evidências, duas tornam quase tangível a perdição: nem consigo vislumbrar a técnica, desenfreada, a limitar-se, nem a ética, humilhada, a reabilitar-se. (…) »

Miguel Torga, Diário, vol. IX.

sexta-feira, dezembro 05, 2008

VITORINO NEMÉSIO (1901-1978)


A dias de atingir o limite de idade de funções públicas, foi a 9 de Dezembro de 1971 que o professor Vitorino Nemésio deu na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa a sua “última lição”. Mas, prevenia logo de entrada: « Claro que a lei só tira o exercício ao funcionário: o homem exerce enquanto vive. » E, logo a fechar o primeiro parágrafo, o homem deixava transparente a norma que regrou essa “última” e todas as mais lições do professor:

« O ensino não é mera informação do saber mas norma de humanidade, testemunho do autêntico. Uma sociedade que só instituísse informações teóricas aplicáveis ao êxito rentável teria a civilização moribunda. É o grande risco da nossa.»

O homem Vitorino Nemésio demonstrou o que disse: o funcionário “limite de idade” transmutava-se em um livro de poemas (com o mesmo título, 1972); um livro que foi, não apenas mais um testemunho do autêntico, - mas é e será um risco de luz oposto ao traço da barbárie; um farol seguro a quem se achar embarcado e quiser traçar rumo por carta portuguesa nos tormentosos mares da poesia neste século XXI. Assim o poeta exerce mais além de quanto o homem vive.

No dia 28 de Dezembro de 1971, o poeta Vitorino Nemésio abria esta epígrafe no seu Limite de Idade:


EPÍGRAFE

Abro no choupo inciso o meu semblante
(Sou gravador em pedra).
Sossego é todo o Outono terno e imóvel:
Tramas de folha, estâncias altas, cinzas.
Já, de vagar, dos Fiéis avança o dia
Com carroças no Céu, disposições de Outubro.
Minha morte civil, folha de vencimentos,
Cairá também como ao choupo amarelo,
Aposentados nós nos escudos do exílio:
Filhos que tenho, um a cada ombro,
Filhas, cada uma a sua asa,
Do pássaro poeta ampararão o extremo
Com a ajuda de três que me adoptaram
E netas, netos cantando no caminho:
«Ó Senhor Ladrão, ande ligeirinho…»
Fogueteiro maneta, pela mão do velhinha,
Que de pedras me encheu o bolso contra apupos,
Recolho já da tarde o raio ultravioleta,
Aproveito o poente enquanto há sangue lampo
E, ambos surdos à borda da lareira,
Atiço positrões improváveis no campo.
Abro no choupo o que fecho no osso:
Meu nome passageiro
Convocado do chão.
Adeus, árvores novas!
Até logo, ó pessoas efectivas,
Meus amigos formados para o adeus!
As mãos me tremem no vulto,
Minha maneira de folhas,
Que o choupo inciso sou eu:
Espalho as relvas em torno,
Espelho-me nas águas vivas,
Cortam-me na tarde idosa:
Só peço que me levem como ao tronco
Num carro de que os bois tenham fugido
Com as unhas de fogo e os cornos de alma
Metendo-se no mar, de puro espanto,
Comigo em ficta lágrima num pêlo
Que grávida gaivota leve às Ilhas.

Mas escondam, por tudo, peço,
Minhas penas às filhas,
Se o mereço.


Livres do tronco e da canga, os bois ungulados de fogo e de “cornos de alma” transformam-se num cavalo sidério, no penúltimo poema do livro:



CAVALO SIDÉRIO

Assumo a noite e o mal que nela está
Como na rosca estriada o equinoderme.
Tenho a culpa de tudo, a boca de Eu:
Eu, eu, golfado, - e o mais um verme.

Sou investido por mim mesmo no Outro
Ajoelhado na rua a apanhar trapos,
E o que o carrega, e a criança decepada
Encarno em sua mãe e em seus farrapos.

Tiro lama das unhas. Acendo
O cocktail do desespero, a estrela morta
No milhão de anos-luz. E vendo

Que sou assim como a espora no flanco
Do Cavalo fugido, e o casco, e o pó,
Paro à porta de Deus e choro,
Paro à porta de Deus e choro só.




São as últimas metamorfoses do Bicho Harmonioso (1938), que é o poeta: « A esse respeito, creio que o poema central do livro e, em grande parte, do que, não sem tal ou qual ênfase, poderei chamar toda a minha obra poética, é O Canário de Oiro: ainda e sempre bicho harmonioso, bestiola de fábula, como o Licorne ou a Fénix. »

Canta como segue.

O CANÁRIO DE OIRO

Se deixo entrar este canário de oiro
Que me espreita e debica
(Eu, que sou ossos, a gaiola,
Débil passarinho loiro!
Eu, professor – como menino de escola!)…
Pois sim: Canta. Fica!

E então, para que tudo em mim se honre e se execute –
(Voz, penas e dejectos
Do canário),
Dou-lhe, seus passeadores, os meus afectos,
As minhas veias duras para grades:
Dentro delas, contrário,
Ele se embeleze e lute.

Ah, que o canário é o meu sangue talvez!

Mas então isto que é? Que violino engoli?
Que frauta rude aveludou a minha noite?
Em que prato de cobre bateu o nó do açoite?
Tão exacto, meu Deus, só vibrado por ti!

Musical, todo fogo, em mim me vou e expando;
Cada lágrima cai de mim como harmonia:
De quatro em quatro, vão a minha dor jogando
Essas lágrimas vãs no tapete do dia.
Que sérias são estas coisinhas de soar,
Poetas que vos is,
Soldados velhos,
Escolhendo na morte uma farda e um lugar!
Somos aqueles imbecis
Desenvolvidos nos espelhos…
Ai, nos espelhos paralelos
Da sala onde um de nós é sozinho a cantar!
Estamos fumados, amarelos,
De tanto ler e delirar!

Inúteis fôssemos, poetas;
Quero dizer: como as casas cor de laranja ou alvas de ovo,
Que não são laranja nem ovo:
Ainda se havia de ver
Se as podridões quietas
Não são o sal e o renovo.




Que águia trouxe do céu meu diapasão de ferro?
Que milhafre criou minha carne em seu bico?
A mão qual foi que me rasgou no erro,
Mulher, o coração que te dedico?

Quem era aquele de quem tirei o sangue forte,
Esta pequena música corrente?
A veia mamou-a a morte,
Que engorda à custa de gente!

Quem era aquela mulher de branco
Que tinha os seios fortificados
E o ventre puro de onde arranco
E os altos olhos separados?
A de fogo e de fel, reclusa e encordoada?
A que nunca toquei porque estava selada?

E o anjo bravo, só lume, o outro sujeito,
Em que chama tocou sua asa desabrida?
Que maçarico foi que lhe platinou o peito
E o deixou em ferida?

Perguntaria,
Se esfinges mais houvesse,
Em que sal se tornou a que se deu por Maria
E me prometeu o que eu fizesse?

Ah, aves de parabólica plumagem,
Anjos de matéria nenhuma e de toda a arrogância,
Mulheres e homens de que sou a última viagem
Começada no mar que me salgou a infância!

Ah, ovo que deixei, bicado e quente,
Vazio de mim, no mar,
E que ainda hoje deve boiar – ardente
Ilha!
E que ainda hoje deve lá estar!


Ah, Sete Espadas, minhas primas,
Estrelas nítidas e diversas,
Piões, pombas, baraças, e até as Sras. Simas
Todas quatro alteando as suas toucas perversas!

Onde? quando? já? outra vez? ou ainda não?
O tempo gasta a minha voz como se fosse o seu pão.




É ele, é ele o que tem tudo escondido!
Ele o que A desviou e A violou no vento!
Ele o que fez de mim o menino perdido
E me deu a navalha com que me fiz violento!

Ele leve para o alto as cordeiras e come-as;
Ele esconde no vale os lobos reduzidos;
Ele pede-nos as coisas emprestadas e some-as;
Ele gasta-nos a voz, os olhos e os ouvidos!

Tempo, ladrão, dá-me conta do fardo:
As saudades práli! As promessas práli!
O que te vale é o escuro… Eu ainda ardo;
Minhas estopas são embebidas por ti.

Ai! A cordeira preta, e do velo maior -
Um palmo de gemido – onde a terias posto?
Tinha os galhinhos entre a lã… é melhor
Desenriçá-los do meu desgosto.

Tempo, molde de todos os lugares,
Pegada de quem desaparece,
Esquema de bocejos e de esgares,
Frio de tudo o que arrefece!

Tempo que me levas meu Pai morto,
Com catorze cavalos, todos de músculo solar;
E, para o ano, quinze! e crescendo! e ele absorto!
E os cavalos cada vez mais empinados! Morto…

Com que jarrete ou asa o hei-de eu alcançar?

quinta-feira, dezembro 04, 2008

"Coimbra, 4 de Dezembro de 1980"

« A História é uma paixão dos homens e uma ironia dos deuses. Sendo vivida por nós, parece feita por eles. Quanto mais nos obstinamos em torná-la o espelho dos nossos triunfos, mais não sei que ocultos desígnios capricham a reduzi-los a uma aventura absurda. Porque, ao fim e ao cabo, sempre que nela floresce a esperança, frutifica a desilusão. Arena inglória onde a vida e a morte se confrontam a toda a hora, o sangue que a mancha nem sequer tem sentido. Inocente ou culpado, mitiga apenas a sede insaciável e vã da fatalidade. »

MIguel Torga, Diário, vol. XIII.

Cinemas da minha infância II

Perto de casa dos meus pais ficava o cinema Alvalade. Hoje o edifício prepara-se para albergar escritórios de empresas ou para se converter em hotel ou para desempenhar qualquer outra função de igual calibre.

Mas, em tempos, os impressionantes e saudosos cartazes de cinema anunciavam filmes de desenhos animados, filmes de artes marciais (que nunca cheguei a ver) ou filmes indianos de enredo promissor para os adultos. O Prestígio Real, essa famosa película do cinema indiano, não era para a minha idade e o cartaz que o publicitava nunca me cativou. Cativaram-me, por outro lado, o Livro da Selva, o Pinóquio, o mais adocicado Bambi e até o Homem Aranha. A Branca de Neve, que terei visto aos cinco anos, trouxe-me pesadelos até aos oito. Ainda assim, o grande ecrã e o caleidoscópio de cores que ele projectava fascinavam-me invariavelmente.

Nem percebo hoje como aguentava a entediante primeira parte dos filmes a relatar o sucesso da TAP ou o processo de produção da cortiça. Mas chegava o intervalo, vinha o homem dos Rajás, e o meu avô anunciava que o filme começava dentro de momentos.

quarta-feira, dezembro 03, 2008

Cinemas da minha infância I



Cinema Roma, que me acompanhou na infância e na adolescência. Lá vi filmes que na altura me encantaram e que não lembram ao Diabo - penso no "Trinitá, o cowboy insolente", entre outros.

Olho com muita nostalgia o edifício deste cinema que está, na prática, desactivado.
(Obrigado pela foto, Arlete.)

segunda-feira, dezembro 01, 2008

"Coimbra, 1 de Dezembro de 1993"

« Hei-de morrer assim a ser desmancha-prazeres. Acaba de me telefonar com a voz mansa e mimalha, na esperança oculta de receber aplausos à rábula partidária que representa no palco político. E, a entender-lhe a intenção e a fazer-me desentendido, troquei-lhe as voltas a desabafar. Chamei à convivência conivência, e à incapacidade incapacidade. Condenei liminarmente uma oposição sem raiva, sem indignação, sem fogo interior, que assiste passivamente numa cordata abulia, à perdição da pátria. Que discute academicamente situações revoltantes, a fazer tropos e má literatura. O dia era de conjurados. De humilhações que se revoltam e sacudiram o jugo estrangeiro, de ânimos impacientes e combativos. E nem isso pesava nas respostas frouxas e evasivas que vinham do outro lado do fio. E a conversa teve este triste remate:
- Vejo que está muito pessimista.
- Estou. Infelizmente. Não acredito em nenhum de vocês. Não são quentes, nem frios. E, se leu o Apocalipse, sabe que Deus vomita os mornos. »

Miguel Torga, Diário, vol. XVI.