sexta-feira, janeiro 30, 2009

CUIDADO COM O CÃO



« Segundo as últimas notícias, este pobre Peregrino, ou antes Proteu, para os íntimos, acaba de se finar como o Proteu de Homero. Por amor da gloríola, já o tínhamos visto em todas as figuras possíveis e imagináveis. Pois agora, para acabar em beleza, vestiu-se de fogo aquele que na verdade já ardia duma ardente paixão. Eis o nosso homem reduzido a um bocado de carvão, como Empédocles. Há, todavia, relativamente ao seu predecessor ilustre, uma diferença: este, antes de se lançar na cratera fundente do Etna, preveniu-se de olhares indiscretos; aquele, ao invés, imolou-se diante uma multidão de papalvos, subindo solenemente as escadas para a enorme fogueira, não sem anunciar aos Gregos o fumoso desígnio, com muitos detalhes e justificações, antes do espectáculo.

« Imagino-te a morrer de riso à lembrança deste velho senil, e parece-me que te ouço: -“Que absurdidade! Que desmarcado orgulho!” – e mil outros qualificativos do género. Mas, se é longe dos factos que fazes ouvir a tua indignação, fica sabendo que foi ao pé da mesma fogueira que eu despejei o saco da minha, e disse tudo o que pensava da comédia, em meio dos espectadores escandalizados com a minha reacção. De facto, eles, na maioria, estavam cheios de admiração pelo número do velho idiota. »

São, quase na íntegra, os dois primeiros parágrafos do opúsculo De Morte Peregrini, que anunciei no postal anterior. Luciano de Samossata escreveu-o em forma de epístola a um amigo, Crónio, e é quase a única fonte que nos chegou da existência deste estranho Peregrino, apodado de Proteu. Os parágrafos citados dão o tom de como o comediógrafo Luciano “despejou o saco” das velhas contas que saldou com a trupe dos cínicos pseudo-filósofos e embusteiros.

Peregrino teria nascido em Pário, na Mísia, onde ficava a velha Tróia das ilíadas aventuras homéricas. Mal saído da puberdade já andava a dormir com uma mulher casada; depois violou um rapaz; acabou por esganar o próprio pai, idoso, “não suportando a degradação física” do velho. Foi mais que bastante para se ver obrigado a fugir da cidade natal. Desceu à Palestina. Aqui, insinuou-se entre os cristãos e instruiu-se nas suas doutrinas, “impregnou-se dos seus textos sagrados” e (não é claro porquê) acabou na prisão; parece que o seu prestígio aumentou aos olhos dos seus correligionários na fé a ponto de o considerarem… um “novo Sócrates”! O governador da Síria não lhe achou culpa e libertou-o. Volta à Mísia, “em companhia de um bando de cristãos devotos” (talvez uma missão de apostolado) e acaba aclamado pelos concidadãos com “Viva o filósofo! Viva o émulo de Diógenes e Crates!” (Crates era o marido desta bela aqui.) O prestígio desfez-se quando o “apanharam a comer uma carne interdita” (os cristãos palestinenses mantinham os costumes judaicos). Abandonado dos companheiros, dirige-se ao Egipto. Aqui, frequentou Agatóbolo, que, como vimos, foi um dos mestres de Demonax; agora diz Luciano que ele instruiu o Peregrino “no ofício que ele exerce hoje.” E qual era? « Com o crânio todo rapado e a cara suja de bosta, masturbava-se em público sem a mínima vergonha, coisa que os cínicos consideram muito natural.» Chega à Itália, onde, na própria Roma, discursa contra tudo e todos, incluindo o César (provavelmente Antonino Pio). Expulso, vem à Ática, e tenta concertar os gregos contra Roma. Até que desce ao Peloponeso, onde se teria imolado pelo fogo, 4 kms a leste do estádio de Olímpia, no fim dos jogos que ocorreram em 165 d. C..


Num texto não isento de inverosimilhanças e até contradições (que fazem suspeitar não serem as primeiras palavras do primeiro parágrafo com que abri este postal apenas uma maneira de afivelar um irónico distanciamento), Luciano de Samossata compraz-se na descrição anedótica, numa diatribe furiosa e cruel supostamente proferida no local por interposta personagem anónima (“que impressionou toda a gente pelo seu bom humor e franqueza”), em resposta a um discurso lamentoso e laudatório dum sequaz de Peregrino: « - Agora que este parlapatão do Teagéneo acabou a loquela com lágrimas de Heraclito, é normal que eu comece o meu discurso com o riso de Demócrito…» E eis uma amostra deste risonho “bom humor”, que vai correndo o teclado da sátira, desde a ironia moralizadora até ao sarcasmo pesado de sugestões macabras:

« - Se ele deseja ardentemente morrer como Héracles, que nos deixe sossegados e, sem alardes, vá pegar-se fogo num monte recatado e ermo, levando o incondicional Teagéneo como Filoctetes. Mas não, o nosso impostor vem a Olímpia e é diante um numeroso auditório que ilumina a sua fogueira, como num teatro. Por Héracles, digo que esta morte lhe assenta como luva, pois que ele se dá o castigo dos parricidas e dos ateus! Mas é pequeno castigo, para as malfeitorias que cometeu: era dentro do touro de Falaris que ele devia assar, e não numa pequena fogueira, cujos fumos o asfixiarão logo que ele abrir a boca! Sim, muitas vezes me disseram que basta abri-la para morrer…»

Noutro passo, Luciano abre a boca para dizer isto:

« Ele acredita (ou antes, delira!) agir para o bem comum, inculcando nos homens o destemor da morte e do sofrimento. Pois eu gostaria de lhe pôr esta questão, que deixo antes a vós, cidadãos: - “Desejaríeis que os piores dos celerados pudessem troçar da morte, impassíveis ao terror que normalmente inspira um tal suplício?” Bem entendido, responderíeis franca e unanimemente “não”. Então como é que este Proteu pode crer ser ao mesmo tempo uma fonte de sabedoria para os bons e um modelo para os energúmenos? » Isto é: se os “maus”, seguindo os ensinamentos do filósofo, deixassem de temer os castigos mais temíveis, que poder é que o archistator Luciano e o seu César teriam sobre eles?... O argumento do retor e juiz não prevê que os “maus” se pudessem tornar “bons”… O que o preocupa é que os pacatos cidadãos, se insensíveis ao “terror”, tornar-se-iam “maus”. Na sua preconcebida má-vontade, recusa a concebível alternativa: que, se o Peregrino se não teme dar-se tal morte, é porque não seria assim tão “mau”… A isto podia o sírio responder o que repete várias vezes no texto: o cínico não queria na verdade morrer, mas armou-se um espectáculo para se fazer publicidade. Mas quem já não era novo, e tinha tantos sequazes, precisaria de arriscar uma tão perigosa manobra de marketing?

Como veremos para a semana, quase tudo o que o próprio Luciano conta da chegada ao local da auto-imolação do filósofo parece desmentir a injuriosa insinuação do comediógrafo. O suicídio de quem viveu como quis e quer ainda morrer quando e como quer, era uma marca comum dos cínicos, mais ainda que dos estóicos, como Luciano bem sabia. Do seu ficcionado modelo de urbanidade e virtudes cívicas – Demonax -, apesar de lhe não faltar alimentação e casa, conta-nos que, já quase centenário, « recusou-se a comer mais e deixou a vida tão alegre como sempre os seus amigos o tinham conhecido. » Mas o Peregrino, um proteico contestador da autoridade e perturbador da ordem pública, - comparar-se a Héracles e deitar-se fogo… parece que era de mais para o nosso urbano Luciano!



[Cave Canem, Cuidado com o cão!, era um aviso em mosaico frequente na entrada das casas de campo dos patrícios romanos. Muda-se o nome das classes sociais, mudam-se as próprias classes… A cor do medo não. ]

segunda-feira, janeiro 26, 2009

TUVANOS



Do planalto central siberiano, da Mongólia e do Xinjiang chinês, parece que estes nómadas são geneticamente os parentes mais próximos dos indígenas americanos. Certo é que são capazes de cavalgar tão bem a voz vomo os cavalos. Um gutural e garganteado canto que é único.

E por falar em norte-América: um dos que no Ocidente primeiro conseguiu imitar esse tipo de canto foi o cantor de blues Paul Pena (1950-2005), descendente de cabo-verdianos:

quinta-feira, janeiro 22, 2009

DE LUCINO A PEREGRINO


« É justo também que fale de Demonax, e isso por dois motivos: primeiro, para que se conserve na memória, quanto em meu poder estiver, a lembrança de homens virtuosos; depois, para que os jovens bem nascidos e encaminhados para a filosofia não se vejam reduzidos a imitar modelos apenas nos antigos, mas que tenham diante dos olhos um exemplo do nosso tempo, e possam seguir os passos do mais perfeito filósofo que conheci. »

O letrado Luciano de Samossata, contemporâneo do imperador Marco Aurélio, não foi só imperador da sátira no seu tempo. O emérito comediógrafo tem obras mais sérias, e esta, que titulou com o nome Demonax, parece ser uma delas. Trata-se de uma pequena compilação de 67 parágrafos, que segue o género, tão típico e apreciado dos manuais de retórica alexandrina, das colecções de chreiai : são aforismos ou situações concisamente descritas que desenham um carácter-tipo (prossópon, o termo que os latinos traduziriam por persona e que, poucos séculos depois de Luciano se começaria a impor com tanta importância para o conceito ainda nosso actual da pessoa), um carácter ideal, exemplar, catalizador de emoções na disposição afectiva dos auditores ou leitores.

Já sugeri no anterior que o lucino escritor deitava umas luzes ambíguas sobre os filósofos do seu tempo, em particular os cínicos, que mais que outros lhe despertaram atenção, não sei se a mais precisa compreensão. Este Demonax, nascido de boas famílias de Chipre, teria tido como mestres um tal Agatóbolo, um Demétrio e o célebre Epicteto. Veio a viver a maior parte da vida em Atenas, onde teria morrido, velho de quase 100 anos de idade. Certo dia, « alguém lhe perguntou quais eram os filósofos que ele preferia: - São todos admiráveis; mas, quanto a mim, reverencio Sócrates, admiro Diógenes e amo Aristipo. » Diógenes é o cão de Sinope, guardador deste Tonel; Aristipo, discípulo de Sócrates, foi o fundador da escola Cirenaica e, se bem me parece, não só foi prezado pelo suposto Demonax como o preferido do nosso Luciano: foi o primeiro, antes de Epicuro, a desenvolver uma física e uma teoria do conhecimento perfeitamente coerentes com uma ética do carpe diem. Por outro lado, aquele “são todos admiráveis” é perfeitamente coerente com o ecletismo patente neste modelar Demonax, em que o pedagogo Luciano condensa o melhor daqueles venerandos gregos para os seus alunos romanos “bem nascidos e encaminhados”. Ou talvez antes para nós, amigo leitor. O facto é que nenhuma outra fonte coetânea conhecida, grega ou latina, menciona tal personagem, de tamanha grandeza e longevidade - «que os Atenienses, a Grécia inteira, tinham em tanta consideração que os magistrados se levantavam à sua passagem e toda a gente se calava em respeito, suspensos da sua palavra». Enfim, ficou a fama, que já hoje chegou à Lua, como o leitor pode ver olhando para cima. E facto é também que este hetrónimo Demonax, urbano, cordato, de falas mansas, “que não usou a ironia de Sócrates”, pouco tem de cão indómito e indomesticado. Mas não perde ocasião de, em lances tão ao gosto do ortónimo Luciano, se encontrar e desmascarar uns cínicos que, sob capa de filósofos, não passariam de vagabundos impostores e aventureiros. Seria o caso de um chamado Peregrino. No único parágrafo que se lhe refere, lê-se tão só isto:


« Peregrino, chamado Proteu, sentia-se de ele [Demonax] levar as coisas muito à ligeira e de fazer dos mortais assunto de riso: - Demonax – dizia ele – tu não tens caninos de cão. – E tu, Peregrino, não tens tripas de homem. »

É um trecho digno de reparo. Parece-me que o Peregrino acusa é o próprio Licínio-Luciano, no mesmo passo em que nos deixa transparente uma diferença, digamos temperamental, entre os sequazes de Aristófanes (que é quem se ri, por trás de Demócrito), e um Antístenes ou um Diógenes que (tal como Sócrates) picam como tremelgas ou mordem como cães, mas não ficaram na memória como hienas. A não-resposta de Demonax, colorindo manchas estóicas no pelame do cínico, interpreto-a assim: - “ Tu, que te pretendes a divina impassibilidade da natureza a respeito do homem, é natural que não saibas nem aprecies rir. Terás pois um tratamento especial.”

O tratamento que o risonho Luciano, que se ria de homens e deuses, veio a dar ao estranho Peregrino (este, sim, terá sido uma pessoa histórica), ficou reservado para uma obra que especialmente lhe dedicou, conhecida pelo título latino De Morte Peregrini. De que trataremos.

sábado, janeiro 17, 2009

DE LICÍNIO A LUCINO


« A resposta que ele deu a certo pró-cônsul foi ao mesmo tempo elevada e mordaz. Era este tal um dos que por aí agora se depilam os pelos das pernas e do resto do corpo. Uma vez, um cínico, de cima duma pedra, clamava publicamente contra os seus costumes infames. O pró-consul ressentiu-se, mandou prender o cínico e propunha-se açoitá-lo ou exilá-lo. Mas Demonax, que passava na ocasião por ali, pediu-lhe que se amerceasse do infeliz, explicando que o ser publicamente desbocado e atrevido era um privilégio tradicional da escola dos cínicos. – Está bem, desta vez perdoo-lhe, por causa de ti. Mas, se ele recomeçar com insolências, que pena é que achas que ele merece? - Depila-o! »

Noutra ocasião, o orador Favorino, sabendo que Demonax desfazia na sua retórica pseudo-filosófica, foi procurá-lo e perguntou-lhe qual era a escola filosófica que ele seguia: «- Mas quem é que te disse que eu sou filósofo? » – respondeu o cão defensor dos cínicos, voltando-lhe as costas, rindo alto. Favorino foi atrás dele, insistindo: - «Do que é que te ris? – Rio de tu quereres diferençar os filósofos pele barba, tu, que não tens nenhuma! »

Bem, disse no meu último que o assunto pedia mais que cabelos e barbas, mas Luciano de Samossata insiste. Estas preocupações com “a imagem” são apenas um mínimo pormenor revelador da extraordinária actualidade deste retor helenista do século II d. C. Mas o leitor realista talvez me responda que é antes perenidade, não “actualidade”, querendo dizer: - "Desde quando é que os homens (mais disfarçada, não menos interessadamente que as mulheres) deixaram de se preocupar com a imagem?..." Então se eu, ex abrupto, lhe ripostar assim: - Depois de terem começado a preocupar-se mais com a Imagem de Deus -, teríamos uma resposta que nos tira logo das questões de barbearia ? Talvez que não, nem do riso do leitor “realista”: - Ora, ora, isso é um assunto com barbas!... Pois é, e venerandas.

Lembremos o transcrito parágrafo final de O Cínico: uma vez mais, numa tradição que remonta aos fundadores Antístenes e Diógenes, os que levavam uma vida de cão à margem da normal vida de sociedade, não faziam por menos: tinham como imagem um filho de Zeus, que, desde a primeira infância, se esgotara pelo mundo em aventurosos perigos e violências, sem nunca ter conseguido voltar (ao contrário de Ulisses) à sua terra natal. O satirista Luciano exagera: não seria apenas com Héracles; sugere que as desconformes pretensões dos cínicos iam a ponto de se trabalharem em si esculturas dos próprios deuses… Sobre vácua, coisa supinamente risível ! E o nosso sírio riu ao longo de toda a sua obra, não só dos homens como dos deuses.

Este Licínio-Lucino-Lúcio ou Luciano homónimos, não há dúvida que se nos apresenta um modernaço, e não sem razão foi comparado a Voltaire. Nos Diálogos dos Deuses, como no Zeus Refutado, ri-se dos deuses, que são impotentes para moderar ou impedir as loucas paixões dos homens, acabando enredados e desfeiteados pelas sofísticas argumentações dos filósofos epicuristas e cépticos. Por outro lado, na obra O Banquete, junta estes filósofos, mais um estóico e um cínico numa festa de casamento, oferecida por um mecenas, e prega-lhes por atacado uma das mais contundentes e divertidas sátiras, bem dignas dos seus modelos literários Menipo e Aristófanes. - Depois de, à vez, cada um ter botado discurso, qual deles o mais patusco, depois do cínico já ter saltado para cima da mesa, ultrajar a noiva, e envolver-se em cenas de pugilato com um criado anão, o clímax final é introduzido quando, todos já bem comidos e bebidos, o filósofo estóico faz reparo de ofendido por os criados terem mais bem sortido o prato do colega céptico, a seu lado na mesa…

- Isso é uma falsa impressão tua – diz-lhe o céptico.
- Não me conseguirás demonstrá-lo – lança-lhe o estóico… E vá de trocar os respectivos pratos.
- E tu devias resistir e abster-te de opiniões e gestos precipitados – torna-lhe o céptico, citando o famoso sustine et abstine do grande Epicteto. E tenta retomar o prato. Mas o outro, sem mais argumentos, vem logo às vias de facto e lança-lhe o cozido à cara. Engolfinham-se os dois, os convidados, os noivos, os criados… e a festa termina num sangrento arraial de pancadaria, com o cínico ( um chamado Alcidamas) a varrer a mesa com o inseparável varapau e a acertar num candelabro, cujos lumes se apagam ao cair com fragor sobre a mesa. O reboliço prossegue na escuridão até que acode a vizinhança, com luzes e autoridade para repor a ordem cívica: e o Alcidamas é achado no chão, a cobrir com o manto de filósofo uma bonita criada…

Quando falei na modernidade de Luciano de Samossata (da moderna Samsat, no Curdistão turco, à beira do Eufrates, afundada não há muitos anos para construção duma barragem com o nome do ditador Ataturk), falava da modernidade iluminista e lucina de Voltaire, capaz de se rir de tudo à la légère e abrir as comportas a todos os iluminados ditadores; não me referia à nossa “pós-modernidade” afogada e deprimida no fundo de sofisticadas barragens, já incapaz de rir com as frioleiras ingénuas e demasiado previsíveis do retórico Luciano. Este, não obstante, permanece-nos próximo, e a sua relação de amor-ódio com a filosofia é bem interessante e digna de se estudar. Como já disse, os cínicos da sua época mereceram-lhe especial curiosidade, mas poucos o convenceram. É possível que em O Cínico tenha pretendido compor um tipo ideal, de resto um tanto frouxo e convencional. Foi pena ter-se perdido a obra que dedicou a Sóstrato da Beócia….

« Ao nosso tempo coube ter o seu lote de homens dignos de reputação e memória veneráveis, produzindo um herói duma força acima da natureza, que era um filósofo completo. Falo do beócio Sóstrato, a quem os gregos chamaram Héracles, convencidos de que se tratava do próprio semideus; mas também o filósofo Demonax. Eu vi-os, a ambos admirei, pude até viver bastante tempo com o segundo. Acerca de Sóstrato, já escrevi noutra ocasião; contei do tamanho da sua estatura, da sua prodigiosa força física, de como dormia ao ar livre na montanha do Parnasso, sobre a erva, vivendo uma vida selvagem; contei também das suas acções, em tudo conformes com o nome que tinha: como ele livrou os viandantes dos celerados que os assaltavam, como abriu caminhos dantes impérvios, e construiu pontes em sítios intransitáveis e perigosos. É justo que fale agora de Demonax… »

“Conformes com o nome que tinha” Sóstrato, que deriva do verbo sózô: estar e conservar-se abrigado; estar são e salvo. Com o mesmo verbo estão associados os nomes sostrón (a recompensa dada a quem salva dum perigo; a oferenda dada em sacrifício a um deus); sotêr (salvador) e sotêría (salvação, preservação, segurança). - O mesmo verbo e nomes que compõem o de Sócrates… E já agora, a respeito de nomes, esse ferrabraz do Alcidamas que fala com o falo à noiva em plena boda, mais o coro dos filósofos que peroram num linguajar ridículo e assaltam com violenta sem-cerimónia cerimoniosas ocasiões sociais – “estragando a festa” -, tinha ele próprio um nome parente do de Alcides – que era o nome humano de Héracles…

Citei a começar e venho a terminar com citações da obra que Luciano dedicou a Demonax. É justo que agora ponha ponto final a este desconforme postal dedicado a tão desconformes personagens, e atravesse com elas para o próximo.

quarta-feira, janeiro 14, 2009

DURO OFÍCIO


É um duro ofício, o de poeta.
Miguel Torga



Faz hoje um ano que venho aqui regularmente lembrando uma voz singular, que também soube ser a nossa colectiva de humanos e portugueses.

Torga quis que todos os sucessivos dezasseis volumes do seu Diário sempre abrissem e fechassem com um poema. Foi com a poesia que lhe fizemos acta de abertura aqui. Agora, termo de fecho, eu não conheço outro que o das capelas da Batalha. Poderia talvez ser aquele que o poeta deixou lavrado na derradeira página do derradeiro volume do Diário:

REQUIEM POR MIM

Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.


Isto foi em 10 de Dezembro de 1993. Mas do “destino”, como da “vida”, diz-se que às vezes nos “prega partidas”. Remontemos o rio do tempo. Seis anos antes, a 11 de Janeiro de 1987, no poema com que fechava o vol. XIV, eis que encontramos um…


ESTUÁRIO

O rio chega à foz.
Cansada, a minha voz
Desagua em silêncio
No grande mar do tempo.
A correr apressada
Desde a nascente,
Numa crescente inquietação lustral,
Foi um longo caudal
De solidão
Na infinita extensão
Da humana aridez.
Agora, na exaustão da caminhada,
Encontro finalmente a paz calada,
O eterno repouso da mudez.


Não sei se não foi obrigado pela tirana rima que o poeta terminou na “mudez”; por mim acredito no que sempre acreditei: que ele não era homem para se render a nenhuma mudez-muda, a nenhuma mordaça. Repare-se que a “mudez”, depois do estuante caudal, é o estuário-silêncio do 3º verso. Ora, é de primária instrução poética que, em poesia, a mudez e o silêncio são antónimos inimigos no “duro ofício” que eu associei a uma Batalha.

Nos sucessivos meses deste 2009 darei aqui no Tonel mais provas de o que já hoje dei a provar: - Que a triste figura quebranta e rasteja, mas a vera efígie do poeta nem sequer “cai de pé”, porque não cai: fica de pé (ou é levado pelo Vento…) e, mesmo no “grande mar do tempo”, a “solidão” é relativa, se uma voz a outra responde e… correspondem: Guardo dos versos de quem vive ausente / Os tesoiros que tem no próprio ouvido…

quinta-feira, janeiro 08, 2009

LIÇÃO A LICÍNIO


- Eh lá, bom homem! Por que é que tu andas com essas barbas e cabelos até à cintura, descalço, sem túnica, apenas com um manto enodoado e cheio de remendos, dormindo ao sereno com a cabeça sobre uma pedra, errante pelos caminhos como um animal feroz?...

Assim começa o opúsculo O Cínico, de Luciano de Samossata (c.120 - c.190 d. C.), famoso orador e gramático de origem síria que trabalhou na corte imperial e chegou a archistator (espécie de delegado judicial do governador romano) em Alexandria. No final da vida voltou a Atenas, que sempre fora para ele o farol de toda a verdadeira arte e filosofia, e lá morreu. Chegaram dele até nós cerca de oitenta obras que, pela elegância retórica e a cáustica mordacidade da sátira que exibe em muitas delas, lhe valeram ser conhecido entre os eruditos modernos pelo Voltaire da Antiguidade.

Quem entrava a perguntar daquela sorte era Licínio, um jovem e rico cidadão que, de viagem entre duas cidades, encontra à beira do caminho um filósofo cínico com quem entra em diálogo, e que permanece anónimo até ao fim da conversa. Conversemos nós também um pouco com ele, que o ano de 2008 passou tão depressa que nem me deu tempo a farejar mais alguns seguidores do nosso patrono.

O filósofo andrajoso convida o jovem ricaço a visitar a gruta onde se acoita, não longe dali. Seguindo adiante, caminhando sem dificuldade sobre tojeiras e urzes, saltando de penedo em penedo, deixa o jovem bem calçado para trás, que vai andando a custo, todo picado das silvas…

- Pareceu-te que me eram precisos sapatos?

-Não, de facto. E os meus de pouco me valeram. Mas continuo a dizer que a natureza, que tanto prezas, e os deuses puseram a terra à disposição dos homens; e permitiram-nos tirar dela uma enorme soma de bens para termos em abundância, não apenas o que satisfaz as nossas necessidades, mas também tudo o que nos dá prazer. Ora tu privas-te de todas estas vantagens e delas não aproveitas mais do que as feras selvagens. Vives como um cão, comendo o que encontras e dormindo onde calha. Não vejo virtude nenhuma em alguém viver privado de todas as delícias que, pela arte e engenho dos homens, somos capazes de tirar das coisas que nos deram os deuses: a lã quentinha, o saboroso vinho, uma casa bem acomodada, um leito acolhedor… Se alguém nos tirasse estas coisas, ficávamos como os prisioneiros nos calabouços da cidade, a quem se faz sofrer a infelicidade dos infelizes que despojaram. Mas se é o próprio que, voluntariamente, se despoja de tudo isso, com mais razão diríamos que não só é infeliz como insensato.

-Talvez seja como dizes. Olha, deixa que te conte uma parábola. Certa vez, um homem muito rico, magnânimo e generoso convidou para um banquete numerosos convivas de toda a região. Serviu-lhes na mesa uma enorme quantidade e variedade de iguarias. Aconteceu que um dos convidados se lançou sobre a mesa, açambarcou os pratos dos outros, comeu e bebeu a ponto de se levantar da mesa a trocar o passo e a vomitar para um canto. Parece-te este um homem sensato e moderado?

- De maneira nenhuma.

- E um outro que se sentasse à mesa, comesse apenas um prato e se levantasse satisfeito, caminhando ligeiro e direito para o ginásio, não te pareceria mais temperante e sensato?

-Sim.

- Então está tudo dito. Ou precisas que te explique?

Licínio precisou de mais explicações, mas o meu leitor decerto não, que se lembra de como Sócrates se levantou pela madrugada do Banquete platónico e caminhou direito para o ginásio. O diálogo prossegue com lances duma crítica social implacável para as necessidades e sujeições da vida urbana, com os senhores tão dependentes dos escravos como os escravos dos senhores. Ocorre a certo passo a evocação, pelo cínico anónimo, da grande figura tutelar do cinicismo – Héracles – e do “discípulo” deste, Teseu…

- Crês tu que Héracles, o mais forte dos mortais, esse divino homem que mereceu ser levantado ao nível dos deuses, foi um infeliz e obrigado a errar nu, só com uma pele de leão a cobrir-lhe o corpo, sem mais nenhuma das coisas que julgas tão necessárias? Pois estava bem longe de ser infeliz, esse que livrava os outros do mal; e longe de ser pobre, quem dominava terra e mar! Onde quer que o levasse a sua coragem tudo a si subjugava, sem encontrar igual, muito menos um superior, enquanto viveu entre os mortais. Crês tu que lhe faltariam roupas e calçado e que seria por isso que ele andava assim? Suposição absurda. Pelo contrário, era temperante e paciente; queria era superar-se a si, e não enterrar-se na moleza das comodidades. Teseu, discípulo de Héracles, rei dos Atenienses e filho de Posídon, segundo se diz, não foi também o mais valente herói do seu tempo? Todavia, também ele andava descalço e nu, deixando crescer livremente cabelos e barba, como os antigos. Nenhum teria deixado que lhos cortassem, como o não deixaria um leão.

Mas além da despreocupada preocupação com cabelos e barbas, o mestre interlocutor de Licínio diz-lhe que gostaria de ter por calçado os cascos do centauro Quíron… E prossegue:

- Pudera eu, assim como os meus amigos, não precisar jamais de oiro ou dinheiro. Todos os males dos homens não provêem senão da cupidez de riquezas – dissensões, guerras, burlas assassinatos não têm outra origem que a paixão de querer mais. Longe de mim essa loucura! Longe de mim essa fúria de possuir! Ao contrário, pudera eu ver diminuir os meus bens sem desgostos…

Parece que só lhe faltaria despojar-se do manto remendado. E então ficaria nu, como Teseu? Não, não como este. O nosso cão anónimo prepara-se um salto mais ambicioso. Eis o parágrafo terminal da conversa e da obra:

- Se queres conhecer bem este exterior de que troças, não tens mais do que voltar os olhos para as estátuas dos deuses. A quem é que eles te parecem mais? Aos teus concidadãos ou a mim? São eles representados cabeludos e barbados como eu, ou depilados como vós? E não aparecem sem túnica, como eu? Pois então como é que eu ousaria desprezar uma veste de que os deuses se honram?

Boa pergunta. O leitor reparou que ele falou de “os meus amigos”. Luciano de Samossata gostava de procurar e entrevistar os filósofos; parece que, especialmente entre os cínicos, se prezava de saber discriminar os cães de raça dos burlões rafeiros. Ainda havia bastantes de uns e outros, no séc. II depois de Cristo. Continuaremos a seguir-lhes no encalço, a tentar saber o que foi feito deles, onde se meteram e como desapareceram. Até um vira-lata como eu consegue farejar que há por aqui neste suculento osso mais alguma coisa que questões de barbearia.


[ Rosto da estátua de Um Cínico Desconhecido, no museu do Capitólio, Roma. ]

sexta-feira, janeiro 02, 2009

PINTAR O 8



2008 passou num ápice. E tantas efemérides que me escaparam nestes efémeros postais! Sob o signo do 8, número particularmente fasto para os nossos amigos chineses, que tanto vibraram com os seus jogos e a olímpica ejaculação de foguetões para o espaço, - quantos acontecimentos dignos de lembrança! Não o será decerto o crash bolsista e bancário, com total descrédito dos superinteligentes e hipersofisticados gestores doutorados por Harvard em esquemas de Ponzi e outros, sob a pericial e mediúnica orientação da nossa catedrática portuguesa Dona Branca. Se nesta nossa parte do mundo afundada em fundos de alto risco, não vivêssemos numa civilização senilizada para a memória de curto prazo, teríamos aprendido alguma coisa com o crash de 1998 e os quatro mil e seiscentos milhões de dólares perdidos pelo Long Term Capital Management, então endrominado com a bênção de dois eminentíssimos prémios Nobel da Economia, que ambos tinham ganhado no ano anterior… E então, como hoje, a solução encontrada pelo tesouro público americano foi exactamente a mesma…

Mas deixemos as periódicas crises do capitalismo bancário ganancioso e predador (que se sucedem desde pelo menos 1797), descaradamente acobertadas agora pelos sócios políticos delapidadores dos dinheiros públicos. Em monótona e diabólica paráfrase, isto é mais sempre o mesmo acerca do mesmo, para lembrar o título de um poderoso ensaio do grande helenista e filósofo luso-brasileiro que foi Eudoro de Sousa. A “economia” é a especular inversão simétrica da ontologia. A cada um, no seu “foro íntimo”, cabe o juízo final de decidir pelo que lhe há-de ocupar mais o coração e “levar mais a peito”: se vale mais preocupar-se com a alimentação da efémera combustão a que biologicamente chamamos “vida”; ou se, para além da ração, o racional tem desde já aqui razões de mais e maior vida a convidá-lo para além do animal sequioso e esfomeado…

Por isso quero antes cingir-me aos nossos portugueses (que em nossa casa sempre fomos e continuamos tão deficitários e mal sucedidos em “economia”) dignos de boa memória; e, já que falei nos portentosos chineses, gostaria de ter memorado o jesuíta Tomás Pereira (falecido em 1708), missionário na China, que por mais de três décadas foi dos raríssimos humanos a privar com o imperador, que nem por ser “celeste” deixou de querer ter aulas de aritmética, álgebra e música com o nosso padre; a este se deve, aliás, a construção de um monumental carrilhão em Pequim e a publicação chinesa do primeiro tratado sobre música europeia; mas também foi diplomata ao serviço da política imperial (sem descurar os interesses portugueses), erudito no budismo e perito em relojoaria e calendários: foi mesmo nomeado pelo amigo imperador para o cargo de “Administrador do Calendário”. Eu é que por aqui me atrasei nas homenagens que lhe são devidas.

Mas, muito e muitos mais!

Tinha de lembrar Vitorino Nemésio (pois que é para mim uma das cinco quinas da poesia portuguesa do séc. XX), mas não esqueço Jorge de Sena, que também se distanciou de nós no mesmo 1978. Outro poeta, Hamilton de Araújo, falecido aos 20 de idade nesse ano de 1888 tão auspicioso para o Encoberto em Pessoa (como vimos, deixando por ver o homicídio do seu presidente-rei Sidónio Pais, em Dezembro de 1918); esse mesmo finissecular 88 em que outro jovem, com 25 anos, António Fogaça, só teve tempo de publicar os seus Versos da Mocidade… e morrer. Jovem de 21 anos de idade tinha, quando partiu em 1918, o músico António de Lima Fragoso que, no juízo autorizado de Luís de Freitas Branco, podia ter sido "o maior compositor português de todos os tempos"... Também desejara ter lembrado as duas cartas do sr. Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes – de Julho de 1958 a Salazar, e a menos famosa mas não menos importante, de Julho de 68, endereçada ao sr. cardeal patriarca de Lisboa -, tão cruciais para o entendimento das relações Estado-Igreja no nosso século XX português. Mas talvez ainda haja tempo para mim, neste entrado ano em que passam 50 sobre a partida para o exílio de D. António e 40 sobre o seu regresso à cadeira episcopal do Porto, um ano após o sr. reitor Salazar ter caído da sua cadeira política. Esse mesmo 1958 em que falecia o notável filósofo e historiador da cultura que foi o figueirense Joaquim de Carvalho (um mestre de Vitorino Nemésio saudado e reconhecido), cujo filho, o advogado e estimável escritor Joaquim de Montezuma de Carvalho nos deixou em Março de 2008, com 80 anos de idade.

E ainda outros, tantos outros. Desde a saída no transacto 2008 da Nova Águia, novíssimo ensaio de reatar, em âmbito ainda mais ostensivamente lusófono, com a Nova Renascença da década de 80 do séc. XX, e com os novos fundamentos que a esse século queria pôr a Renascença Portuguesa (que Teixeira de Pascoaes desejara por si se tivesse chamado “Renascença Lusitana”)… Até ao ano 1128 da batalha de S. Mamede (Guimarães), após a qual vitoriosa o nosso Afonso Henriques, com a bênção de Braga, começa a governar efectivamente o Condado Portucalense… Até 1058, quando é reconquistada definitivamente a minha amabilíssima Viseu… Até 868, quando da incorporação do Porto na resistência goda asturiana ( e por aqui viríamos às folclóricas comemorações do acto em 1968, satirizadas numa das citadas cartas de D. António)…

O tempo contado é apenas um pretexto para contar. Para mim, não há dias vencidos num arquivo morto. E o meu fiel Borda d’Água deixa-me antever uma provida colheita de efemérides para este 2009.

Não falo ao leitor em bom ano “novo”, porque novidade nova mesmo será a do Oitavo Diadies octavus aeternus, qui Christus resurrectione sacratus est . O que lhe desejo é que passe bem o tempo; e bem será se o tempo o não deixar passado a si, feito num oito, por certo burlão Caricaturador que gosta de pintar o sete…

E que nos reencontremos aqui no próximo 8 (deste mês).




[ Sobre a minha, uma colagem de Kevin Cherry. ]