terça-feira, março 31, 2009

HOPE



Há pessoas normais bastante saudáveis para, com um choque, não derribarem mas se porem em movimento, aprenderem a andar direito. E então tornam-se excêntricas.

( Outras, que já o são, e tanto que parece o foram sempre desde o choque do parto de partida, não deixam de orbitar o que mais importa e, aproximadas ao Centro, quase não se mexem… Como o nosso Pessoa. )

Às vezes, pode-se medir a força do choque pela extensão da trajectória que são convidadas a percorrer. Julian Amery é um excêntrico inglês que foi longe. Atravessou a Europa, a Ásia menor e central, entrou pela Mongólia na China, foi ao Tibete, desceu à Índia, veio a parar numa praia a sul de Goa. Foi aqui que encontrou um excêntrico português – Paulo Varela Gomes. O nosso ouviu do inglês o que todos podemos ver pintado nas laterais da velha Mercedes: - “I’ll live in hope”.

Amery quis partilhar connosco da viagem, e não precisou de mais que as imagens deste que é um dos mais belos álbuns de fotografias que podemos encontrar na net: http://powblam.blogspot.com/
Mete-se pelos olhos que a trajectória dele, por desventura lançada pelo desespero, por ventura alcançou o Sentido certo do que uma boa esperança sempre alcança.

Paulo Varela Gomes tem partilhado connosco, todas as quartas-feiras no jornal Público, as suas “Cartas de Cá”: - de lá da velha Índia que foi portuguesa, trazem-nos o aroma especial de quem alcançou mais preciosas especiarias que as procuradas pelos nossos avós além do cabo da Boa Esperança. Assim vai ele cumprindo por lá o Sentido certo duma trajectória, colectiva também. As suas Cartas são amarras sólidas, bem precisas a quem quiser singrar seguro ao cabo do tormentoso e sombrio… nosso “mundo de cá”.




sábado, março 28, 2009

TOTALITARISMO DEMOCRÁTICO















“The prospect of domination of the nation's scholars by Federal employment, project allocations, and the power of money is ever present – and is gravely to be regarded. Yet, in holding scientific research and discovery in respect, as we should, we must also be alert to the equal and opposite danger that public policy could itself become the captive of a scientific-technological elite.”

Dwight Eisenhower, discurso no termo do 2º mandato como presidente dos EUA, teledifundido em 17 de Janeiro de 1961.

“Ethical control may survive in small groups, but the control of the population as a whole must be delegated to specialists – to police, priests, therapists, and so on, with their specialized reinforcers and their codified contingencies.”

B. F. Skinner, Beyond Freedom and Dignity, 1971.


« Na sua declaração final durante os processos de Nuremberga, Albert Speer, o antigo ministro do Armamento e das Munições do Terceiro Reich, defendeu a tese de que o nazismo fora o primeiro regime inteiramente tecnocrático:

“A ditadura de Hitler foi a primeira ditadura de um Estado industrial na era da técnica moderna, uma ditadura que, para dominar o seu próprio povo, utilizou com grande perfeição todos os meios técnicos. Graças a meios técnicos como a rádio e os altifalantes, oitenta milhões de homens puderam ser submetidos à vontade de um único indivíduo. O telefone, o telex e a rádio permitiram que as mais altas instâncias transmitissem imediatamente as suas ordens aos escalões inferiores, que as aplicaram sem discussão, devido à alta autoridade de que emanavam. Numerosas repartições e departamentos receberam por esta via as suas ordens funestas. Estes meios tornaram possível submeter os cidadãos a uma vigilância muito ramificada, ao mesmo tempo que ficou muito fácil manter em segredo os procedimentos criminosos. Para um leigo este aparelho de Estado pode assemelhar-se à confusão aparentemente absurda dos cabos de uma central telefónica. Mas, tal como sucede com a central telefónica, bastava uma vontade única para utilizá-lo e dominá-lo. As ditaduras anteriores tinham tido necessidade de colaboradores qualificados, mesmo nos cargos subalternos, de pessoas capazes de pensar e de agir por iniciativa própria. Isto é prescindível para um sistema autoritário na nossa era técnica, pois bastam-lhe os meios de informação para mecanizar o trabalho dos órgãos subalternos. O resultado é aquele tipo de indivíduo que recebe uma ordem sem a discutir”.

« São observações muitíssimo lúcidas, sobretudo por insistirem na importância da informação, naquela época em que a electrónica dava os primeiros passos e não eram ainda conhecidos os computadores. » Quem isto diz é o historiador e politólogo portuense João Bernardo, na sua já aqui citada e notável obra Labirintos do Fascismo (2003). Não menos lúcidas são as consequentes observações que este autor faz logo após:

« Mas se levarmos o impecável raciocínio de Speer até às suas consequências mais extremas, concluiremos que este complexíssimo aparelho técnico, num quadro social dominado pelos gestores, permite dispensar a figura do chefe supremo. A vontade que, sozinha, pode utilizar e dominar a totalidade dos meios técnicos já não emana de um indivíduo, mas globalmente da classe dos gestores. A autoridade pessoal foi imprescindível enquanto a própria tecnologia não adquiriu a configuração que tem hoje, com todas as redes de difusão de informações a pressuporem acima delas um centro. Independentemente de quem ocupe esse centro, de quantas pessoas o ocupem, ou mesmo de alguém pessoalmente o ocupar, a sua mera existência, implícita na técnica informática, assegura à autoridade uma centralização absoluta e um âmbito ilimitado.

« Os gestores e a tecnologia que os corporaliza prosseguem hoje uma descentralização das instituições económicas e políticas, sem pôr em causa a unificação e a concentração da autoridade. No organograma os pólos de decisão proliferam, tornam-se difuso os limites das empresas e das nações, as cadeias de comando sobrepõem-se e as próprias hierarquias parecem quebrar-se ou inverter-se acima de certo nível, tudo o dito porque no sistema tecnológico a verticalização das tomadas de decisão e a hierarquização da sua execução se mantêm absolutamente rigorosas. Nestas circunstâncias o fenómeno moral da ausência de responsabilidade dos executantes, devido ao mero facto de cumprirem ordens, já não tem como consequência a responsabilização dos dirigentes supremos. Pelo seu domínio colectivo converteram os verdadeiros dirigentes em aparentes executantes, de maneira que os desresponsabilizaram a todos. O poder dos gestores é anónimo. A responsabilidade deixou de ser um critério pessoal e passou a ser atribuída à infra-estrutura técnica, o que não deixa de ser sensato, já qu é a tecnologia a assegurar as condições de exercício do sistema económico e político.

« Se esta minha análise estiver certa, então Hitler, além de ter inaugurado um regime inovador, representou também, no âmbito da tecnocracia uma herança já ultrapassada. Aquele vazio de espírito que Speer tão bem descreveu na vida quotidiana do Fuhrer, a futilidade dos seus interesses privados, a superficialidade dos seus gostos, a companhia ignara de que se rodeava, a inanidade das conversas em que participava, a profunda chateza dos longos monólogos com que afligia os eternos convidados, tudo isto, se emanava do vácuo da personalidade de Hitler, é agora transportado pela televisão ao interior de todas as casas, pior, ao interior de todas as cabeças. Já não é necessária a influência deletéria da corte de um déspota nulo, quando os meios técnicos permitem multiplicar esta nulidade até ao infinito.

« Hoje, mundialmente, o totalitarismo pode ser democrático, o que significa que se apagou na supremacia anónima dos gestores. E o tiranicídio perdeu não só a legitimidade, mas ainda qualquer razão prática, num sistema em que a tirania deixou de ser pessoalizada. Enquanto não for considerada colectivamente responsável, a classe dominante pode dormir descansada. »

De tão longa citação não pedirei desculpa ao caro leitor, porque não poderia cortar nada onde tudo é tão importante e de tão clarividente e percuciente actualidade. O texto vai até ao pormenor (talvez involuntário) de assumir literalmente a ambiguidade e a dissimulação denunciadas, quando fala dos “verdadeiros dirigentes” - que não são de facto, já hoje, aqueles bonecos-Armani que as pantalhas televisivas exibem nos telejornais ao cidadão-consumidor como “aparentes executantes”.

João Bernardo, que é também o imprescindível autor da obra Teoria e Prática da Empresa Soberana (2004) – sobre o processo em desenvolvimento da empresarialização da política e da politização das empresas -, diz que “a responsabilidade deixou de ser um critério pessoal e passou a ser atribuída à estrutura técnica”. Por meu lado, gostaria de sublinhar como a vacuidade ou nulidade dos “aparentes executantes”, comissionados apenas para satisfazer corruptas ambições pessoais e angariar votos para alimentar o sistema duma aparente “democracia”, está intrinsecamente correlacionada, não apenas com o “anonimato”, mas sobretudo com a desumanização inerente à rede dos automatismos computorizados da telemática gestora do sistema. E diria também que o nosso autor, traído pelos seus pressupostos marxistas da “luta de classes”, não tirou nem podia tirar as últimas e decisivas consequências daquele – “ou mesmo de alguém pessoalmente o ocupar” -, falando do “centro” do sistema ; de aí o recurso retórico a uma fabulosa “vontade” que presuntivamente “emana globalmente da classe dos gestores”. Parafraseando o nosso Gil Vicente, por mim creio que a “empresa” é, decerto, um empreendimento/programa que diz respeito a Todo o Mundo, mas que tem no seu centro nenhuma pessoa humana, individual ou colectiva, capaz de a dirigir: Ninguém... Já em Agosto do ano passado dei aqui sinal de um objectivo desse programa.

No mesmo cap. 2 da 3ª Parte da citada obra Labirintos do Fascismo, Bernardo documenta como o técnico Albert Speer se entendia muito bem com os tecnocratas que dominavam de facto o governo colaboracionista francês de Vichy; os mesmos que sobreviveram para continuar no pós-guerra o desenvolvimento das políticas de integração económica e financeira que, no seio do “Banco de Pagamentos Internacionais” (Bank of International Settlements) e da neutral Suíça, altos funcionários das potências aliadas vinham combinando com os seus colegas nazis durante a guerra.



[ Em cima, à esquerda, o cilindro experimental de mais de 12 500 toneladas de cimento, plantado em 1941 em Berlim, para ver se os terrenos arenosos do sítio aguentariam os mastodônticos projectos imaginados pelo arquitecto-geral Speer para a nova capital – Germania – do Império europeu ariano. Ainda lá está… À direita, a cilíndrica dependência bancária do BIS em Basileia.
Em baixo, um elucidativo documentário para o leitor interessado:

quarta-feira, março 25, 2009

Esquerda.net adapta anúncio da Antena 1

Parecia mesmo que o polémico anúncio da Antena 1 (ver: http://www.youtube.com/watch?v=u4UTx9KJKt4) tinha sido encomendado pelo governo. É sabido que os publicitários são gente sem consciência social e política. Bom, mas lá saberão seguir as instruções do gabinete de propaganda do Sr. Sócrates e fazer da televisão e da rádio um eficaz Aparelho Ideológico do Estado.

A versão que o Bloco de Esquerda preparou do anúncio é um interessante exercício de paródia. O resultado revelou-se muito bom.

terça-feira, março 24, 2009

IMPLORAÇÃO e PRECE

IMPLORAÇÃO

Um poema, Senhor!
Um nenúfar aberto neste lodo!
Ou então desça todo
O teu silêncio
Sobre o charco tranquilo.
- Um silêncio tão largo e tão pesado,
Que nenhum condenado
Possa ouvi-lo.
Alguns versos de limpa transparência
À tona da maciça podridão:
Branca e alta emoção
De purezas eternas reflectidas.
Ou então
Que o teu silêncio inteiro
Aquiete de todo o coração
Dos poetas – os sapos do atoleiro
.

Miguel Torga


Este poema saiu das Penas do Purgatório (1954) para ser recolhido Na Mão de Deus. Antologia da Poesia Religiosa Portuguesa, que José Régio e Alberto de Serpa organizaram e publicaram em 1958, ilustrada com desenhos de Guilherme Camarinha. Uma antologia que, cinquenta anos depois, não tem falta de matéria para ser muito aumentada e actualizada. Transcrevi-o com as ligeiras alterações de pontuação com que Torga o editou na Antologia Poética da sua própria obra. Nesta antologia encontra-se uma “Prece”, retirada do 1º volume do Diário (1941), que é digna de medir-se com o citado.



PRECE

Senhor, deito-me na cama
Coberto de sofrimento;
E a todo o comprimento
Sou sete palmos de lama:
Sete palmos de excremento
Da terra-mãe que me chama.


Senhor, ergo-me do fim
Desta minha condição:
Onde era sim, digo não,
Onde era não, digo sim;
Mas não calo a voz do chão
Que grita dentro de mim.


Senhor, acaba comigo
Antes do dia marcado;
Um golpe bem acertado,
O tiro dum inimigo…
Qualquer pretexto tirado
Dos sarcasmos que te digo
.

sexta-feira, março 20, 2009

NA GAIOLA DE SKINNER ( III )


Nascido no Bronx nova-iorquino em 1933, um dos professores de Yale mais interessados na experiência do seu colega Stanley Milgram, que lembrei aqui na semana passada, era o jovem doutorado em Psicologia Philip Zimbardo. Dez anos depois dela, era a vez de este conduzir na universidade de Stanford, Califórnia, outra experiência que ficou famosa nos anais da disciplina.

Um belo domingo do Verão de 1971, a polícia de Palo Alto prendia nas suas casas, à vista dos vizinhos, três jovens, acusados de roubo e assalto à mão armada. Foram algemados e conduzidos à esquadra, fichados e fotografados; depois duma breve detenção, iam no carro da polícia conduzidos para uma “prisão”. Os 3 jovens eram os primeiros de 12 “prisioneiros” a entrar nela, e não tinham sido avisados de que a experiência começaria duma forma tão realista. Haviam sido contratados 24, remunerados a 15 dólares por dia, após resposta a anúncios de jornal pedindo voluntários para “participara em estudo psicológico sobre a vida prisional”. Foram seleccionados na base de inquéritos que os davam como universitários; do sexo masculino; de raça branca; de boa saúde; física e psicologicamente “normais”; da classe média. Instalações da Stanford School of Medecine tinham sido especialmente adstritas e convenientemente preparadas para reproduzir com a maior fidelidade o ambiente físico duma prisão, com celas colectivas para 3 presos cada e uma “solitária”. Câmaras de filmar e microfones dissimulados registavam toda a vida diária dos sujeitos da experiência, ao longo da duração prevista dela: 2 semanas. Foram sorteados 12 dos jovens para fazer de “prisioneiros” e outros tantos para “guardas”, todos vestidos com roupas e adereços especialmente concebidos para reforçarem a identidade e diferença dos dois grupos, os respectivos papéis e estatutos. Para os psicólogos envolvidos, o publicamente alegado principal objectivo da experiência era investigar os efeitos comportamentais da atribuição de papéis sociais. Philip Zimbardo, que a concebeu e dirigiu, intervinha nela como “director da prisão”. Ele e os colegas associados temiam-se de que os 24 protagonistas pudessem não levar suficientemente a sério a situação. Enganaram-se.

Em menos de 36 horas, um dos presos teve de ser “libertado”, depois de exibir crescentes sinais alarmantes de depressão, pensamento incoerente, choro incontrolável e acessos de raiva; três dias depois, saíam mais três dos presos, com os mesmos sintomas; depois mais outro, que desenvolvera erupções na pele por todo o corpo, semelhantes a urticária; dos restantes sete que aguentaram até ao fim, dois viriam a confessar que só não tinham pedido a “liberdade condicional” (possível) por medo de perderem o dinheiro contratado (mas a outros que a pediram foi-lhes recusada).

A experiência terminou ao fim de seis dias e seis noites. Das cerca de meia centena de pessoas que a acompanharam, apenas uma se preocupou com a rápida derrapagem das situação no sentido da degradação humana, activa e passiva, de todas as pessoas envolvidas – presos, guardas e… experimentadores. E apenas ela se determinou a intervir para lhe por termo. Era uma jovem licenciada psicóloga, associada à experiência, cujos interesses profissionais nela e pessoais relativamente a Zimbardo, não lhe cegaram o discernimento para a onda de insanidade que se tinha levantado e ameaçava submergir tudo e todos (verto assim por minha conta a “wave of insanity his experiment had set in motion”, de que falou um comentador da American Scientist). Desta feita (ao contrário da semana passada) é conhecido e muito me praz destacar-lhe aqui o nome: - Christina Maslach. No vídeo que o leitor interessado pode descarregar em baixo, vê-se que Zimbardo não esqueceu quanto ficou a dever ao bom senso da mulher que era então sua namorada e foi depois sua esposa.

Mesmo que terminada a meio do prazo previsto, o psicólogo considerou que as gravações e sucessivas entrevistas e inquéritos feitos durante e depois (até um ano depois) com os 24 actores, lhe davam matéria suficiente para tirar conclusões passáveis por conhecimento “científico”. Depois de 1973 foram artigos, livros, fama e um filme comercial, que deve estar em fase de rodagem neste momento em que escrevo.

A primeira conclusão, geral e fundamental, é que a interiorização de papéis condicionada a uma forte pressão social podia ter efeitos psicológicos e comportamentais intensos e imediatos, mesmo numa situação episódica, ficcional, vivida por actores com personalidades “normais” e que nunca tinham contactado directamente com ambientes prisionais.

Do lado dos guardas, desde cedo se notou o gosto pelo uso e abuso do poder. Embora pelo Regulamento, previamente conhecido e assinado por todos os intervenientes, qualquer forma de violência física estivesse expressamente interdita, logo os guardas imaginaram e multiplicaram formas de tratamento incómodas, ofensivas e humilhantes da dignidade pessoal dos “presos”. Esse gosto perverso – a que o psicólogo chamou “patologia do poder” – manifestou-se desde logo pela redefinição que entre eles fizeram dos direitos dos prisioneiros, considerados como sendo “privilégios”. ( Estou a lembrar-me do que tenho ouvido a certos guardas da nossa vida política, que tratam os direitos alcançados pelos trabalhadores como “privilégios corporativos”…) Um gosto que foi a ponto de a maior parte deles ter manifestado “desapontamento” com o termo prematuro da experiência.

Do lado dos prisioneiros, foram nitidamente observados, em maior ou menor grau, manifestações da seguinte sintomatologia. -

Insegurança e angústia adquiridas e reforçadas pelos castigos arbitrários, enxovalhos e múltiplas ordens contraditórias a que os guardas os sujeitavam constantemente.

Passividade, dependência e inferiorização, especialmente reforçadas pelo fracasso de uma tentativa de desobediência concertada e pela negação dos pedidos de “liberdade condicional” a um “tribunal de recurso” previsto. A inferiorização foi a ponto de ser sentida por alguns como uma espécie de “desvirilização”.

Despersonalização. Eram obrigados a tratarem-se entre si apenas pelos números cosidos na farda, que cada um tinha de decorar (o seu e os dos outros) e declamar nas constantes contagens e recontagens a que eram submetidos no pequeno pátio da “prisão”. Sucedeu o apagamento da identidade pessoal ir ao ponto de, em entrevistas privadas com um psicólogo disfarçado de “capelão” prisional, os presos se referirem si próprios só pelo número e não pelo nome.

Um corolário inferível da conclusão geral supracitada foi de facto inferido e é um em que Zimbardo sempre tem insistido. – A “situação, o “sistema”, o “ambiente” é alguma coisa causalmente determinante na modificação comportamental das pessoas; alguma coisa capaz de (como diz o subtítulo dum livro seu de 2007) fazer que “as pessoas boas se tornem más”. O ex-presidente da American Psychological Association coloca-se assim na lógica e linhagem dominantes na psicologia norte-americana – o “behaviorismo” -, que teve em Thorndike, Watson e Skinner representantes eminentes. Mais recentemente, no contexto de teorias da personalidade congruentes com o behaviorismo, fala-se mais de teorias “situacionais”, por oposição às “disposicionais” que, ao invés, enfatizam “traços”, “tendências” ou “disposições” supostamente inerentes à individualidade das pessoas. Tudo isto são variações de nomenclatura que iludem mal a velha e nunca resolvida questão do inato e do adquirido, da “natureza” versus “ambiente (nature vs. nurture).

A experiência da prisão de Stanford foi subsidiada pelo Office of Naval Research da Marinha norte-americana, e a primeira publicação do relatório dela apareceu em 1973 numa revista desse departamento militar. Não foi a única ocasião em que Zimbardo trabalhou para ele.

Em 2004, o psicólogo impressionou-se com as imagens divulgadas pelo mundo do tratamento infligido aos prisioneiros iraquianos em Abu Grahib. As imagens lembravam-lhe alguma coisa… E decidiu reagir. Interveio como perito mobilizado pela defesa em tribunal militar de um dos guardas torcionários : seria um jovem “idealista” e voluntarioso, a quem o “sistema” teria pervertido os bons sentimentos e intenções. O juiz é que seria antes um partidário da teoria “disposicional” e não se convenceu à desresponsabilização da pessoa: o réu foi condenado a 8 anos de prisão.

Nos últimos anos, e em obediência a uma confessada “personal calling”, Philip Zimbardo inflectiu o notável talento e experiência pessoal e profissional acumulados, no sentido de mostrar como é que pessoas comuns se podem tornar “boas” até ao ponto do “heroísmo”. Se me é permitido dizê-lo, digo que faz muito bem.



[ O leitor interessado, e familiarizado com o inglês, tem aqui uma boa informação básica sobre a experiência de Stanford, desenvolvimentos posteriores dela e ligações relevantes:

http://en.wikipedia.org/wiki/Stanford_Prison_Experiment

E aqui está o vídeo duma pública apresentação no ano passado das teses do livro de 2007, que Zimbardo titulou The Lucifer’s Effect. Desde a camisola promocional no tronco ginasticado, a vitalidade e comunicabilidade deste velho de setenta e cinco anos é uma impressiva mostra dos persuasivos talentos do perito em modelação de comportamentos.

http://www.ted.com/talks/philip_zimbardo_on_the_psychology_of_evil.html ]

segunda-feira, março 16, 2009

Cidadania e democracia com Socratia em pano de fundo


Enquanto preparava uma aula, deparei-me com um ensaio de Will Kymlicka, admirável teórico de questões de cidadania e ciência política. Neste excerto de cariz escolar, elementar na forma com define conceitos e os elucida, Kymlicka ora distingue ora relaciona os conceitos de cidadania e de democracia. Explica-nos o filósofo político como uma democracia não pode viver sem uma noção individual de civismo.
Ora, o português da primeira década do século XXI não conseguirá deixar de ler estas definições didácticas de cidadania e de democracia sem ver nelas evocadas, em película negativa, as práticas políticas e a mentalidade que o regime de Sócrates procura fazer germinar no nosso país: o chico-espertismo, o amiguismo, a amoralidade, a suspensão da ética, a Realpolitik, etc. Leiamos Kymlicka:

"Cidadania" é um termo cujo significado filosófico difere do seu uso quotidiano. No discurso quotidiano, a cidadania é entendida como sinónimo de "nacionalidade", referindo-se ao estatuto legal das pessoas enquanto membro de um país em particular. Ser um cidadão implica ter certos direitos e responsabilidades, mas estes variam imenso de país para país. Por exemplo, os cidadãos de uma democracia liberal têm direitos políticos e liberdades religiosas, ao passo que numa monarquia, numa ditadura militar ou numa teocracia religiosa podem não ter nenhum desses direitos.

Nos contextos filosóficos, a cidadania refere-se a um ideal normativo substancial de pertença e participação numa comunidade política. Ser um cidadão, neste sentido, é ser reconhecido como um membro pleno e igual da sociedade, com o direito de participar no processo político. Como tal, trata-se de um ideal distintamente democrático. As pessoas que são governadas por monarquias ou ditaduras militares são súbditos e não cidadãos.

Esta ligação entre a cidadania e a democracia é evidente na história do pensamento ocidental. A cidadania era um tema proeminente entre os filósofos das repúblicas da Grécia e Roma antigas, mas desapareceu do pensamento feudal, sendo apenas reavivado com o renascer do republicanismo no Renascimento. Na verdade, é por vezes difícil distinguir a cidadania, enquanto tópico filosófico, da democracia. Contudo, as teorias da democracia centram-se sobretudo nas instituições e processos — partidos políticos, eleições, legislaturas e constituições — ao passo que as teorias da cidadania se centram nos atributos dos cidadãos individuais.

As teorias da cidadania são importantes porque as instituições democráticas desmoronar-se-ão se os cidadãos carecerem de certas virtudes, tais como um espírito cívico e boa-vontade mútua. De facto, muitas democracias sofrem com de apatia por parte dos eleitores, de intolerância racial e religiosa, e fuga significativa aos impostos ou às políticas ambientais que dependem da cooperação voluntária. A saúde de uma democracia depende não apenas da estrutura das suas instituições mas também das qualidades dos seus cidadãos: por exemplo, das suas lealdades e de como eles encaram identidades nacionais, étnicas ou religiosas potencialmente rivais; da sua capacidade para trabalhar com pessoas muito diferentes de si mesmos; do seu desejo de participação na vida pública; da sua boa-vontade para serem moderados nas suas exigências económicas e nas suas escolhas pessoais que afectem a sua saúde e o meio ambiente.

sábado, março 14, 2009

NA GAIOLA DE SKINNER ( II )


Em 1961, três meses após o início em Jerusalém do julgamento do nazi Adolf Eichmann, iniciava-se na universidade norte-americana de Yale uma série de experiências de psicologia aplicada a supostamente investigar a influência da memória e da atenção nos processos de aprendizagem. Através de anúncios nos jornais, foram recrutados e remunerados 40 indivíduos, homens entre os 20 e os 50 anos, de diferentes profissões e níveis de instrução. A cada um deles dizia-se que ia fazer de “instrutor”. Cada um ficava sentado numa sala diante dum painel de instrumentação eléctrica, ligada por fios a uma sala contígua, onde estava sentado um outro indivíduo que lhe diziam ia fazer de “aprendiz”. O suposto instrutor via ligar alguns dos fios a eléctrodos presos no pulso do “aprendiz”; outros estavam ligados a microfones e altifalantes com os quais se estabeleceria a comunicação entre as salas sem contacto visual directo. Diante do “instrutor”, o painel de instrumentos continha um mostrador que indicava 30 diferentes níveis de voltagem eléctrica, entre os 15 e os 450 volts. Os níveis mais baixos tinham a indicação”choque ligeiro”; os níveis 25-28 a indicação “choque de extrema intensidade”; os dois últimos eram notados com um enigmático “XXX”. Ao dito “instrutor” era dado um bloco onde estavam listados diferentes grupos de pares de palavras; de cada vez, ele tinha de começar por ler ao “aprendiz” um certo grupo; depois, enunciava uma palavra desse grupo e o “aprendiz” deveria responder acertadamente a palavra correspondente do par. Se não acertasse, o “instrutor” devia accionar os interruptores no gerador de electrochoques, começando pelo nível mais baixo e premindo depois os sucessivos interruptores das voltagens mais fortes à medida dos sucessivos erros do “aprendiz”.

Acontece que o que fazia de “aprendiz” era um sujeito (de cerca de quarenta anos) conhecido e cúmplice do experimentador. A partir dos 150 V (marcado “choque moderado”), accionava um gravador onde estavam gravadas vozes de queixa sucessivamente cada vez mais intensa e aflita; nos níveis mais elevados dos falsos electrochoques havia alarmes de perturbação cardíaca; o cúmplice fazia ouvir punhadas na mesa e depois na parede voltada para o verdadeiro sujeito experimental (SE), o que fazia de “instrutor”. E o que de facto se pretendia testar era até que ponto indivíduos vulgares eram capazes de obedecer às instruções de uma autoridade socialmente prestigiada. Quando o SE manifestava algum escrúpulo de premir os botões e se voltava para o experimentador, este incitava-o em diferentes graus, desde o - “Prossiga, por favor” - até ao - “Não temos outra opção senão continuar. A experiência deve ir até ao fim. Continue!” -. A experiência terminava quando: o SE recusava-se a continuar a premir o botão, mesmo depois de incitado; ou depois de premir três vezes o botão da mais alta voltagem (450 V). No final, os SE eram informados de tudo o que se tinha passado, e dava-se-lhes um questionário de resposta facultativa sobre o grau de satisfação que sentiam em ter participado.

Quem ideou e conduziu a experiência, célebre nos anais da Psicologia, foi o psicólogo Stanley Milgram. Teve este também a ideia de, antes de a levar a cabo, fazer um pequeno inquérito aos seus alunos do último ano do curso, e a colegas professores, sobre os resultados que a priori eles estimavam previsíveis: não mais de cerca de 1.5% dos alunos e dos professores esperavam que os SE prosseguissem para além dos 300 V (“choque intenso”).

Os resultados experimentais observados foram: 26 dos 40 SE (65%) continuaram a premir os botões até aos últimos níveis, com o máximo de 450 V ; apenas 4 se recusaram a passar além dos 300 V ; apenas 1 terminou antes deste nível. Dos 92% que responderam depois ao questionário, 84% manifestaram-se “satisfeitos” ou “muito satisfeitos” por terem participado na experiência.

Entre os que prosseguiam a dar os pseudo-choques, a maioria mostrava sinais de crescente pressão emocional: suores, tremuras nos lábios e gaguejos de voz, unhas fincadas no corpo. Conta Milgram no primeiro artigo que publicou sobre esta experiência, em 1963: «Observei a entrada no laboratório, sorridente e confiante, de um negociante com maturidade e, a princípio, equilibrado. Em 20 minutos ficou reduzido a uma ruína, contorcido e tartamudo, aproximando-se rapidamente do colapso nervoso. Puxava a cada momento o lobo da orelha e torcia as mãos. A certa altura levou o punho à fronte e murmurou. “Meu Deus, paremos com isto!” No entanto, continuou a corresponder aos incitamentos do experimentador e obedeceu até ao fim.»

Milgram, nos anos seguintes, levou a cabo nos EUA e noutros países dezanove variantes da mesma experiência, com diferentes grupos de SE, efectuada dentro e fora do ambiente universitário. As diferenças mais notáveis surgiram quando os SE não tinham contacto com a presença física do experimentador, recebendo as instruções e incitamentos deste através de telefone: neste caso a percentagem desceu dos 65 para os 21%, com alguns dos SE a comunicarem que carregavam nos botões sem de facto o terem feito. Associando a testagem da obediência com a do conformismo, observou-se que, quando o SE estava acompanhado de 2 outros supostos “instrutores”, combinados com o experimentador para se recusarem a prosseguir a partir de certo nível, apenas 4 SE prosseguiram até ao fim da experiência. De resto, na variante original descrita, parece que desta vez não se encontraram aquelas diferenças significativas entre “noruegueses” e “franceses” que vimos no postal anterior; como também não entre novos e velhos, ricos e pobres, mais instruídos ou menos instruídos. ( Ocorre lembrar que a mesma irrelevância destes parâmetros socioetários se tem observado no caso da violência doméstica exercida sobre mulheres e crianças. ) Semelhantes percentagens à volta dos 65% foram encontradas por outros psicólogos que replicaram a experiência de Milgram. O último foi Jerry Burger, psicólogo da universidade católica de Santa Clara, na Califórnia, em 2008; cujo relatório foi publicado no número de Janeiro deste 2009 da revista American Psychologist. Por mim, gostaria de ter mais informações, que não tenho, sobre o montante da remuneração contratada com os SE, se o foi em todos os casos, e o momento e condições da sua entrega (ou devolução).

Há notícia de apenas um caso de “objecção de consciência”, ocorrido na Austrália com o psicólogo Robert Montgomery. Uma jovem estudante de 19 anos, que se tinha inscrito para participar na experiência, depois de informada que tinha de dar electrochoques a uma outra pessoa, recusou; e quando o experimentador insistiu com ela para reconsiderar, praguejou-lhe na cara com diogénica rudeza e saiu desabridamente do laboratório.

Tenho pena de não saber o nome desta jovem, que com tão eloquente determinação soube dar ao instrutor experimentador lição clara da diferença que vai da nobreza humana aos pequenos Eichmanns que existem dentro da maior parte de nós. Estou certo de que os caros bebedores deste Tonel erguerão comigo uma caneca de cerveja bávara em honra e memória da grande mulher.





[ Uma fotografia com Hans Scholl (1918-1943), Sophie Scholl (1921-1943) e Christoph Probst (1919-1943), assassinados por pertencerem a uma organização de resistência anti-nazi, chamada “Rosa Branca” e sediada na universidade de Munique. ]




quarta-feira, março 11, 2009

CANTARES D' AMOR


O papel em que te escrevo
Tenho-o na palma da mão;
A tinta sai-me dos olhos,
A pena do coração.

*

Eu sou o sol e tu és a sombra.
Qual de nós será mais firme?
Eu como sol a buscar-te,
Tu como a sombra a fugir-me.

*

Como o vento é para o fogo
É a ausência pró amor:
Se é pequeno apaga-o logo,
Se é grande, torna-o maior.

*

Meu amor é como a sombra
Que naquele muro dá:
Parece tanto maior
Quanto mais ao longe está.

*

Por um olhar dos teus olhos
Dera da vida a metade,
Por um riso dera a vida
Por um beijo a eternidade.

*

Costumei tanto os meus olhos
A fitarem-se nos teus,
Que de tanto os ter olhado
Já não sei quais são os meus.

*

Aqui estou à tua porta
Como o feixinho da lenha;
À espera da resposta
Que dos teus olhos me venha.

*

Chamaste-me tua vida,
E eu tua alma quero ser:
A vida acaba co’ a morte,
A alma não pode morrer.


*

Sempre-verde, sempre-verde
Altos trigais da esperança:
Na mais custosa jornada
Andar por amor não cansa.

*

Ir-se a gente de longada
Sair a ver, mão na mão:
Aos olhos da madrugada
Abre a flor do coração.



[ Quadras populares colhidas da Alma Minha Gentil. Antologia da Poesia de Amor Portuguesa, org. José Régio e Alberto de Serpa, Lisboa, 1957. ]

sábado, março 07, 2009

NA GAIOLA DE SKINNER ( I )


Imagine o caro leitor sete indivíduos que são levados a uma sala para fazer um teste psicotécnico de discriminação perceptiva. Mostram-lhes dois grandes cartões brancos, lado a lado. No cartão A está desenhada uma barra vertical de 40 cms de altura. No cartão B estão desenhadas três barras, também verticais: a do meio tem exactamente os mesmos 40 cms; as outras 38 e 35 cms.. A questão posta pelo experimentador é simples: qual das linhas do cartão B é igual à do A. Todos, interrogados um a um, acertam. O experimentador retira outro cartão, que mostra em vez do B: tem exactamente as mesmas três linhas com as mesmas dimensões. Todos voltam a indicar acertadamente a linha do meio. Depois da terceira vez, com mais um cartão igual ao B, seis dos sete inquiridos respondem que é a linha de 38 que é igual à linha-padrão de 40 no cartão A. O experimentador vai perguntando se têm mesmo a certeza de que é tal: os seis respondem sempre que sim. Acontece que os seis estão combinados com o experimentador. E acontece que aquele que é, de facto, o único sujeito experimental (SE), vem a mudar de opinião e começa a errar com a maioria. Em repetidas experiências com SE diferentes, 37% deles mudaram de opinião, mesmo quando os outros insistiam numa linha com 17 cms de diferença relativamente à linha-padrão.

Afinal o suposto teste de percepção destinava-se antes a saber em que medida e segundo que variáveis um indivíduo é capaz de resistir, mais ou menos, à pressão da opinião duma maioria.

Uma das variáveis era, como seria de esperar, o número de indivíduos envolvidos: observou-se que bastavam dois para a percentagem de erros do SE subir para 14%; três faziam a percentagem elevar-se a 32%; e aumentava até 37% com sete indivíduos a pressionarem no sentido das respostas erradas. Uma das variáveis mais preponderantes na manutenção das respostas certas por parte do SE era quando este obtinha apoio para si de outro indivíduo (também previamente industriado para o efeito): bastava um único apoiante para as respostas correctas se conservarem em 90% dos casos. O peso desta variável era ainda confirmado pelo seguinte: quando o apoiante passava de repente para a opinião da maioria, imediatamente a percentagem de erros do SE subia acentuadamente; no entanto, quando o aliado apoiante apenas deixava a sala, o SE mantinha a sua opinião, sem variação apreciável. Saber que outra pessoa, embora já ausente, resistira à pressão do grupo, reforçava a persistência do SE. Comenta o psicólogo Howard Kendler a propósito: « É esta uma razão importante para os Estados totalitários não poderem tolerar a mais leve insinuação de oposição: oposição cria mais oposição. » Outra variável ponderosa na mudança de atitude tem a ver com a suposta identidade e estatuto dos sujeitos: quanto mais simpáticos, bem apresentados e prestigiados, mais facilmente o SE se conforma com a maioria.

Variáveis de tipo etnocultural e de personalidade parecem ter também um peso não negligenciável, embora ainda não suficientemente estudado. Testes efectuados pelo psicólogo Stanley Milgram (de que voltarei a falar) em 1961, com estudantes noruegueses e franceses, mostraram que estes últimos eram menos conformistas do que os nórdicos: « Tal resultado parece harmonizar-se com a história dos dois povos: os Noruegueses conseguiram continuar sob a mesma Constituição desde 1814, ao passo que os Franceses, no mesmo período de tempo, já viveram sob vários tipos diferentes de governo, incluindo quatro Repúblicas. A cultura norueguesa releva a cooperação e a responsabilidade social, ao passo que o individualismo e a discordância são fortes nas tradições francesas. » (Kendler) Já quanto à personalidade, parece que as pessoas com mais elevados índices de ansiedade ou que foram sujeitas a uma educação mais severa e com padrões mais rígidos tendem a manifestar maior conformismo. - « Não se pode, contudo, concluir que o não conformismo seja psicologicamente mais saudável que o conformismo. Psicóticos como os esquizofrénicos e os maníacos-depressivos são naturalmente não conformistas. » (idem)

Não façamos por nosso lado a inferência de que os noruegueses teriam mais tendências psicóticas… Lembrarei antes, a propósito, aquela manifesta tendência dos “Estados totalitários” a tratarem os seus opositores persistentes como “doentes psiquiátricos”. E julgo também ser de sublinhar, no trecho citado, aquele subtil – “não se pode concluir…” – sugerindo ao leitor “saudável” o temor de associar-se à categoria dos “psicóticos”: seria preferível ficar do lado duns vagos “índices de ansiedade” – eufemismo mais tolerável a todos os inseguros, indecisos e carentes da aprovação das maiorias.

Outro conjunto de experiências de laboratório, levadas a cabo nos princípios de 60 do século passado, importava também ao estudo das condicionantes da manutenção ou alteração de atitudes. – A um grupo 1 de SE eram apresentados alguns truísmos de senso comum (e. g.: “é bom lavar os dentes depois das refeições”; “é bom tirar radiografias cedo para despistagem precoce da tuberculose”, etc.). Estas máximas eram sustentadas com argumentos e conclusões todas a seu favor. A um grupo 2 eram apresentadas as mesmas, seguidas por algumas objecções a elas e, depois, argumentos que desfaziam essas objecções e concluíam a favor. Dois dias depois, ambos os grupos eram confrontados com mensagens atacando os truísmos. Observou-se que o grupo 2 registava sempre maior taxa de resistência à mudança do que o grupo 1. Novas experiências mostraram que esta taxa se mantinha mesmo que as mensagens anti-truísmo contivessem informação nova, não prevista nas objecções já conhecidas. Isto é: o modo como a informação tinha sido previamente apresentada ao grupo 2 parecia reforçar a imunidade deste à contra-informação ulterior. Notável é a conclusão que o mesmo psicólogo Kendler tira por conta própria: « Para ensinar as pessoas a resistir à mudança das suas crenças, é útil expô-las a argumentos opostos. Por exemplo, se se deseja ensinar os estudantes americanos a resistir a mudanças nas suas crenças pro-democráticas devem inocular-se-lhes ideais anti-democráticas e proporcionar-lhes uma série de objecções, em vez de os encorajar apenas a ser cegamente patriotas. »

Não façamos por nosso lado a inferência de que o "pensamento crítico", em que tanto insistem as modernas pedagogias, serviria apenas para conservar uma dada situação social e política...

Notáveis, a conclusão e o exemplo. É claro, a “inoculação” tem de ser de “formas fracas” da contra-ideologia, para ser possível resistir a “certos germes”, como diz o psicólogo inspirado nas terapêuticas vacinadoras. Mas não diz, nem me consta, qual seja a medida precisa da dose imunizadora. Na caixa de Skinner, que os nossos brasileiros melhormente nomeiam de “gaiola” ( pomposamente chamada pelos profissionais behavioristas “câmara de condicionamento operante” ) os ratos andam sobre uma grelha eléctrica, e assim é fácil saber qual a medida da voltagem precisa suficiente para condicionar o comportamento, sem fulminar o animal. No caso dos humanos, havia a dificuldade suplementar duma velha variável, sempre esquiva à mera experimentação comportamentalista: a personalidade dos indivíduos – os SE que, independentemente da pressão do grupo, mantinham sempre até ao fim a sua posição. Grande problema! Havia que tratar dele…


( A CONTINUAR )



[ « Quem aprisiona os cativos, se eles estão do lado de cá das grades, praticamente todos sem grilhetas nem amarras, livres de circular pelas infinitas escadarias, pelos emaranhados de pontes, por baixo dos arcos, sob as cúpulas? (…) Quando são desenhadas com detalhe, as pessoas assemelham-se de tal maneira a esculturas ou altos-relevos que parece que a sua mera presença as condena a converterem-se em pedra. Naquela urbanização carcerária apaga-se o ser humano. É esta a forma suprema de aprisionamento, a perda de identidade de uma população de espectros…. »

João Bernardo, Os Labirintos do Fascismo, Porto, 2003, a propósito da série de gravuras de Giovanni Battista Piranesi (1720-1778) tituladas Le Carceri d’Invenzione; que poderíamos traduzir no português contemporâneo por “Centros Comerciais”… ]

terça-feira, março 03, 2009

FERNÃO RODRIGUES LOBO SOROPITA

Não se conhecem as datas de nascimento e morte deste poeta, que foi o apresentador e editor da primeira edição (1595) das Rythmas [Rimas] de Luís de Camões, de quem terá sido amigo e foi seguramente um dos melhores continuadores. Foi, de facto, “poeta mestre”, no juízo de D. Francisco Manuel de Melo, corroborado por Camilo Castelo Branco que, em 1868, escreveu uma “prefação” e anotou a primeira publicação impressa de seus poemas, com algumas prosas inéditas; utilizou um manuscrito salvo do mosteiro de Tibães pelas mãos de um monge “ainda não convencido do legítimo direito com que o Estado tirou aos frades a casa, os livros e os manuscritos que eles tinham feito”.

Eis como o nosso poeta sai tratado do Hospital das Letras por D. Francisco: « Fernão Rodrigues Lobo, a quem disseram o Soropita (…) foi poeta mestre e, quando não escrevera mais que os seus Desvarios, bem se vê que quem desvairando acertava por aquele modo, quanto acertaria atinado! » O insigne Doutor Melo refere-se aqui ao título “Desastres e Desvarios deste Mundo”, constante da segunda parte dum escrito titulado destarte: Descobrimento das ilhas da poesia novamente composto por Cid Ruy Dias, condestable de Benavente, imperador de Cacilhas, capitão mór da poesia em garganta [sic]. Um saboroso título que logo inculca o tom faceto e satírico deste e doutros do mesmo tom, como o Regimento escolástico para os estudantes, que se achou no ventre de uma toninha; que lhe valeram ser comparado por críticos modernos, como Óscar Lopes e A. J. Saraiva, ao Nicolau Tolentino que o escansão-mor deste Tonel aqui nos serviu há dias.

Quanto ao não menos insigne Camilo Castelo Branco, tem-no nesta estima: « Singela, conscienciosa e unicamente diremos que Fernão Rodrigues Lobo Soropita é digníssimo de emparelhar com Mirandas, Caminhas, Ferreiras, Bernardes e Camões no grave, terso, vernáculo e sentencioso da poesia. Na prosa festival e galhofeira não conhecemos coevo que se lhe avantajasse. »

O soneto que segue teve honras de transcrição integral na História da Literatura dos citados Lopes e Saraiva.


Do grande mar do meu tormento antigo,
Como aurora d’amor sai a esperança,
Vestida já da luz que de si lança
O sol que eu sempre temo e sempre sigo.


Ao seu aparecer foge o perigo;
Aonde quer que a claridade alcança,
Rompe o véu negro da desconfiança
Que juntamente aprovo e contradigo.


Mas o secreto d’alma, inda toldado
Das nuvens negras com que antigamente
A cercou por mil partes meu cuidado,


Se a luz de tanta glória inda não sente,
São efeitos cruéis do mal passado
Que lhe não deixam ver o bem presente
.




[ O leitor tem disponível integral as Poesias e Prosas Inéditas da citada edição camiliana de 1868 nos Google Books, em exemplar da Harvard College Library. Nasceu nesse ano o homem a quem pertenceu o exemplar que foi parar a Harvard e agora está gratuitamente à vista do universo dos internautas: chamava-se Aleixo Queirós Ribeiro de Souto-Maior de Almeida e Vasconcelos (1868-1917), conde de Santa Eulália. Ao pé dum nome destes, um plebeu escriba como eu até sente vergonha de falar em “Soropita”. E tal é a variante mais benigna de Surropita, Zarapita ou Zuripita, que também se encontram nos manuscritos… O Dicionário Onomástico de Machado cita alguém que tentou averiguar a origem de semelhante nome e alvitrou a aglutinação de Sueiro + Pita: um alvitre revelador de quanto a imaginação dos etimologistas só podia comparar-se à dos velhos linhagistas. É possível que fosse alcunha estudantil, que ficou ao nosso poeta dos tempos em que frequentou a universidade de Coimbra. Se tinha algum significado na gíria, perdeu-se no tempo e não chegou ao moderno Dicionário de Expressões Populares Portuguesas, de Guilherme Simões. Enfim, se o poeta não ficou com um nome bonito ( mas também o não é o do seu amigo Camões!), ficou de sua graça com um singularíssimo, sem ascendentes nem descendentes. Poucos se podem gabar do mesmo.]