terça-feira, julho 28, 2009

Espicolondrífico

Pelo facto das eleições estarem à porta parece-nos ser este o momento azado de elaborar algumas reflexões sobre a agenda política. Tomemos como princípio o governo e deixemos os adversários do “engenheiro Socas” para o fim da bicha. O nosso (nosso é uma força de expressão para o destrinçar do grego que, como Diógenes, procurava o que nunca se viu na política) Sócrates aparece-nos completamente luminoso e de boas cores parecendo à sua volta tudo seco e sumido, à sua direita a pobre moça das duas uma: ou se encontra com hepatite ou sofre de icterícia. A turbamulta ao seu redor é completamente inodora e asséptica, a verdadeira metáfora de todos nós, fartos destas socas com a qual o nosso primeiro nos tem, bastamente, aquecido cabeça e orelhas.
Olhemos agora a oposição. O maior partido opositor do governo clama que não baixa os preços, ou será os impostos? Ou, ainda, as calças? Ou qualquer coisa que significa que não amocham, porque quanto mais te baixas mais se te vê o dito cujo. De qualquer forma, invadiram-nos com o coelhinho da Playboy, mas tiveram a desgraçada ideia de pôr na capa a playmate mais horrorosa de que temos memória.
Ao amigo Portas, neste caso o mais novo, não basta ter razão, querem também não ter razão nenhuma, serem completamente irracionais, totalmente destituídos de sentido ao velho estilo non sense britânico. Deixe-me que lhe diga caro PP (Paulo Portas ou Partido Popular, o que vai dar ao mesmo – quando arranja um vice chamado Carlos Dias Santos?) que atinge esse desiderato sem qualquer esforço.
O bé ou mé ou lá o que é, tem como objectivos reformas para os que trabalharam e emprego para os que necessitam. Apetece perguntar: em que mundo é que vocês vivem? Reformas e empregos pedem eles num país em que quem não trabalha, desde que saiba burlar de mansinho o estado (ou seja, todos nós), é que se safa. Onde o estado não é necessário quando há lucros e imperioso quando existem prejuízos! E aquela da justiça na economia, meus caros Cândidos e Cândido Louçã mais que todos, não foi isso que o Adam Smith pretendia à partida e vejam onde estamos.
Quanto ao PC continua sempre igual a si próprio, o que se calhar é uma vantagem, e ainda mais depois do ex-ministro Pinho ter tratado com aquela subtil deferência o camarada Bernardino.

sábado, julho 25, 2009

UMA EXPERIÊNCIA VITAL ( V ) : ÊXTASE… OU “ECSTASY”?

« Será que há necessidade, e talvez a urgente necessidade, de encontrar algo como os mistérios de Elêusis para sairmos da Caverna de Platão para a luz de dia? »

Huston Smith, Cleansing the Doors of Perception

O título citado é um aceno risonho à célebre obra de Aldous Huxley – The Doors of Perception – que, em 1954, pela categoria intelectual do autor, pela vívida e vivida originalidade do seu conteúdo e pelo extraordinário impacto que teve junto dos leitores – foi a primeira a apontar com clareza para “the religious significance of entheogenic plants and chemicals”. É este o subtítulo do citado livro do professor Huston Smith, uma colectânea revista e um balanço final das pesquisas e trabalhos que durante cerca de 40 anos dedicou ao assunto. Trabalhos académicos e experimentação pessoal com os tais chamados “enteogénicos”. Segundo o autor dá a entender, terá esta começado em 1962, quando se envolveu numa experiência que ficou célebre nos anais da “psicologia da religião”. Não é esta menos digna de ser lembrada que a de Zimbardo, que já referimos aqui: se a de Stanford de certo modo significava a “banalidade do mal”, esta de Harvard poderia fazer pensar numa “banalidade do bem”. Foi com efeito no âmbito de uma tese de doutoramento orientada pelo célebre psicólogo Timothy Leary, e que viria a ser publicada com o título Drugs and Mysticism (1963), que o seu autor – Walter Pahnke – realizou a que ficaria conhecida por “experiência de Sexta-Feira Santa”. Pouco antes do demorado e solene serviço dessa solenidade, numa capela de Boston, foi administrada uma solução de psilocibina (um psicotrópico extraído dos “cogumelos sagrados” que alguns julgam estar na origem da experiência do sagrado na humanidade pré-histórica) a dez estudantes de teologia de Harvard, participantes na cerimónia; a outros dez, que serviam de grupo de controlo, foi dado um placebo (ácido nicotinoso). Os questionários respondidos pelos sujeitos, após o serviço religioso e seis meses depois, evidenciavam que todos os 10 drogados (mas nenhum dos outros) tinham experimentado sensações correspondentes às várias categorias da escala fenomenológica da “experiência mística”, proposta em 1960 no livro Mysticism and Philosophy, de William Stace. O leitor interessado e familiarizado com o inglês tem nesta ligação aqui uma revisão detalhada, com factos inéditos, da célebre experiência, bem como das impressões que 30 anos depois ela deixou em alguns dos que a viveram.

Deve-se a Stace o “princípio da indiferença causal”, que estabelece o seguinte: “Se A tem uma alegada experiência mística E1 e B tem uma E2, e se a fenomenologia da experiência reportada por A inteiramente se assemelha à reportada por B, então E1 e E2 são experiências do mesmo género, quaisquer que sejam as suas causas.” Existe hoje um vasto corpus descritivo de experiências com os “enteogénicos” e existem tecnologias de tratamento da informação que estão a pedir uma análise documental mais lata, se não mais fina e detalhada, que a levada a cabo pela srª Marghanita Laski, já aqui citada. Como vimos, a conclusão desta estudiosa era a de que existiriam diferenças conspícuas entre a experiência extática e a psicotrópica. Mas a análise de Laski referia-se apenas a sete casos (6 com mescalina e 1 com LSD). A impressão pessoal que tenho é que, hoje, tais diferenças – a nível fenomenológico, de descrição dos conteúdos apercebidos da consciência - se atenuariam ou esbateriam de todo. E vou doravante dar como facto averiguado e adquirido que podem ser e, nos casos certos, são de facto indiscerníveis. Mas isto, à luz da história que contámos da Caverna, não é nenhuma razão suficiente para concluir que é a experiência psicadélica que por si dá alguma experiência directa do sagrado, ou algum êxtase capaz de transportar para fora do antro platónico.

Para Stace, que não estudava (mas já previa) a questão das drogas, as “causas” não eram relevantes. Mas, para os que pensam que os “enteogénicos” podem provocar uma experiência do sagrado, a questão não é nada despicienda: “Do Drugs Have Religious Import?” – foi precisamente o título dum famoso artigo, de 1964, de Huston Smith, ainda hoje um dos mais citados do venerável americano The Journal of Philosophy. No ano 2000, no balanço que fazia em Cleansing the Doors of Perception o autor continuava a manter que sim, mas com qualificações e sem automatismos: « the conclusion to which the evidence seems currently to point is that it is indeed possible for chemicals to enhance the religious life, but only when they are set within the context of faith (…) and discipline. » As drogas são, como diz, uma ocasião, não uma causa, e duplamente condicionada: pelas disposições prévias dos indivíduos (condicionante psicológica) e por uma prática ritual socialmente enquadrada (condicionante sociológica). Duas condicionantes, relembremos, aparentemente verificadas na referida experiência com os estudantes de teologia de Harvard. Isto confere completamente com o que diz o autor de Ecstasy and the Dance Culture (1995), Nicholas Saunders. Conta este que se encontrou com um monge beneditino que tinha, com outros, experimentado esta droga, com efeitos positivos sobre os processos de meditação e de oração, a ponto de dizer. “ecstasy opens up a direct link between myself and God”. A mesma impressão muito favorável foi-lhe transmitida por um rabi judeu e por dois mestres do budismo zen. (Nenhuma destas fontes é identificada.) Contudo, a fenomenologia da experiência vivida por todos este religiosos era completamente diferente da vivida pelos “trancers”, “rave dancers” e “party goers on Ecstasy”, assim como a do próprio Saunders: « As I was interviewing the monks I could not help but be impressed how different was their experience of Ecstasy to my own, even though I had gone out to try to explore every aspect of the drug. They were so focused towards the divine as to appear slightly naïve, and indeed the Benedictine simply could not comprehend the mood experienced by party goers on Ecstasy. He could only see it as sacrilegious. My interviews confirmed a quality of Ecstasy that is seldom acknowledged: it enable the user to have deeper and more wholehearted experiences, but the type of experience depends on their underlying concerns. » Com a mescalina, o mesmo: Aldous Huxley traduzia as suas impressões na linguagem dos místicos e considerava ter tido um vislumbre da “visão beatífica”; ao professor Zaehner, o autor de Mysticism Sacred and Profane, deu-lhe para rir a bandeiras despregadas, mesmo quando olhava para solenes obras de arte religiosa. O mesmo com o capacete de “estimulação transcranial electromagnética” de Parsinger: aplicado a uns sujeitos, sentiram a seu lado ou por trás de si presenças de entidades invisíveis, “sobrenaturais”, ou até a “presença de Deus”; enfiado na cabeça do famoso biólogo e militante ateísta Richard Dawkins… não sentiu nada. (Mesmo eléctrico, é difícil enfiar o barrete a mister Dawkins!) E não esqueçamos nunca que tais pretensas experiências extáticas do sagrado podem ser e têm sido ocasionadas por outras e mui diversas condicionantes. Concluamos, pois : não há nenhuma razão nem necessária nem suficiente a garantir que as modificações da consciência produzidas por químicos naturais ou sintéticos e por modificações electroquímicas no cérebro são causas directamente relevantes para o efeito de uma genuína experiência do sagrado.

Implica isto que, de acordo com o princípio da indiferença causal de Stace, as causas são irrelevantes, até porque não existiriam nenhumas directas e necessitantes de tal experiência? A meu ver, não. Tais causas podem existir: devem é ser procuradas noutro lado, aliás o mais óbvio, não fosse tão incómodo aos paradigmas culturais de certos grupos. É o que veremos. E, se tais causas assim são deste jeito, o citado princípio é que deve ser abandonado, tanto mais que (mesmo sem elas) carece de razão suficiente. Com efeito, o que ele nos exige é algo como : se não somos capazes de discernir qualquer diferença entre dois gémeos verdadeiros, eles são pessoas idênticas; se não discernimos nenhuma diferença entre um robô e um humano, então são idênticos, etc. Fica assim à vista a falácia lógica do apelo ad ignorantiam deste truque de espelhismo mágico (se não discernimos nenhuma diferença entre o nosso corpo e a da imagem dele no espelho…), quando é ele próprio a ignorar que uma crença, e uma boa justificação para ela, não são condições por si suficientes para se garantir uma verdade. Ora, no caso, nem sequer a justificação é tão boa quanto poderia ser: a simples inspecção comparativa de traduções em linguagem articulada da fenomenologia de uma experiência (qual a do “sagrado”), que caracteristicamente é havida como “inefável”, ou se expressa em linguagem ininteligível (a glossolalia), por mais completa e precisa que fosse, não poderia isolar-se daqueles dois outros factores que Huston Smith reconhecia imprescindíveis: o perfil psicológico do sujeito e as disposições interiores e anteriores da sua experiência de vida; assim como as repercussões posteriores dessa experiência na existência do sujeito e na interacção deste com os outros – o “sagrado” institucionalizado nas práticas sociais do grupo a que pertence. A documentação etnográfica tem mostrado como este último factor pode ser especialmente poderoso, na quantidade e variedade de cerimónias rituais que, ainda hoje, nas mais diversas latitudes culturais, recorrem a plantas e fungos psicoativos. Sem neurotoxicidade nem ressacas! (Mas não esqueçamos que um especialista como Eliade era da opinião que, pelo menos no xamanismo siberiano, o recurso a tais substâncias era um fenómeno relativamente recente e representava uma degenerescências na qualidade das cerimónias e nas capacidades do xamã moderno. )

Claro que a sensibilidade e sinceridade dos indivíduos, juntamente com a sanção e integração sociais, não seriam razão suficiente para o amigo ateísta (e não precisaria de ser o eminente Dawkins) se convencer da genuinidade duma tal experiência do “sagrado”. E eu dar-lhe-ia toda a razão. – Ou individuais ou colectivas, poderiam não ser mais que sonhos sobre sonhos, dentro da Caverna platónica, aquecidos à fogueira dos piedosos desejos de alguns, dos supersticiosos temores de outros, ou das neuroses não tratadas de todos (como diria o dr. Freud). Lembremos, contudo, que as dimensões fenomenológica e cognitiva – ou, mais amplamente, psicossociológicas –devem ser complementadas com as dimensões existencial e ontológica. Apontaremos algumas sugestões sobre esta última. Para já, permita-se-me exprima esta convicção : o que faz as experiências psicotrópicas tão existencialmente interessantes e justifica a sua perene sedução, - é sugerirem ou simularem uma saída para fora deste mundo, ou potenciarem modalidades alternativas da consciência habitual deste mundo. Uma sedução (quase) irresistível, quando as práticas religiosas tradicionais são percepcionadas como impotentes para proporcionarem aos indivíduos a experiência do sagrado. Neste caso, a substituição é inevitável. Mas inevitabilidade não implica alguma genuína viabilidade.

Não há dúvida, - quão difícil parece sair da Caverna! E não parece que tivéssemos mais êxito com o famoso kykeon dos mistérios de Elêusis, ou não teríamos deixado perder a receita dele, como a do soma hindu, a do ahoma persa ou a do vinho da jurema negra (mimosa hostilis) nalgumas tribos do sertão nordestino brasileiro. E também não será com… o “ecstasy”.


[Os consumidores desta metilanfetamina poderão ter interesse em saber que a mais recente experimentação científica continua a corroborar a nocividade deste químico para o cérebro humano:
http://brain.oxfordjournals.org/cgi/content/abstract/131/11/2936 ]

terça-feira, julho 21, 2009

BILLIE HOLIDAY (1915-1959)

A grande sucessora de Ma Rainey e de Bessie Smith, deixou em 26 anos de carreira um inolvidável lembrança da sua originalidade e sensibilidade.

"Stange Fruit"(de 1939), em cima, documenta que tal sensibilidade não se temeu nem negou à denúncia da discriminação racial com que a sociedade norte- americana se confrontaria politicamente nos anos 50.

Em baixo, Lady Day acompanhando e sendo acompanhada pelo grande tenor Lester Young (também falecido em 59), um dos inicidores da revolução Bop. Veja-se nos primeiros 35 segundos como um rosto humano é capaz de cantar sem abrir a boca.

sexta-feira, julho 17, 2009

UMA EXPERIÊNCIA MORTAL : REVISITANDO A CAVERNA PLATÓNICA ( IV )

Não é sem fundo motivo que a platónica alegoria da Caverna (eikon, imagem, como o próprio Platão lhe chama) é um dos mais contados e recontados trechos da História da Filosofia. Aceite por isso o caro leitor que eu lá vá buscar esta variante modificada, modernizada e adaptada ao nosso assunto, a lembrar: se quaisquer substâncias psicotrópicas (ou, já agora, qualquer causa “natural”) poderiam dar alguma garantia racional suficiente para ter acontecido a experiência do sagrado na História da humanidade.


Suponha-se uma consciência humana nascida, criada e perpetuamente mantida numa sala de cinema, visionando filmes em projecção contínua, de todos os géneros que nós podemos ver nos cinemas; e que tal consciência nunca tivesse tido assim qualquer contacto com o que chamamos “mundo real”, fora do cinema, de que não seria capaz de fazer nenhuma ideia. Para tal consciência, ainda suposta superiormente inteligente, haveria pelo menos um enigma indecifrável: aquela famosa legenda que aparecia nalguns filmes: “qualquer semelhança entre esta história e a realidade é pura coincidência”. Agora, suponha-se que qualquer poderoso computador de animação gráfica lhe projectava no espaço do proscénio, diante da tela, imagens e narrativas em tudo semelhantes às do cinema, mas de qualidade e nitidez muito melhoradas e a três dimensões. Pergunto: alguma coisa de essencial se alterava na situação? E alguma coisa haveria nova capaz de elucidar o enigma das legendas que falavam em “ficção” e “realidade”? Como?... está o leitor a dizer-me que haveria sim, senhor? - Tal consciência espectadora bem que poderia dizer e pensar que tais imagens de superior qualidade seriam “reais”, e as antigas, da tela, a “ficção”… Pois de facto poderia dizê-lo e pensá-lo, mas o que nos interessa aqui é se tais pensamentos estariam com a verdade.


Suponhamos depois que, com o tempo, tal projecção mais evoluída evoluiria até ao ponto de essa imagens animadas se transformarem em seres em tudo semelhantes aos espectadores, com a única diferença de uns estarem no palco e os outros sentados na plateia; e um destes, que sente um desejozinho de apalpar certa personagem, vê acto contínuo o seu duplo no palco realizar esse desejo. E, é claro, em tempos pouco mais evoluídos, se o duplo no palco é um vivo clone com um radioprocessador implantado capaz de sintonizar à distância com o clonado na plateia, as respostas da outra personagem aos apalpões recebidos serão (com gosto ou desgosto) sentidas ao mesmo tempo na consciência do libidinoso espectador, transformado em espectador-actor. A este tempo, aonde pára a desaparecida legenda dos velhos filmes e, se alguém se lembrasse, o que poderia significar ou de que valeria o assunto “ficção” e “realidade” e suas possíveis coincidência ou diferença? No mundo desta Caverna a resposta parece ser só uma e óbvia: nada.


Embora este divertido mundo pudesse ter evoluções ainda mais curiosas e filosoficamente interessantes, temos já todas as condições para voltar ao nosso tema. Se nos velhos filmes a preto e branco aparecessem certas personagens figurando “deuses” ou “entidades sobrenaturais”, descritas como “mais belas” e mais “mais poderosas” que os humanos, e “imortais”, já está o leitor a adivinhar o que aconteceria quando vissem aquelas primorosas figuras mais nítidas e “vivas”, de formas extraordinárias, a três dimensões. Ora elas representam histórias em contínuo, pegadas umas nas outras, e essas personagens mantêm-se sempre em palco, observamos que têm um nítido ascendente sobre certas outras personagens, que aparecem e desaparecem, as quais têm uma patente atitude de deferência e submissão para com as primeiras. E há então uma consciência espectadora ao nosso lado que nos toca a consciência com a seguinte sugestão: - são aqueles que não desaparecem os “imortais”, os “deuses”, venerados e obedecidos pelos outros… O leitor ponha a sua consciência neste lugar e diga-me se não acolheria tal sugestão como inteiramente crível e fundada na mais directa “evidência”! Mas repare: a representação continuava, os tempos evoluíam, o nosso espectador continua a observar as mesmas atitudes de dominância e submissão, mas agora já não houve falar de “deuses”, mas sim de “reis” e de “súbditos”; e continuando a fita do tempo, nunca mais houve falar de “poderes sobrenaturais”, sim e muito de “poder político”… Até que, na máxima perfeição das tecnologias cavernícolas, quando cada espectador-actor realiza todas as proezas em perfeita harmonia com todos os seus desejos – sem com isso desaparecer do palco ou da plateia -, uma consciência vizinha de nós, no lugar ao lado, nos apalpa com a seguinte sugestão: - Afinal, estamos a ver que os tais “deuses”… somos nós!


Então, onde tínhamos substâncias psicotrópicas pusemos sofisticadas tecnologias de projecção de imagem, de indução de pensamentos e comportamentos. Mas, onde temos estas, nada obsta a pôr-se qualquer elemento que seja parte da arquitectura ou do mobiliário da Caverna. Vejamos brevemente um outro, que também nas últimas décadas tem sido experimentado : a caverna craniana e o mais sofisticado aparelho que se tem descoberto no mundo... - o cérebro. Desde os anos 70 que distúrbios psicológicos como a síndrome de Geschwind, com sintomas de hiper-religiosidade e conversões religiosas súbitas, têm sido associados à epilepsia do lobo temporal e, mais recentemente, há quem tenha pretendido provocar os mesmos sintomas por estimulação electromagnética da mesma área do cérebro. Já a tradição popular denominava este tipo de epilepsia como o “mal sagrado”. Mais investigação laboratorial em sujeitos com experiências de “meditação transcendental”, de “oração” ou de recordação de estados de “união mística” tem mostrado uma correlação entre tais experiências psicológicas e modificações observáveis na actividade eléctrica, química e hematológica no cérebro. E ponhamos mesmo aqui que tal “correlação” seria de facto uma relação causalmente relevante tal que: a actividade neurofisiológica seria a causa eficiente das sobrevenientes vivências pessoais dos sujeitos, subsistindo estas (em memória) também na dependência do cérebro. Relativamente ao nosso conto da Caverna, esta situação traria alguma coisa de mais ou de diferente ? – Nada. (Mas não passe sem dizer que algumas pessoas, dadas como clinicamente “mortas”, sem actividade circulatória ou eléctrica cerebral registada, e que inesperadamente recuperam as funções vitais, têm relatado experiências associáveis e associadas a experiências do sagrado.)


De tudo o que fica dito, alguns leitores poderiam concluir: - a alegoria da Caverna ilustra bem a razão ateísta de considerar que as experiências do “sagrado” não passam de sonhos, cujas causas “naturais” vamos descobrindo, controlando e manipulando, ou seja por drogas ou por estimulação electromagnética do cérebro. – O problema é que a alegoria da Caverna pode ser uma tautegoria da Caverna deste mundo nosso e ilustra bem mais: que tanto os que vêem em cena “deuses” e “poderes sobrenaturais”, como os que vêem “reis” e “poderes políticos”, como os que se julgam eles próprios “deuses” e os controladores e manipuladores… - todos eles sonham.


Agora, o leitor retorna-me que talvez não seja tanto assim, porquanto num mundo alucinogénico de gente alucinada (ou numa cósmica simulação produzida por um hipercomputador Matrix) não haveria nenhuma razão suficiente para a ideia de uma diferença entre simulacro e realidade. E eu concordo, sem deixar de fazer notar ainda que o conto sugeria o ponto duma possível erosão ou gradual extinção dessa ideia (o mesmo quanto à de uma identidade pessoal singular, única, no caso dos espectadores replicados actores). Mas, de facto, há a enigmática legenda e o seu mal resolvido enigma da não coincidência entre a “ficção” e a “realidade”. Talvez tenhamos aqui, caro leitor, uma chave para a difícil saída duma Caverna de onde (como o próprio Platão já advertira) alguns têm pouco ou nenhum desejo de sair. Teremos de a procurar melhor.



[ Entretanto o leitor achará aqui um ponderado e actualizado artigo da neurologista portuguesa Sofia Reimão sobre as pesquisas que no âmbito das neurociências têm vindo a ser feitas com relação ao nosso assunto: http://jcienciascognitivas.home.sapo.pt/09-03_reimao.html. Parece que aos srs. neurocientistas não bastam as maravilhas da fisiologia e bioquímica do cérebro, e com as suas tomografias e ressonâncias magnéticas gostavam de encontrar mais alguma coisa… ]

segunda-feira, julho 13, 2009

FORTALEZA (COM JASMIM DENTRO)


Domingo de manhã, 12 de Julho de 1942.

« São tempos temíveis, meu Deus. Esta noite, pela primeira vez, passei-a deitada no escuro de olhos abertos e a arder, e muitas imagens de sofrimento humano desfilavam perante mim. Vou prometer-te uma coisa, Deus, só um a ninharia: não irei sobrecarregar o dia de hoje com igual número de preocupações em relação ao futuro, mas isso custa um certo exercício. Cada dia já tem a sua conta. Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência. Mas torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, que nós é que temos de te ajudar e, ajudando-te, ajudamo-nos a nós próprios. E é esta a única coisa que podemos preservar nestes tempos e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus. E talvez possamos ajudar a pôr-te a descoberto nos corações atormentados de outros. Sim, meu Deus, quanto ás circunstâncias pareces não ter lá grande influência sobre elas, “é evidente que fazem parte indissolúvel desta vida”. Também não te chamo à responsabilidade por isso; tu é que podes mais tarde chamar-nos à responsabilidade. E, quase a cada batida do coração, torna-se-me isto mais nítido: que tu não nos podes ajudar, que nós devemos ajudar-te e que a morada em nós onde tu resides tem de ser defendida até às últimas. Existem pessoas, a sério que é verdade, que no último momento põem aspiradores a salvo e garfos e colheres de prata em vez de ti, meu Deus. E há gente u quer salvar o corpinho no qual se acolhem somente mil medos e rancores. E dizem: “A mim não me lançam eles a garra.” E esquecem-se de que ninguém fica nas garras de ninguém, estiverem nos teus braços. Recomeço a ficar um bocadinho mais calma, Deus, por causas desta conversa contigo. Hei-de ter mais conversas contigo no futuro próximo e, deste modo, impedir que me fujas. Também hás-de viver tempos de maior privação em mim, meu Deus, não serás alimentado tão fortemente pela minha confiança, mas acredita que continuarei a trabalhar e a ser-te fiel e não te expulsarei do meu território.

Para o grande sofrimento heróico tenho forças suficientes, meu Deus, mas são as mais de mil pequenas ralações darias que às vezes, de repente, saltam para cima de mim como se fossem parasitas que te atacam. Enfim, por enquanto coço-me um bocadinho e digo todos os dias para mim mesma: do dia de hoje ainda se cuidou, as paredes protectoras de uma casa hospitaleira ainda envolvem os teus ombros como uma familiar peça de roupa muito usada, a comida chega para hoje e a tua cama, de lençóis brancos e cobertores quentes, espera-te de novo esta noite. Portanto não deves desperdiçar um único átomo que seja da tua energia com as tuas pequenas preocupações materiais. Usa e utiliza cada minuto deste dia e transforma-o num dia frutuoso; mais uma pedra sólida no fundamento em que os nossos próximos, pobres e temerosos dias se possam apoiar um pouco.

O jasmim nas traseiras da minha casa encontra-se agora completamente destruído pelas chuvadas e temporais dos últimos dias. As suas florzinhas brancas bóiam dispersas nas lamacentas poças negras do telhado raso da garagem. Mas, algures em mim, esse jasmim continua a florir sem impedimentos, tão exuberante e delicado como sempre floriu. E espalha os odores pela casa onde habitas, meu Deus. Como vês, trato bem de ti. Não te trago somente as minhas lágrimas e pressentimentos temerosos; até te trago, nesta tempestuosa e parda manhã de domingo, jasmim perfumado. E hei-de trazer-te todas as flores que encontre pelo caminho, meu Deus, e a sério que são muitas. Hás-de ficar sinceramente tão bem instalado em minha casa quanto é possível. E já agora, para te dar um exemplo ao acaso: se eu estivesse encerrada numa cela acanhada e uma nuvem passasse ao longo da minha janela gradeada, então eu iria trazer-te essa nuvem, meu Deus, se pelo menos ainda tivesse forças para isso. Não posso prometer nada antecipadamente, mas as intenções são óptimas, hás-de notar. »


Etty Hillesum, Diário 1941-1943.



SALMO 44

Tu nos esmagaste na região das feras
E nos envolveste em profundas trevas.

Por causa de ti, estamos todos os dias expostos à morte;
Tratam-nos como ovelhas para o matadouro.

Desperta, Senhor, por que dormes?
Desperta e não nos rejeites para sempre!
Por que escondes a tua face
E te esqueces da nossa miséria e tribulação?
A nossa alma está prostrada no pó,
E o nosso corpo colado à terra.
Levanta-te! Vem em nosso auxílio;
Salva-nos pela tua bondade!


[ Tradução de José Augusto Ramos, para a Nova Bíblia dos Capuchinhos, 1998. ]

sexta-feira, julho 10, 2009

A CAVERNA


« - Depois disto – prossegui eu – imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos "robertos" colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles.
– Estou a ver – disse ele.
– Visiona também ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objectos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados.
– Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – observou ele.
– Semelhantes a nós – continuei -. Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projectadas pelo fogo na parede oposta da caverna?
– Como não – respondeu ele –, se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida?
– E os objectos transportados? Não se passa o mesmo com eles ?
– Sem dúvida.
– Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam?
– É forçoso.
– E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava?
– Por Zeus, que sim!
– De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos objectos.
– É absolutamente forçoso – disse ele.
– Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objectos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objectos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objectos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?
– Muito mais – afirmou.
– Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objectos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?
– Seria assim – disse ele.
– E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objectos?
– Não poderia, de facto, pelo menos de repente.
– Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objectos, reflectidas na água, e, por último, para os próprios objectos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.
– Pois não!
– Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.
– Necessariamente.
– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.
– É evidente que depois chegaria a essas conclusões.
– E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os outros?
– Com certeza.
– E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prémios para o que distinguisse com mais agudeza os objectos que passavam e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo "servir junto de um homem pobre, como servo da gleba", e antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo?
– Suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de preferência a viver daquela maneira.
– Imagina ainda o seguinte – prossegui eu -. Se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol?
– Com certeza.
– E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão ? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam ?
– Matariam, sem dúvida – confirmou ele.
– Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública. »


Platão, República, 514a - 517c.

[ Tradução da profª drª Maria Helena da Rocha Pereira.
Os versos citados de Homero são da visita de Ulisses a Aquiles no Hades, in Odisseia XI, 489-490. ]

segunda-feira, julho 06, 2009

TESTAMENTO DE TORGA


TESTAMENTO
Meu testamento de Poeta, quero
Que fique na pureza destas ilhas,
Gravado pelas ondas sem sossego.
Para que o leia o sol,
E o vento,
E quem gosta da Vida e movimento,
- Só escrito
Nestas folhas de espuma e de granito.


Em versos com medida das marés,
Rodeado de cor e solidão:
Talvez tenha beleza a doação,
E sentido…
Talvez que finalmente eu seja ouvido,
E cada herdeiro queira o seu quinhão.


( A riqueza que tenho,
Só em fraga despida
E com velas à vista
A posso dar a alguém…
Sou artista
Por humana conquista
E por me ter parido minha mãe. )


Mas se ninguém quiser o meu legado,
Nestes penedos, recusado,
Terá asas em cima…
Asas abertas sobre cada rima
De silêncio salgado.


Aqui, portanto, fique,
Como um ovo num ninho de saudade.
E que ninguém o modifique.
Só este texto indique
A minha última vontade.

*

Deixo…
(os poetas, coitados,
Têm qiuintas de papéis arrumados
E barras de oiro… quando a tarde cai… )
Deixo…
Mas a herança aqui vai.

*

Nenhum de nós desista, se é verdade!
Ligado às próprias achas da fogueira,
Mantenha-se por toda a eternidade
Senhor da sua inteira liberdade
De dizer o que queira.


Tenha amor aos sentidos
E a toda a criadora excitação.
Pouse na terra os olhos comovidos,
Como remos nos flancos coloridos
Da vaga onde navega a embarcação.


Leal e simples, saiba desvendar
Mistérios que é preciso descobrir:
O gesto natural de semear,
E a fome de colher e mastigar
O fruto que do gesto há-de sair.


Nada queira distante da razão,
Por saber que estiola o que não tem
Sol a jorros a dar-lhe projecção
Na rasa lei do chão
Donde a raiz lhe vem.


Veja passar o vento
Carregado de sonhos e poeira…
Veja-o passar, atento
À beleza do próprio movimento…
Entenda num segredo a vida inteira!


E siga como alegre quiromante
Que mesmo no ludíbrio se procura.
Romeu viúvo que perdeu a amante
E lhe fica constante,
Até que a vai amar na sepultura.

*

E agora assino e selo o testamento.
Leve-me o barco, e fique a barlavento
Esta bruma de mim.
E que o farol, à noite, quando alguém vier,
Ilumine o que eu digo, e o deixe ler
Até ao fim.



Berlengas, 6 de Julho de 1947.
Miguel Torga, in Diário IV.



[ Para conferir com o que ficou aqui.

Retrato feito por Inês Sofia Isidoro. ]

sábado, julho 04, 2009

UMA EXPERIÊNCIA VITAL ( III )

Consideremos um arco temporal abrangendo desde os inícios do Neolítico até ao ano… de 1789 d. C.. E tenhamos em vista aquelas sociedades dos nossos dias que os antropólogos costumavam e ainda alguns apodam de “primitivas”, que estejam o menos influenciadas por contactos com a nossa cultura ocidental. O que logo salta à vista do observador imparcial é isto: a experiência do numinoso ou do sagrado, com as correlativas práticas ritualizadas que motiva, a que chamamos “religiosas”, impregnam e condicionam todos os aspectos da vida e organização social, bem como dos factos e etapas mais marcantes do ciclo de vida dos indivíduos. Por outras palavras, e em mais amplo sentido: não se conhece nenhuma sociedade histórica indiferente ao religioso e, quanto mais recuamos no tempo a partir daquele ano revolucionário, tanto mais essa dimensão da vida humana se impõe ostensivamente ao observador. Tais universalidade e totalidade merecem explicação, mas o que mais me interessa pensar, não sem conexão com elas, é a fenomenologia da experiência do sagrado (habitualmente confundida ou reduzida às práticas religiosas, como temos visto) e os problemas que levanta, de diversa ordem: cognitiva, epistemológica, existencial, ontológica. Hoje pegarei num que pegou moda a partir dos anos 60 do século passado, lembrando as “plantas psicadélicas” que Henri Hatzfeld também lembrava no último trecho que dele aqui citámos na semana passada. O problema é este: será que a experiência da ingestão de substâncias psicotrópicas (naturais ou artificiais) pode causalmente induzir uma genuína experiência do sagrado? Uma questão que imediatamente exorbita daquele arco temporal para um muito maior, abrangendo o maior período da história da humanidade: o das sociedades recolectoras e caçadoras pré-agrícolas. Como o que interessa aqui não é a factologia histórica mas a fenomenologia psicológica, nos sequentes comentários suponho em vista indivíduos anatomofisiologicamente semelhantes a nós, da espécie sapiens.

Suponha agora o leitor que por toda a parte no passado indivíduos da nossa espécie se tinham deparado e apropriadamente usado das tais plantas “psicadélicas”, ou “enteogénicas”, como hoje preferem alguns dizer a propósito do nosso assunto. Sim, eu disse: em toda a parte; mesmo nos desertos gelados do Árctico, se não eram plantas, os pescadores tinham pescado alguma espécie de peixes psicadélicos… Suponhamos ainda que tal conhecimento se tinha “democratizado” por todos os indivíduos e havia impressionado a todos do mesmo modo, isto é: convencendo toda a gente de que tinham tido uma experiência do “sagrado”. Ainda mais : que tal experiência seria, por qualquer modo, originariamente e causalmente explicativa das mais díspares crenças e práticas da religiosidade ctónica e astral. Não sei que mais conceber em benefício da hipótese, e julgo não a trair na seguinte narrativa ordenada dos pontos essenciais : (a) desde há mais de cem mil anos, em todas as sociedades de indivíduos da espécie sapiens eram conhecidas e usadas substâncias psicotrópicas de qualquer género; (b) tais indivíduos têm uma experiência cognitiva e comportamental inédita : p. e. percebem entidades estranhas, nunca antes percebidas; ou percebem qualquer aspecto anormal em entidades normais já conhecidas; (c) sentem que essa experiência é de tal maneira importante para eles que a procuram reproduzir e, de facto, têm-na reproduzido e refinado até hoje; (d) alguns dos experimentadores, pelas entidades que perceberam e pelos próprios sentimentos ou comportamentos que adoptam, julgam-se em contacto ou participantes de um “outro mundo” (sagrado), diferente do mundo normal (profano); (e) ao longo dos tempos e das gerações, sempre outros membros do grupo, impressionados pelas narrações e acções dos experimentadores, retomam a mesma experiência ou meramente a transmitem por tradição radicada e consensual.

Não questionemos (a) também a benefício do argumento, embora seja de notar que outras causas naturais muito diferentes (experiências de “quase morte”, epilepsia, sonhos, música, dança e outras) poderiam provocar efeitos semelhantes. Por outro lado, o mesmo tipo de causas (noutros quadros culturais) pode gerar efeitos dissemelhantes : na nossa sociedade ocidental actual, não serão muitos os experimentadores a acreditar que as drogas os “religam” a um “outro mundo” real e a entidades reais ultramundanas, e não parece que seja por isso que as consomem. E este facto não é sem importância para a avaliação de (d) adiante.

Um dos problemas está em (c) : por que é que tal experiência é sentida como dramaticamente relevante para a existência humana ? Note-se que não está em causa a maturidade neurofisiológica do cérebro, que supusemos tão desenvolvido como o nosso actual; o que quero dizer é isto : às mesmas impressões sentidas os seres humanos podiam ter respondido de diferentes maneiras: ou sem lhe dar demasiada importância; ou com indiferença ou aversiva evitação. A “psicologia evolucionista” tem uma resposta à mão : no processo de hominização e humanização vêm a fixar-se as atitudes e crenças que provaram ser as mais vantajosas para a adaptação e sobrevivência dos grupos; seria o caso dessa resposta “religiosa”, que aliás não deve absolutizar-se nem, muito menos, pensar-se como uma característica inalterável de uma natureza humana permanente : quando a evolução tecnológica vier a dar aos humanos um domínio suficientemente grande sobre o ambiente natural, pode atenuar-se ou vir a desaparecer o suplemento de reforço adaptativo que as práticas religiosas nos davam (invocando “poderes” e “forças ocultas” para compensar as fracas forças humanas) ; e começar a impor-se a resposta de indiferença ou evitação, como se vai observando já hoje nas sociedades mais “evoluídas”. Tal é a teoria, nos anos recentes obrigada a versões mais matizadas, que não interessa examinar agora. Salientarei apenas o seguinte. - Compreende-se perfeitamente que as propriedades terapêuticas das plantas representassem um poderoso factor de adaptação e sobrevivência, mas é assim menos explicável o interesse de alucinogénios que alienavam ou distraíam os indivíduos da percepção normal e da atenção precisa ao meio ambiente, fragilizando a segurança dos indivíduos e do grupo, mesmo se tomadas por raros indivíduos ou apenas em ocasiões especiais. Por outro lado, o alheamento ou evitação relativamente à dimensão religiosa, não implicam nenhuma atenuação no seduzido interesse pela experimentação e a frequência desta. Antes pelo contrário, e é por isso que alguns crêem que tendo a prática religiosa normal frustrado nos indivíduos a reactualização da experiência do sagrado estaríamos, ou perante uma substituição dela, ou a tentativa de a recuperar. O que implica com (d).

Mas fiquemo-nos em que a aludida teoria de uma “selecção natural memética” é de razão suficiente para (c), e não disputemos se é de exclusiva razão suficiente, à parte alguma outra possível que tenha pelo menos equivalente razão suficiente (e que, de facto, está disponível). A meu ver, o mais forte problema que ela enfrenta tem a ver com o sentido do quadro geral da narrativa apresentada, e que está implícito muito especialmente em (d). Eis a questão : a conjunção de (a) até (e) dá-nos a garantia de que estamos perante uma genuína experiência do sagrado, como se julga em (d) ? A meu ver, nenhuma. O mais que podemos ter é uma simulação dela. Mas, para me explicar melhor, tenho de fazer ao leitor um pedido e um convite. O primeiro é que não perca de vista as notas essenciais características duma experiência do sagrado. E o convite é de vir comigo a revisitarmos a Caverna platónica, se ao caro leitor deste Tonel não repugna muito ir às caves do soberbo contemptor do nosso Diógenes.

quinta-feira, julho 02, 2009

Conspiracy - "Evacuation"

Vi o interessantíssimo filme 'Conspiração', que se centra na Conferência de Wannsee, onde se gizou a Solução Final (por extenso, a Solução Final da Questão Judaica). Como não sobreviveram, ao que creio, as transcrições desta reunião secreta de altos (ir)responsáveis do regime Nazi, não devemos tomar como verdades históricas o cinismo e a insensibilidade dos participantes no encontro da forma como o filme ilustra, obviamente! Mas o clima de indiferença, de desumanidade, de "banalidade do mal" (Arendt dixit) é retratada de forma superior pelo filme.

Cada vez mais a expressão "politicamente correcto" me fod..., perdão, me fere mais os ouvidos. A expressão, recorde-se, ironiza e deprecia a defesa dos direitos daqueles que foram milenarmente desrespeitados e brutalizados pela maioria dominante (devido à sua etnia, ao seu credo, ao seu fraco poder económico, etc.). Ora, politicamente correcto significaria ali, na reunião de Wannsee, afirmar o direito dos judeus à vida e à liberdade quando a "Realpolitik" alemã aconselhava a sua erradicação.

Mudam-se os tempos, e a nossa bússola axiológica deixa de funcionar. E quando falamos nos direitos dos desfavorecidos, dos desprezados, dos animais, o direito à verdadeira liberdade, lá volta o trocista rotulozinho do "politicamente correcto". A questão é esta: ou os princípios éticos são trans-históricos e trans-civilizacionais, ou a humanidade não é tão humana como reclama.

quarta-feira, julho 01, 2009

Continua a viagem...


...do excêntrico inglês que escapou ao limes do Império europeu, levando uma velha furgoneta alemã com a precisa e preciosa palavra que era preciso fazer passar, fazer correr. Nas últimas notícias suas dá-nos a prova fotográfica de que sabe andar descalço, e podia seguir a pé. Assim sendo, mesmo que lhe roubem o carro, ficamos seguros de que não lhe roubarão a palavra.