quinta-feira, janeiro 28, 2010

MAIS AVISOS


« Nós, no Ocidente, tivemos a felicidade inestimável de nos ter sido dada uma boa oportunidade de fazermos a grande experiência do auto-governo. Infelizmente, parece agora que, devido a modificações recentes do nosso ambiente, essa oportunidade infinitamente preciosa está a ser, pouco a pouco, afastada de nós. E isto talvez não seja tudo. Estas forças impessoais não são as únicas inimigas da liberdade individual e das instituições democráticas. Há também forças de outra índole, menos abstracta, forças que podem ser deliberadamente usadas por homens ávidos de poder, cujo objectivo é estabelecer um controlo parcial ou total sobre os seus semelhantes. Há cinquenta anos, quando eu era rapaz, parecia completamente evidente que os maus dias de outrora tinham acabado, que a tortura e o massacre e a escravidão e a perseguição do herético eram coisas do passado. Para as pessoas que usavam chapéu alto, viajavam em combóios e tomavam banho todas as manhãs, tais horrores estavam simplesmente fora de questão. Alguns anos mais tarde, estas pessoas, que tomavam banho diário e iam à igreja, cometiam atrocidades numa escala que os Africanos e os Asiáticos mergulhados nas trevas nunca tinham sonhado. À luz da história recente, seria loucura não supor que esta espécie de coisas não pode voltar a acontecer outra vez. Pode e, sem dúvida, acontecerá. Mas, no futuro imediato, há alguma razão para crermos que os métodos punitivos de 1984 darão antes lugar aos reforços e manipulações comportamentais do Admirável Mundo Novo.

(...)

« A melhor das constituições e das leis preventivas não terá qualquer poder contra a pressão incessantemente crescente da superpopulação e de um excesso de organização imposto pelo número sempre crescente dos seres humanos e pelos progressos da técnica. As constituições não serão abrogadas e as boas leis permanecerão nos códigos; mas estas formas liberais apenas servirão para mascarar e adornar uma substância profundamente totalitária. Não dominado o excesso de população e o excesso de organização, podemos prever, em países democráticos, uma inversão do processo que transformou a Inglaterra numa democracia, ao mesmo tempo que retinha todas as formas exteriores de uma monarquia. Sob a pressão impiedosa de uma superpopulação crescente e de uma crescente super-organização, e por meio de métodos cada vez mais eficazes de manipulação do espírito, as democracias mudarão a sua natureza; as velhas formas pitorescas – eleições, parlamentos, Supremos Tribunais e tudo o resto – subsistirão. A substância subjacente será uma nova espécie de totalitarismo não violento. Todos os nomes tradicionais, todos os rótulos consagrados ficarão exactamente como eram nos velhos tempos, a democracia e a liberdade serão os temas de todas as emissões radiodifundidas e de todos os artigos de fundo – mas tratar-se-á de uma democracia e de uma liberdade num sentido estritamente pickwickiano. [ O autor alude a uma personagem célebre, Mr. Pickwick, do romancista Charles Dickens. Pickwickian ficou na língua inglesa denotando uma atitude de provincianismo simplório e farsista, sem capacidade nem substância. ] Entretanto, a oligarquia dirigente e a sua altamente treinada elite de soldados, polícias e manipuladores de cérebros dirigirão o espectáculo como lhes aprouver. »

Aldou Huxley, Regresso ao Admirável Mundo Novo, (1959) trad. port. de Rogério Fernandes, Lisboa, s.d..
Ficam dois trechos de um livro que é todo ele de ponta a ponta um lúcido aviso, escrito vinte e sete anos depois desse seu clássico do pensamento político aplicado a uma prognose cultural que tem vindo a revelar-se infalível nos mínimos pormenores, e que é o Admirável Mundo Novo (1931). Com uma excepção: a parábola de 31 era datada por Huxley no século VI d. F. (depois de Ford...), enquanto neste livro de 59 o autor aflige-se ao reparar que o Abominável Mundo Novo está ao virar da esquina (chega a falar no séc. XXI...). Algumas observações a propósito dos trechos que ficam em cima. -

1. As “forças impessoais” são, para Huxley, essencialmente duas. Por um lado, o crescimento exponencial da população desequilibrado com os recursos naturais disponíveis; por outro, o crescimento dos poderes do Estado, das burocracias administrativas e das tecnologias que necessariamente derivam das tentativas de controlar a população e corrigir os desequilíbrios. O autor trata destes espectos nos três primeiros capítulos do livro, essencialmente dedicados à Superpopulação e à Super-Organização.

A questão do crescimento populacional teve, desde as teorias do inglês Ricardo Malthus, uma importância fundamental, a começar logo no pensamento de Darwin, como também no do seu primo Francis Galton, o primeiro grande teórico da eugenia. Compreende-se que o inglês Huxley, natural duma relativamente pequena ilha já sem extensos territórios coloniais, e educado numa tradição cultural que tolerava sem grandes escrúpulos o eugenismo malthusiano, se afligisse com excessos populacionais...

Deve dizer-se, porém, que, em termos da ecologia planetária, ninguém está em condições de saber qual seja o limite óptimo na relação população-recursos. Pelo contrário, não me admirava nada que, a ser rigorosamente possível uma tal comparação, concluíssemos que os seis mil milhões de habitantes de hoje vivem em média, nos países ricos e nos pobres, comparativamente melhor do que os quinhentos milhões que viviam no séc. XVI. E nada impede que, minimizados ou corrigidos os impactos ambientais com utilização doutras energias e melhor aplicação e distribuição dos recursos, a Terra não possa sustentar outros tantos mil milhões. É que a questão não é, ou não é evidente que o seja para já, a quantidade de pessoas e de recursos, mas a distribuição territorial dessas pessoas, a qualidade do aproveitamento dos recursos e a distribuição do produto e riqueza disponíveis. A questão da sobrepopulação, a pretexto de preocupações “científicas” de duvidoso ou nulo fundamento, não se livra também da suspeita de encobrir outra questão: a das populações indesejáveis. É de lembrar, a propósito, aquele desgraçado programa governamental, que durou quarenta anos, de 1927 a 67, e que transferiu da terra de Aldous Huxley para a Austrália, Canadá, Nova Zelândia e outras terras da “Commonwealth” necessitadas de mão-de-obra migrante cerca de cento e trinta mil crianças pobres dos orfanatos britânicos. Com públicas promessas de um melhor futuro, muitas delas foram sujeitas a sevícias físicas e psicológicas de toda a espécie e a regimes de trabalho escravo e gratuito.

2. Também não é evidente que haja alguma linear relação necessária entre aumento populacional, por um lado, e o incremento da burocracia administrativa e de um poder centralizador e totalitário. (O Império Romano dominava uma vasta extensão territorial e populacional, mas nem era centralizador nem totalitário.) Estes dois últimos terão mais a ver com a concentração territorial da população (mais uma vez as variáveis de geografia humana e ordenação territorial) e, sobretudo, com a qualidade das relações interpessoais, a forma de organização (ou desorganização) social e política dos grupos, e a disponibilidade de poderosas tecnologias de vigilância, controlo e repressão.

3. Quanto às “forças de outra índole”, a que se refere, são examinadas nos capítulos seguintes do livro, dedicados à boa e má “Propaganda”; ao Marketing; à “Lavagem ao Cérebro”; à “Persuasão Química” (condicionamento das mentes e comportamentos através de fármacos e drogas “recreativas”); à Persuação e Reprogramação subconscientes (através da percepção “subliminar” e de técnicas inspiradas na hipnose).

4. Nos dois últimos capítulos – “Educação para a Liberdade” e “O que Podemos Fazer?” -, Huxley ensaia perspectivas de possível reacção que me deixaram a impressão de vagas, frouxas e pouco convictas., talvez porque fragilizado pelo fatalismo do "pode, e sem dúvida acontecerá". Mas vejamos o último parágrafo que fecha o livro: « Entretanto, resta ainda alguma liberdade no mundo. É verdade que muitos jovens não parecem apreciá-la. Mas um certo número de pessoas crêem ainda que sem ela os seres humanos não podem tornar-se verdadeiramente humanos e que a liberdade é, portanto, um valor supremo. Talvez as forças que ameaçam agora o mundo sejam demasiado possantes para que se lhes possa resistir durante muito tempo. É ainda dever nosso fazer tudo o que pudermos para lhes resistir. »

A alusão a “muitos jovens” tem um contexto próximo no livro. O autor referia sondagens recentes da opinião pública ( norte-americana) que « revelaram que a maioria dos adolescentes abaixo dos vinte anos, os eleitores de amanhã, não crêem nas instituições democráticas, não vêem inconveniente na censura das ideias impopulares, não julgam possível um governo do povo pelo povo e julgar-se-iam perfeitamente satisfeitos por serem governados de cima por uma oligarquia de peritos qualificados, se puderem continuar a viver segundo o estilo a que a prosperidade os habituou. Que tantos jovens espectadores bem alimentados pela televisão, na mais poderosa democracia do mundo, sejam tão totalmente indiferentes à ideia de se governarem a si próprios que se interessem tão pouco pela liberdade de pensamento e pelo direito de discordar, é triste mas não muito surpreendente. »

Huxley não se surpreende porque isto é mais um indicador sociológico do seu próprio diagnóstico e prognóstico cultural. Não parece restar mais, contra essas fatais derivas da sociedade, que apelar para uma inesperada “alteração das circunstâncias”. Veja-se:

« A juventude que pensa agora de uma forma tão rasteira, poderá crescer para lutar pela liberdade. O grito de “Dêem-me televisão e cachorros-quentes”, mas não me assustem com as responsabilidades da liberdade, pode dar lugar, sob uma alteração das circunstâncias, ao grito de “Dêem-me a liberdade ou a morte”. Se tal revolução se efectuar... »

5. O autor inglês escrevia em 1958. Sabemos hoje que sobre essa data não passaram muitos anos sem que as circunstâncias se “alterassem” e viesse uma certa “revolução”... Foi o europeu Maio de 68, o Vietname e a contestação juvenil à guerra, a revolução hippie, que parecia reivindicar antes “Dêem-me a liberdade para viver outro tipo de vida!” Mas também sabemos hoje mais: que tal reivindicação era minoritária e evadia-se nos acid dreams; que o grito “Dêem-me televisão e cachorros quentes” era perfeitamente consequente com o “Livrem-me de ir para o Vietname” e é agora com o “Dêem-me videojogos e ecstasy”; que o Vietname interrompido prosseguiu e prossegue transferido para outras paragens, substituída a “ameaça comunista” pela “ameaça terrorista”. Conclusão: as circunstâncias alteraram-se... e tudo segue pela mesma via.

6. Também, quanto aos jovens (e menos jovens), me não surpreende. Mas para mim o motivo pode condensar-se numa palavra: Medo. Têm medo! Estão aterrorizados!
Sobre isto não resisto a citar umas palavras que bem podem servir como...


OUTRO AVISO

O leitor interessado encontra-as no Posfácio da monumental História da CIA, de Tim Weiner (trad. port. 2008 dum original do ano anterior), subintitulada significativamente: Um Legado de Cinzas. São do general Colin Powell, que na primeira administração Bush Jr. tentou frustemente moderar a vesânia belicista do executivo. As palavras são dele, a ênfase minha:

« Qual é a maior ameaça que enfrentamos agora? (...) A única coisa que pode realmente destruir-nos somos nós próprios. Não devíamos usar o medo com finalidades políticas, amedrontar as pessoas para que votem em nós ou para que criemos um complexo industrial de terror. »

sexta-feira, janeiro 22, 2010

DESEJO DE PODER E PODER DA VONTADE

« All human activity is prompted by desire. »
Bertrand Russell

Apresentei aqui há semanas qual era a principal tese que Russell se propunha defender no seu livro sobre O Poder: Uma Nova Análise Social. O ensaio de defesa assenta numa certa definição de o que seja o poder e numa certa classificação das suas formas principais, cujas manifestações historicamente mais típicas, a nível social e político, o autor identifica e analisa entre os capítulos 4 e 9. A definição (no cap. 3) e um corolário dela são como seguem: Em termos gerais, « o poder pode ser definido como a produção de efeitos pretendidos. É pois um conceito quantitativo: dados dois homens com desejos semelhantes, se um alcança todos os desejos que o outro alcança e ainda outros, ele tem mais poder que o outro. Mas não há meios exactos de comparar o poder de dois homens dos quais um tem um grupo de desejos e outro, outro; por exemplo, dados dois artistas, cada um dos quais deseja tornar-se rico, se um consegue vir a pintar bons quadros e o outro tornar-se rico, não há meio de avaliar qual deles tem mais poder. Contudo, é fácil dizer, grosso modo, que A tem mais poder que B, se A alcança muitos efeitos pretendidos e B apenas uns poucos. »

A definição acorda-se com o senso comum e com os comportamentos observáveis na sociabilidade humana que genericamente pensamos sob o nome de “política” (embora não apenas, como se vê no exemplo dos artistas). O poder respeita aos efeitos ou consequências produzidos sobre situações, acções ou pessoas individuais ou colectivos (interessa aqui apenas o contexto da sociabilidade humana). Esta parte da definição é típica do consequencialismo utilitarista. A outra parte interessante, e não menos característica, diz respeito aos “desejos”. Já nas primeiras linhas do cap. 1, titulado “O Impulso para o Poder”, Russell considerava que “uma das principais diferenças” entre humanos e os outros animais seria “o facto de alguns desejos humanos serem, ao contrário dos animais, essencialmente ilimitados e incapazes de uma satisfação completa.» Entre estes estão os desejos de poder e da “glória” (parece que equivalente a fama), estreitamente jungidos à “aguilhada da imaginação”.

O desejo de poder, e até (como se diz) de poder pelo poder, é um facto inegável (digo eu). Mas, à reflexão, surgem de imediato questões que fazem suspeitar da valiosidade de um tal “desejo de poder”. Imediatamente estas: quem deseja x (o poder ou seja o que for), carece de x e, portanto, parece mais afectado pelo efeito de uma carência do que apto a “produzir” por si algum efeito; por outro lado, se é dito tal desejo “ilimitado” ou “insaciável”, parece que o sujeito nunca se livrará dele e a plena posse de x é impossível. O leitor de Platão já advertiu aqui a célebre imagem do cocheiro impotente para frear e governar os cavalos fogosos das paixões e desejos, levados à rédea solta da imaginação. Quanto ao apreciador do nosso Cão, que enfrentou o poderoso Alexandre, bem sabe que Diógenes e os velhos filósofos ensinavam uma auto-suficiência ( autarkeia ) e um desprendimento passional (ataraxia) livre de desejos: do poder do desejo e do desejo de poder. Portanto, o desejo ou é limitado (ou extinto), ou não significa nenhum poder valioso, porque não é poder mas sujeição a uma carência impossível de satisfazer definitivamente (como a fome).

No trecho de Russell parece que o ponto importante será então o conseguir (“vir a conseguir pintar”, etc.) Que poder é este? A hipótese mais humanamente adequada será, em última análise, o poder da vontade: de afectado, o sujeito torna-se efector dos “efeitos pretendidos”. Conseguir x seria obter/realizar x por efeito de o que o sujeito quer; por um feito da sua vontade. Mas, não recaímos então no desejo? Onde está “quer” não poderia estar “desejar”? Não me parece. -

É possível, sem dúvida, que um desejo motive a vontade, sirva de activador do acto da vontade (“prompted by desire”). Mas a motivação é apenas um do complexo de factores que fazem uma vontade, incluindo: a pretenção ou previsão de certos fins ou objectivos; a deliberação; a decisão; e depois também, no plano da realização, a mobilização e utilização dos meios precisos e adequados; a obtenção de certos resultados (que podem sobrevir concordantes ou não com os fins) e as consequências da acção. Tudo isto a meu ver se implica na vontade, por sua vez implicada na experiência de vida, no carácter e na maior ou menor consciência de si e da situação por parte duma pessoa racional que delibera e decide na previsão dos fins que se propõe e com os quais se identifica (que formam a sua in-tenção pessoal, o seu interesse). E parafrasendo Russell, também aqui teríamos um conceito “quantitativo” : tem mais poder quem é capaz de conduzir pelos seus próprios meios a acção, desde o desejo ou (e)moção motivadora primacial até a um resultado conforme com o fim pretendido e escolhido pela decisão da deliberadora razão; quem realiza uma finalidade coincidente com o seu interesse; e mais ainda quem é capaz de levar a acção até plenamente assumir a responsabilidade das consequências razoavelmente previsíveis e directamente imputáveis do acto da sua vontade. Aqui está a autoria da acção e a autoridade da pessoa. Portanto, querer é poder, sem dúvida; mas o genuíno poder é um querer realizado, autorizado e responsável, não meramente o desejar seja o que for.

As esópicas ironias de Russell, que vimos no outro postal, têm um aspecto sério. O poder social (e político) seria, a darmos como bom o conceito que faz dele, um fenómeno humanamente insuficiente: não se vê que o desejo (ilimitado) do poder dos homens se distinga em substância, excepto em grau, do poder (limitado, como ele reconhece) dos outros animais. Sob este ponto de vista, a definição continua a acomodar perfeitamente uma concepção naturalista do poder político. Mas, se as precedentes considerações dos parágrafos anteriores são válidas, só no plano de um desejo ordenado por uma dominadora vontade é que teríamos um poder propriamente e distintamente humano.

Sobra-nos uma parte da definição russelliana que, aparentemente, vai contra o apontamento crítico que venho fazendo : os “efeitos pretendidos” (pretended effects). Parece-me óbvio que no contexto o autor utiliza pretended como sinónimo de intended. Suponhamos então que há sinonímia perfeita entre “pretensão” e “intenção”. Será que estes termos necessariamente implicam um acto da vontade ? Doutro modo: quando dizemos “tenho a intenção de”, sempre isso significa “quero” ? Parece que nem sempre: “estar na disposição de” significa uma pré-tenção para, um posição de princípio posta na ordenação temporal da acção, mas não necessariamente já deliberada ou decidida; quem manifesta uma intenção de princípio não tem de necessariamente se encontrar já comprometido em um certo curso da acção, já decidamente apostado nela. Note-se, por outro lado, que no âmbito da filosofia fenomenológica tem sido destacado o aspecto espontâneo (não deliberado, não voluntário) dos conteúdos da consciência humana natural (não “transcendental”): estar consciente é sempre estar ciente-de alguma coisa, seja o que for; diz-se, pois, que tais conteúdos são “intencionais”, mas esta “intencionalidade” é uma condição normal da consciência natural, não específica e singularmente a manifestação de um “eu quero”, isto ou aquilo. Notável é ainda que Russell fale sempre em desires, não em will , tanto aqui como na lecture que deu anos depois, quando em 1950 recebeu o Prémio Nobel, e que tratou duma temática intimamente conexa com a deste livro sobre O Poder. ( A palestra intitulou-a “ What Desires Are Politically Important? ”, de onde tirei a epígrafe supra. Utiliza nela preferentemente a expressão love of power, um “amor” que o filósofo acha que sobreleva – outweighs – todos os outros relevantes a este respeito. )

Julgo estarmos em condições de fazermos a pertinente aplicação ao assunto dos postais em que focámos o poder político. Se os desejos (ou os “instintos”) aplicados à satisfação de necessidades ( da “natureza” ou da “cultura” ), são suficientes para explicar as formas sociais mais básicas do poder político – originariamente no grupo familiar -, a vontade das pessoas humanas, nos termos em que aqui está posta, não parece necessária, e decerto o não é nas crianças sujeitas à autoridade dos mais velhos ou nos servos e escravos submetidos ao domínio de seus donos. Se não é necessária, abre-se a possibilidade de a vontade envolver-se, ou distanciar-se, da trama de relações que desejos e necessidades (mais os pensamentos, os sentimentos, as lembranças, as expectativas, etc.) vão entretecendo entre os indivíduos associados. Mas, se isto é de facto possível, então já não é só “por natureza” que acontece existirem alguns excêntricos animais apolíticos, como dizia Aristóteles: - é também pelo consciente exercício de uma vontade aplicada a levar aquele distanciamento até um ponto que talvez mereça chamar-se libertação (se é verdade que não neste mundo nenhuma liberdade dada que não a conquistada por um processo de libertação). O leitor bebedor deste Tonel já sabe que uma raça desses animais é a canina do nosso Diógenes, e que estes apolíticos não se confundem com abstencionismo indiferente. Contudo, há outros, doutra raça...

Mas, ao invés, como é que uma vontade envolvida com o poder político como pode assegurar-se alguma vez independente do mero desejo, ou sequer claramente distinta deste, e não meramente jogada ao jugo dum natural desejo ? Por mim, não vejo nenhum critério objectivo que nos certifique o animal político como entidade sequer propriamente dotada de uma vontade. A única coisa que me parece clara, certa e segura é que um desejo permanente aplicado à satisfação de necessidades permanentes, significa carência e jugo permanentes.

Em fim, por outro lado, se o desejo (ilimitado) de poder é o suficiente para alimentar a trama do poder político, e estes desejo e poder não são necessariamente os de uma vontade humana pessoal, outras possibilidades ficam abertas: a elevação tecnológica do poder político a uma potência não humana, e a submissão ou anulação da vontade, numa organização social cada vez mais maquinizada e despersonalizadora, gerida por um poder ditatorial, totalitário e aniquilador da pessoalidade e individualidade humanas. Deste ponto de vista, como também vimos naquele seu aviso, Russell tinha plena e séria razão (mais do que um naturalista, como ele, poderia crer) quando se temia e referia ao demoníaco.

Possibilidades não são fatalidades. (Mas também estas são uma possibilidade...)

quarta-feira, janeiro 20, 2010

O DIÁRIO DE NOAGA


20 de Janeiro
O poço da aldeia está seco. Vou todos os dias ao lago com a minha Mãe, para buscar água.

quarta-feira, janeiro 13, 2010

ANO VELHO...


Na tradição cultural do Ocidente, ficou com o nome grego philosophia uma peculiar maneira de alguns indivíduos do homo sapiens tratarem consigo, com os outros da sua espécie, o mundo e o sagrado. De essa posição existencial ressaltou imediatamente uma nota característica e distintiva: - a singularidade pessoal. Decerto, a Filosofia, com este nome grego ou qualquer outro, é coisa universal, uma possibilidade própria do sapiens, como disse; mas com ela encontramo-nos pela primeira vez com um certo tipo de pensamento originariamente imputável a pessoas individuais, singulares, historicamente concretas e situadas, que podemos responsabilizar e nomear com identidade própria: desde Tales, nascido na cidade de Mileto pelo último quartel do século VI a. C..

Já aqui, lembrando esse primeiro «filósofo» a que a História atribui tal nome, lembrei uma história que põe em confronto Tales com uma anónima mulher velha, sábia de uma sabedoria inimputável a pessoas individuais, anónima, colectivamente assumida e oralmente transmitida, geração após geração. Muito possivelmente Pitágoras, certamente Parménides e Platão, não desdenharam usar dessa sabedoria, e mesmo Aristóteles lhe reconheceu a importância. Em vias de extinção, com a crescente urbanização e industrialização das sociedades – e a escolarização dos indivíduos num tipo diferente de cultura, alfabetizada, letrada e «científica» -, é mais uma das «ironias» da História que viessem a ser as ciências, filhas e herdeiras da Filosofia, a interessar-se por recolher e fixar em letra impressa as narrativas dessa sabedoria, oral e desconfiada (ou mesmo adversa) da escrita, salvando-a do total desaparecimento.

Expressões exemplares típicas dela são os «ditados» ou «provérbios». Faço questão de deixar aqui na ciberesfera alguns desses portugueses tirados do «espantosamente rico tesouro da sabedoria tradicional da nação», como reconhecia a distinta e doutíssima senhora Carolina Michaelis de Vasconcelos, nascida alemã. Escolhi os que respondem aos objectos gerais e fundamentais que interessam à Filosofia, e que, por isso mesmo, correspondem aos interesses mais permanentes ou mais resistentes ao tempo e à variedade dos modos sociais dos humanos, pelo menos enquanto estes ainda forem... sapiens.

Não se tema o leitor de cair, como Tales, num poço donde nos chegam lá do fundo dos tempos ecos como os repetidos a seguir. –

... PENSAMENTOS VELHOS

1. O mundo é que nos vê, Deus é que nos conhece, ninguém é como parece.

2. Neste mundo cansado não há bem completo nem mal acabado.

3. Tudo erra sobre a terra.

4. O tempo joga, o homem julga.

5. Tempo querem as coisas.

6. O tempo cura o que a razão não pode.

7. O tempo não aguenta a vida.

8. Cada um sonha como vive.

9. Não há gosto perfeito na vida.

10. Quem procura a Deus mais não precisa.

11. Entre Março e Abril o cuco há-de vir; se não vier, ou morreu ou o fim do mundo está para vir.

12. Vai onde puderes, morre onde deveres.

13. Come para viveres, não vivas para comer.

14. Com passatempos se engana a vida.

15. Que havemos de fazer ? Amar até morrer.

16. Sofrer é crescer.

17. Viver não é o que se cuida e morrer não é o que se espera.

18. Quem morre, vive.

19. Quem ama vai longe.

20. Amor e morte: nada é mais forte.

21. Amor é a gente querendo achar o que é da gente

22. Nunca amou quem deixou de amar.

23. Amor e saber é que custa a ver.

24. O amor apura-se na dor.

25. Cada um é um.

26. Do parecer ao ser muito há que ver.

27. Deus sabe o que faz e a gente não sabe o que diz.

28. A natureza do homem é querer e não querer.

29. Nem todo o homem sabe sê-lo.

30. A mulher pode, o homem quer.

31. Bem e mal, Deus sabe qual.

32. O bem é mais difícil, mas o mal sai mais caro.

33. O bom sofre o que o mau não pode.

34. O bem só é conhecido depois que é perdido.

35. Poder o que se quer, querer o que se pode.

36. Tudo quer o que é seu e ninguém é dono de si.

37. Goza o teu pouco, enqunto mais busca o louco.

38. Pouco e em boa paz muito se faz.

39. Os grandes fazem sem dinheiro o que os pequenos não podem fazer com ele.

40. Corpo é vestido, alma é pessoa.

41. Da guerra a paz, da paz a abundância, da abundância o ócio, do ócio a malícia, da malícia a guerra.

42. Quem sabe está sabendo e quem não sabe se está vendo.

43. Muito saber leva a Deus.

44. Ciência é loucura, se o bom siso a não cura.

45. Não sabe quem muito viveu, mas quem muito viu.

46. Experiência que não dói pouco valor tem.

47. O sábio sabe que não sabe e o néscio cuida que sabe.

48. A razão é dos homens, mas a justiça é de Deus.

49. Há um caminho de coração a coração.

50. Pensa muito, fala pouco, escreve menos.


[ Como acontece com outros em geral, o 11 apresenta variantes. A versão que dou foi-me dita e repetida por duas jovens dos concelhos de Penedono e Sernancelhe. É muito expressiva do ciclicismo naturalista das culturas tradicionais, e dá perfeita razão do conservadorismo e misoneísmo típicos de uma ordem social que se cria ligada e harmoniosamente reflectida na ordem cósmica.

O 18 foi colhido na ilha de S. Miguel por Armando Cortes-Rodrigues, o poeta do Orfeu amigo e correspondente de Pessoa. Na vizinha de Santa Maria, ouviu outra versão: Morrer é viver. Entre os dois pode não haver necessariamente sinonímia, sim complementaridade, como que dizendo o segundo: Morrer é (o) viver, de acordo com o significado noutro, que diz sob capa de vagueza aparente - Quem vive assim não pode dizer que vive. E ainda de acordo com outro, cifrado sob capa duma banalidade: A vida é o caminho da morte. Os que fixaram estes, mais o 8 e o 17, reencontraram aquela sentença que o grande Heraclito de Éfeso cinzelou em relevo nos alicerces da Filosofia grega: Morto é tudo o que vemos acordados; sonho, tudo o que vemos dormindo.]

quarta-feira, janeiro 06, 2010

ANO NOVO, PENSAMENTOS NOVOS



Novo ? Que pode haver de “novo sob o sol”, depois daquela Novidade absoluta que memorei aqui na semana passada? E não está já pensado tudo, de todas as maneiras? O leitor julgará. Aqui vão doze, por cada uma das votivas passas que são de regra na passagem de ano. Os meus desejos são que o leitor não fique passado de tanto disparate. Talvez que pensamentos tão díspares das ementas do dia cobrem alguma relativa novidade à conta de intempestivo, inactual sabor.


1º.
Ganha vulto, engrossa, cresce, levanta-se como acima de todas as mais, avança para terra como a querer cobri-la toda… e súbito cai, desfaz-se em espuma, tentando somente subir areal acima mais longe que a onda anterior, e acabando como todas as outras, recuando, refluindo sobre si, embatendo nas novas que abrem caminho, que à sua vez se crêem sucessoras mais bem sucedidas, a querer ir mais longe… Quem avança na crista da onda só tem olhos para o progresso, julga que pode abarcar toda a terra, e raros são os que olham para trás de si e reparam que a onda levantada é apenas um momento fugaz do mar imenso e das miríades de ondas que têm atrás de si, sem qualquer poder sobre ventos, correntes e ritmos diários ou sazonais das marés. – Que resta da espumosa soberba de onda nova, levantada e logo abatida ? Esforço vão e sem sentido, “absurdo”, como querem alguns náufragos da razão? Mas resta na terra areal um perfil a desenhar-se, que o escultor Tempo vai esculpindo.


2º.
Uma experiência difícil e rara, mas não inacessível, diria o patriarca Parménides, nascido na itálica Élea mas estrangeiro aos “trilhos comuns e erradios dos mortais”. Que dizia então este filho de Hélio ? – Que, sem caução divina, se não pode humanamente decidir, entender e dizer de “o que é” ou “não é”. Resta o historial discorrer das “opiniões dos mortais”, mais ou menos plausíveis, sobre a “diacosmese”, a ordenação temporal do Cosmos, aparente às variáveis observações, do olho nu ao radiotelescópio computorizado...

Um jovem audaz, que na juventude se encontrou com o velho Parménides e o estrangeiro de Élea, foi Sócrates ateniense, que muitas vezes depois trancaria os levianos sofistas nas indecidíveis aporias sobre “o que é” ou “não é”. No final da vida, na cara do democrático tribunal que o condenou à morte, ofereceu aos que o acusavam de impiedade a solução, cautelosamente, como “o mais provável/possível” (kindyneýei) : - « O mais provável, ó homens, é que na realidade só o deus sabe…. » (Apol. 23 a)

Sem caução divina nenhuma sobre “o que na realidade” (tô ónti) “é” ou “não é”, levando a indagação (skepsis) às últimas consequências cépticas, um discípulo de Sócrates que já lembrei aqui – Arcesilau de Pitane (séc. III a. C.) – concluiu: « que nada sei… e que nem sequer isto sei.»


3º.
Não muito antes do tempo em que se levantou Parménides, os abatidos hebreus no exílio de Babilónia recolhiam, ordenavam e redigiam as tradições orais do seu povo, para que se não perdessem. No livro de Shemôt, que conhecemos com o nome grego de Êxodo, o leitor pode começar a ver no cap. 3, versículo 14 as decisivas consequências daquilo que, no filósofo de Élea, parece aos mortais olhos miradores de miragens especulações “abstractas” sobre “o ser”. Mas, se quer coisas mais “concretas”, agora que vai na crista da onda em direcção à praia comum, olhe direito e veja como tantas vezes a terra ficou tinta de sangue com as belicosas tesuras dos que se levantaram a determinar “o que é” contra os não menos duros que lhes opunham “não é”. Até hoje.


4º.
Se a racional humildade epistemológica de Arcesilau, que por outro lado apelava a um eulogos (bom senso) nos comportamentos relacionais, não foi bem sucedida; se o que importava era “não dar ouvidos a mim mais ao Logos”, como advertia de si o mestre velho de Éfeso, Heraclito, pareciam justas e justificadas as apóstrofes que dirigiu aos “surdos” e aos “burros que preferem a palha ao ouro”, concluindo num robusto realismo, que ainda hoje pareceria definitivo: « A maioria é má, poucos os bons. »

Não era definitivo. Apelando ao Logos, repondeu ao mestre da antiguidade o Verbo do divino Mestre da humanidade nova: em Marcos, 10, 18; em Lc 11, 13 e 18, 19; em Rom 3, 23. (E, quanto a Parménides e ao livro do Êxodo, cf. João 8, 24.28.58.) -


5º.
Que todos somos maus traduzo eu assim (mal): que não se trata, em primeira instância, de valores e comportamentos da moral social, ou de direitos e deveres da ética. – É uma cisão ontológica entre ser e aparecer existente a deperecer no espaço-tempo; a catástrofe existencial duma vida deficiente, débil e residual, doente e sofrida de morte, morrendo e matando; são os olhos duma insuficiente razão, encegada e sonhando fantasias. E também é o gosto perverso no malfazer; a dificuldade de a vontade fazer o que mais deve querer; a liberdade quase de todo subjugada à necessidade.

Que todos somos maus é um pensamento novo ? Não, é velho como este mundo desfeito em que aperecemos descons/certados. E, sim, é relativamente novo, em face da crença recente de que todos nascemos bons e as condições sociais ou políticas é que nos fazem maus.


6º. Um animal monstruoso, ameaçador da ecologia terrestre, para que serve? Dizem uns ingénuos ou engenhosos que , sob a pressão das condições ambientais, serve para evoluir e “criar” uma espécie mais capaz de responder bem aos desafios do ambiente social e natural, mais bem adaptada... Para estes, não há animal monstruoso nenhum e só capaz de, por si mesmo, gerar monstruosidades. Digo eu, com outros que pensamos sempre em pessoas individuais (as gotas que fazem as ondas e o imenso mar), primazes sobre “classes”, “espécies” ou “géneros”: - serve para mostrar a necessidade racional de vir cada um às opções decisivas do fim (como ideal fim/objectivo ou temporal termo). Como esta, exemplarmente: - animal como outro qualquer, ou filho de Deus?


7º.
A monstruosa debilidade da nossa razão cega, mostra-se (por exemplo) na incapcidade de nos compreendermos e resolvermos em clara mente como animais-e-filhos de Deus; a incapacidade de solvermos no normal paradoxo o que tendemos frustemente a pensar nos registos da contrariedade e da contradição (apelando para um ideal “princípio de não contradição” que não é assumível nem decidível humanamente, apenas possível de pensar-se em termos como o desta condicional: se é animal-e-filho de Deus, então não é animal como qualquer outro).


8º.
Uma aplicação do anterior à ética/moral: a desastrada insistência em terminantes decisões sobre o que é ou não é “bem” ou “mal”, quando existimos na perpétua condição de bem-e-mal, misturados e humanamente indecidíveis. (O mar de sangue que tem coberto a terra por via dos soberbos que se julgaram “bons” e levantaram contra os julgados “maus”!... )

Onde está “desastrada insistência”, pode ler-se: crucificada existência.

Outra aplicação, considerando o . Todos somos maus neste mundo em que todos aparecemos doentes e deperecemos de morte – e – todos somos bons no mundo perfeito querido por Deus desde sempre e para sempre, o que no tempo pode ser iludido e abrogado. (Aqui a chave única para ler esse artigo de Declarações justamente famosas: « Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.... » )


9º. Nas sociedades desfeitas desta parte rica e apodrecida do mundo, em que escrevo, acham-se os indivíduos cada vez mais sobre si, isolados e despersonalizados, diante dum “Estado” imitador da omnipotência divina. Mas contra pessoas instruídas que se reconhecem e reconstituem crescendo para a unidade da sua íntegra e vera humanidade (homem-e-mulher), nenhuma política ou polícia humanas têm poder soberano algum.


10º.
Não parece que nenhum homem possa chegar educado à viril idade sem sair do poder da mãe (a biológica ou a esponsal), e do poder da fome satisfeita ao preço da venda do corpo por um salário de “trabalhador”. Isto é: sem deixar de ser filho da mãe e filho da puta da vida safada.


11º.
A mais ilusiva e lesiva dependência seria substituir a mãe ou o pai pelo “Estado” e pôr-se alguma esperança na “Política”. O mesmo se diga da “Educação”. Basta ao leitor bem considerar o que ficou nos dois parágrafos anteriores e bem entenderá quanto a educação nada tem que ver com ideólogos de gabinete, administrações públicas e “escolaridades obrigatórias” (!). Isto é hoje, mais que nunca, apenas engenharia social dos comportamentos computarizáveis a reprogramar.


12º.
Falando de homens livres da mama da mulher e da teta do “Estado”, parece que não estou a falar em português para portugueses. Decerto não, para o maior número dos que hoje andam civilmente registados com tal nome. Por isso termino em termos da voz robusta e realista que os portugueses velhos foram capazes de falar ontem, – e eu passo e dedico aos que sejam capazes de a ouvir amanhã.

Presente à alerta e pronta consciência, eis uma certa ciência:

« Deseja o melhor, e espera o pior. »