quinta-feira, fevereiro 25, 2010

O CENTENÁRIO DA REPÚBLICA


Alguém terá lembrado aos fruidores e mediáticos protagonistas da nossa actual situação política que era ano centenário da República e, pesarosos de não haver antes Eurofutebóis ou Expos, lá sacaram à “crise” uns milhões de euros para comemorações.

Ocorre imediatamente perguntar quanto é que de facto se comemora: os acontecimentos de um ano (1910) que faz cem, ou serão mesmo os 100 anos? É que a 3ª República, pós 25 de Abril, festeja-se todos os anos nesta data. E incluem-se nas comemorações os 40 anos da República salazarista? Parece que necessariamente, ou ficaríamos apenas com 37 mais os 16 anos da 1ª República, que esta aliás todos os anos se comemora também, no 5 de Outubro. Mas, se são mesmo os 100, é claro que já se cheira o que é que os festejadores vão fazer dos incómodos 40 do reitorado do reitor Salazar: comemorar 40 anos de resistência republicana à... República (salazarista).

Isto traz-me a segunda questão: o que é que há assim tão digno de festejar nestes acidentados e contraditórios anos das três Repúblicas? Serão, pegando em um só exemplo, os 63 anos de fervoroso nacionalismo, para o qual os territórios ultramarinos portugueses eram “solo sagrado da Pátria” ? Ou antes os 37 anos de precipitado abandono deles e de não menos precipitado integracionismo eurocêntrico e eurotânico (da OTAN ou NATO, que nos tirou de África para nos levar para a Bósnia e o Afeganistão), com uma sobras de vagos entonos líricos à “comunidade da lusofonia”?

Os títeres oficiais lá sabem (ou nem isso) o que lhes encomendam. O que eu irei memorando aqui, a meu modo, são cem e mais anos da história portuguesa. Sim, essa mesma, a esquecida e menosprezada História de Portugal, que os festejadores fogueteiam cá fora para a televisão e não sabem, não podem ou não lhes interessa comemorar como devia ser e era seu estrito dever : - ensinando-a capazmente nas escolas.
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Começarei hoje com a citação de um historiador especialista na nossa história social e política dos sécs.XIX-XX, com vária obra publicada especiamente sobre a 1ª República, que é esta evidentemente a focada pelos festejadores oficiais e seus patronos e mandadores oficiosos. A citação é-lhes dedicada, tanto como àqueles que, a propósito do 31 de Janeiro de 1891 (primeira tentativa armada e frustrada de implantação da República, e agora primeiro dia das celebrações centenárias), vieram agora a público clamar que o acto terrorista do Regicídio de 1908 fosse incluído nos festejos. O leitor pode encontrar a citação adentro dum longo capítulo (pp.47-137) do livro Portugal. Ensaios de História e de Política, que Vasco Pulido Valente publicou no ano passado. O capítulo titula-se “A ‘República Velha’ (1910-1917)”. Nas primeiras 7 páginas deste ensaio o autor utiliza 15 (quinze) vezes as palavras terror/terrorismo/terrorista, que voltam a reaprecer por duas vezes nos dois parágrafos únicos da Conclusão. Na p. 51, ele explica-se:
« O terror não vinha, evidentemente, do exercício constante da violência. A vida oscilava entre períodos de extrema violência e outros de relativa paz. O terror não vem do uso sistemático da força ou sequer da particular crueza da repressão. Vem sobretudo de não existir uma legalidade, ou sequer um simples conjunto de regras tácitas, mas fixas e compreensíveis, que definam os direitos e os deveres dos indivíduos e das instituições, e também da ausência de qualquer linha, mesmo ténue e até secreta, que separe os agentes da repressão das pessoas privadas. »

Havia decerto uma “legalidade”, no papel e na letra daquela torrente legiferadora que logo após o dia 5 começou a jorrar do Governo Provisório, e principalmente do seu ministério da Justiça (um chuveiro legal muito semelhante ao que nos tem inundado nesta 3ª República), típica daqueles crentes em que não há prática social nenhuma que não possa moldar-se de qualquer maneira à vontade escrita dos ideólogos de gabinete. Mas o que as leis valiam e valem na prática quotidiana... Lembra-me, por falar no 31 de Janeiro, um exemplo que serve para a “liberdade de expressão” e para a falta daquela “linha separadora” de que fala Pulido Valente. E vá o caso também em homengem ao grande intelectual e erudito português que foi José Pereira de Sampaio (1857-1915), conhecido por Sampaio Bruno: formado em Medicina, jornalista desde os 15 anos de idade; notado e processado por isso aos 16; autor de uma não menos notada e verberada Análise da Crença Cristã, aos 17; membro do directório do Partido Republicano desde os 21. Comprometido com a revolta do 31 de Janeiro, de que foi um dos impulsionadores, Sampaio Bruno teve de fugir e exilar-se em Paris. Regressado ao fim de dois anos, começou a entrar em linha de choque com outra figura grada do Partido Republicano, Afonso Costa, diferendos que vieram a público nos jornais e num congresso do partido. Aconteceu que, certo dia de 1902, ia o portuense ilustre e boníssimo homem que foi Bruno passando sozinho numa rua da sua cidade, quando do vão duma porta lhe sai a caminho o Costa, acompanhado duns amigos: injuriam o portuense, cominam-no de “traidor” e, acto contínuo, passam a agredi-lo a murro e à bengalada. A intervenção oportuna de passantes corajosos não evitou que os energúmenos fugissem sem deixar em sangue o rosto e cabeça do pacífico homem, que recusou apresentar queixa contra os correligionários. Tenho por expressivamente assinalada neste incidente a razão daqueles que hoje defendem teria sido muito diferente em capacidade e qualidade cívica o regime republicano, se tivesse triunfado naquele Janeiro de 1891, sob a égide de intelectuais como Bruno e Basílio Teles ( e não por acaso este último, posto que repetidamente instado, recusou-se sempre a uma participação política activa no pós 5 de Outubro). Por seu lado, já aqui dava sinal Afonso Costa do que seria e do que faria, depois de 1910, aquela informal e torcionária guarda civil que fez de polícia de choque e política, popularmente conhecida por formiga branca. Logo em 1911, na sequência da evolução política e da ofensiva anti-religiosa levada a cabo a partir do ministério de Afonso Costa, a desilusão e acutilância crítica de Bruno (que não era católico, mas profundamente liberal) chega a ponto de, confessar-se “completa e absolutamente enojado com a situação”, no seu jornal vespertino do Porto, Diário da Tarde (creio terá sido em Maio). Pois sucedeu que a púrria afonsista lhe invade e vandaliza as instalações do jornal e é de novo agredido, num café da cidade.

Assim se estimavam entre si alguns dos próceres republicanos. E aqui está a tal “ausência de qualquer linha que separe os agentes da repressão das pessoas privadas”. Os que deitavam bombas antes do 5 de Outubro, e continuaram a deitá-las depois, sabiam-no bem.

segunda-feira, fevereiro 22, 2010

O DIÁRIO DE NOAGA


22 de Fevereiro
Nasceu-me uma irmãzinha. Viva a maninha!

quarta-feira, fevereiro 17, 2010

QUARTA-FEIRA DE CINZAS


« Alma minha, por onde andas desgarrada, vagabunda, perdida, buscando satisfação e descanso onde é impossível achar mais que aflição e desassossego? Este mundo, saído das Mãos de Deus e malignado nas dos homens, não é outra coisa que os mesmos homens, que nele habitamos, e as obras que nele fazemos. E sendo cada homem uma fonte de desordens, fraquezas, malícias, ignorâncias, vaidades, mudanças, trabalhos, necessidades, dores, defeitos e pecados, considera bem como estará o mundo alagado e submergido no dilúvio de tantas misérias, e que lugar haverá nele onde a pomba de um quieto e sincero espírito assente o pé seguramente. Não é o homem, quanto de si, mais que estas duas coisas: Peccatum et Mendacium: Defeito e cobertura desse defeito, ou cadáver e mortalha desse cadáver. Por outro modo: chagas e panos; chagas das suas misérias de culpa e pena; e panos das suas afectações mentirosas, com que procura vendar essas chagas, em vão; porque as chagas ressumam pelos panos, e ficamos não só asquerosos mas ridículos. Erramos como ignorantes: eis aí a chaga. Mas logo acudimos a desculpar o erro, ou sustentar que foi acerto: eis aí os panos. Anelamos ao ouro e prata, como ambiciosos: eis aí a chaga. Mas logo queremos persuadir-nos, com razões aparentes, que assim é conveniente e ainda preciso: eis aí os panos. Julgamos mal uns dos outros, como maliciosos: eis aí outra chaga; em cima queremos que se entenda que isto é prudência: eis aí outros panos. Discorre, alma minha, por tudo o mais, e assim acharás que é tudo o mais; porque estas duas misérias, raízes das mais, têm lá seu princípio, onde todos o tivemos. Quebrou Adão o preceito, e logo se desculpou com Eva; deu Eva o escândalo, e logo se escusou com a serpente; Adão e Eva se acharam despidos, e logo se cobriram com folhas. Assim neste mundo tudo é nudez por dentro, folhagem por fora: Peccatum et mendacium.
Contempla atentamente, não te enganes com o mundo; que ele é sumammente enganador, e tu sumamente enganadiço. Que é o mundo ? É (disse um servo de Deus que o conhecia bem) um estalajadeiro, que ao entrar o hóspede o trata bem e festeja, mas, ao despedi-lo, se mostra severo e rígido, e lhe pede grandes custas. Todos nós somos hóspedes e passageiros, não havemos de ficar moradores para sempre na estalagem do mundo. Oh que bom rosto nos mostra à entrada! Mas, que terrível à saída! Deixamos em custas a fazenda, a honra, o gosto, a vida, o corpo; e o pior é que as mais das vezes também fica em custas a alma, que se condena eternamente.
Que é o mundo ? É um mar infestado de corsários, que são os demónios; alterado de contrários ventos, que são as tentações; passeado de sereias e monstros marinhos, que são as afeições ilícitas; enganoso com sorvedouros e baixios, que são as traições e calúnias. Que é o mundo ? (Torna bem a olhar.) É tudo às avessas do que havia de ser: desordem sobre desordem, e nem ainda as mesmas desordens vão bem ordenadas. E é o que procurava emendar o outro Filósofo Cínico, mandando em seu testamento enterrar-se de costas para cima, para concordar com as mais coisas do mundo, que todas são às avessas.
Que são os gostos, honras e dignidades do mundo? Panos de armar: pela dianteira vistosos, pelo avesso feios. Tu páras a ver, e admiras a glória das ciências, o resplendor dos graus honrosos, a alegria da vida abundante e saúde inteira, a galhardia da formosura humana no verdor dos anos, as músicas, banquetes, jogos, edifícios, etc. Essas são as figuras do pano pela dianteira. Volta do avesso: que é o que vês agora ? Oh Deus meu! Não mais que vacuidade e instabilidade, soberba e aflição de espírito e perigos de inferno.
(...)
Que será isto, que sendo estes bens tão falsos assim os gozamos como verdadeiros ? E sendo momentâneos, assim assentamos neles o coração, como se fossem eternos! Que há-de ser senão cegueira, efeito de não amar a Deus e não seguir a Cristo, que é a luz do mundo ? Qui sequitur me non ambulat in tenebris (Jo 8, 12). Escreve-se que S. Luís, rei de França, edificou um grande hospital, onde recolheu de todo o reino trezentos cegos, dando-lhes ocupação honesta. Os cegos, que estão no hospital deste mundo, não têm conta; e o que mais prodigioso é, cada um parece que tem sua diferente casta de cegueira, porque tem diferentes vícios e apetites, opiniões e arbítrios. Não há pessoa tão vil e desprezível que não apeteça alguma honra; nem tão rica e possante que não queira ter mais; nem tão decrépita que não espere ter mais alguns anos de vida; nem tão ignorante que não presuma saber algumas coisas melhor que outros; nem tão sublimada em dignidades que lhe não fiquem asas no desejo para subir mais; porque se possuir o mundo inteiro chorará, como Alexandre, porque não há mais mundos. Eis aqui os cegos e as cegueiras, causadas pelo bafo do demónio que nos empana os olhos da alma, e assoprando também nos carvões dos bens deste mundo, os faz resplandecentes brasas. Opinião, gosto, aplauso, etc., não são mais que uns carvões negros, feios, imundos. Mas de carvões a brasas, não vai mais que assoprar-lhe o diabo, e logo eles reluzem e nos fazem arder na concupiscência deles. Até que nós, e o mundo com todas suas coisas, nos tornemos em cinzas. »
Manuel Bernardes (1644-1710), Luz e Calor, Parte II, §§ 367-369.


[ Aqui fica mais um encomendado aos foliões vassalos do rei Momo, na ressaca das mascaradas carnavalescas. O texto revolucionário de Bernardes vira do avesso os valores florescentes nos XVIII e XIX e que viriam a frutificar no seguinte, o século mais mortífero que a humanidade conheceu, de que havemos da amargar o cálice até ao fim. O leitor já experimentado nas navegações deste mundo, já desenganado e advertido dos perigos de inferno, terá interesse em saber que logo no 370 poderá encontrar o complemento preciso e precioso, positivo e construtivo, do salutar realismo crítico do oratoriano. Quanto o bebedor deste Tonel, de paladar mais conservador, apreciará ao menos a referência ao nosso Diógenes, segundo uma história reportada pelo compilador Laércio; e cotejará a interpretação de Bernardes com a explicação literal dada pelo Cão de Sinope ao seu dono Xenodíades: queria ser enterrado de barriga para baixo porque ... - « Dentro em pouco tudo ficará voltado do avesso! » Tudo, o quê? Pense nisso o leitor. O que eu penso é que a resposta é muito concorde com tal outra que o mesmo Diógenes dera uma vez, quando lhe perguntaram porque sempre entrava no tearo pela porta de saída: - « Faço questão de fazer na vida o contrário do que toda a gente faz. » Ora, se o leitor lembrar que a figura do teatro do mundo tem uma antiguidade que remonta a Pitágoras...
É, enfim, mais um testemunho (e não único, na obra de Manuel Bernardes) do compreensivo acolhimento que o Cinicismo em geral, e Diógenes muito em particular, tiveram na tradição cristã. Um assunto que merece e tenho reservado para outra oportunidade. ]

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

O FIM DO ESTADO DE DIREITO




Depois do primeiro abalo sofrido em 11 de Maio de 1984, desabou e desapareceu o Estado de Direito em Portugal no dia 11 de Fevereiro de 2007.

Nas suas origens, a noção de Estado de Direito surge como a tentativa de salvaguardar e promover na vida civil dos povos a ligação entre o domínio de o que é legal e de o que é moral. Na essência, trata-se de manter que na vida social as leis não percam o norte da Justiça e se orientem em linha recta – rectamente, em bom Direito – por esse ideal, capaz de ir fazendo a vida civil mais civilizada.

Como se articulam então aqueles dois domínios, o da legalidade e o da moralidade? Tem-se um Estado de Direito quando governantes e governados, todos, sem excepção, estão de facto igualmente submetidos à Lei; e quando esta garante a todos os cidadãos certos direitos que, em última análise, não são direitos dos homens porque são cidadãos – mas direitos dos cidadãos porque são homens. Por conseguinte, tem-se um Estado de Direito quando há uma situação política em que os poderes públicos efectivamente protegem e defendem direitos humanos. E assim tem-se que o Estado não se desvia da Justiça.

Pode o leitor perguntar-se por que é que os direitos civis ou de cidadania não bastam, e hão de estar subordinados a direitos humanos. A razão é que os direitos cívicos são por si apenas de natureza social e política. O mero facto de conjunturalmente se conseguir uma situação política em que todos os cidadãos gozem de certos direitos e se encontram igualmente todos submetidos à Lei, não traz em si garantia nenhuma de que uma parte desses cidadãos, por qualquer motivo e por qualquer meio (mesmo por democrática maioria), não venha arbitrariamente a diminuir ou privar de direitos cívicos uma outra parte dos cidadãos. O compromisso com direitos humanos é a única garantia de que os cidadãos - qualquer que seja a sua condição natural ou social - têm certos direitos fundamentais enquanto seres humanos, que são direitos inalienáveis, isto é, de que nem os próprios nem ninguém os pode privar; e que são portanto universais, extensíveis a todos os indivíduos humanos, cidadãos nacionais, estrangeiros ou apátridas. É que, na sua essência, os direitos humanos não são de natureza meramente social e política – mas ontológica e ética. E assim temos segura aquela sobredita ligação entre a ordem legal e a ordem moral.

Para as sequentes considerações deste postal e do assunto em título, basta-me considerar um direito humano fundamental, aquele que é a condição da existência de todos os outros e que, por isso, pode considerar-se eminentemente fundamental: o direito à vida. E o complementar dever que tal direito imediatamente impõe à consciência moral: o de não matar, senão por necessidade de legítima defesa.

O Estado português acolheu este direito no art. 24º nº 1 da sua actual Constituição política ( “A vida humana é inviolável”) e, no nº seguinte do mesmo artigo, assumiu tal dever até a ponto de não matar judicialmente em caso algum (nº 2: “Em caso algum haverá pena de morte”).

Contra a maioria expressa nove anos antes, uma nova maioria, em novo referendo, aprovou faz hoje três anos a despenalização do acto de abortamento por mera “opção da mulher”. Com esta cobertura, uma maioria parlamentar, em 8 de Março seguinte, deu força de lei à decisão maioritária dos votantes em referendo. A essencial novidade, relativamente à lei de 11 de Maio de 84, está nessa mera “opção” da mulher grávida (maior de 16 anos, ou com o consentimento do seu representante legal, quando menor; ou apenas dos médicos, na ausência desse represententante; o progenitor, em caso nenhum é considerado). A permissibilidade jurídica do acto não é moralmente irrelevante, a não ser para quem desde logo assumisse a ruptura daquela ligação entre legalidade e moralidade. Por isso mesmo houve a preocupação prévia de saber se a despenalização não ofenderia algum direito fundamental constitucionalmente protegido. Ora, nunca por unanimidade e, duas vezes até, por maioria de um único voto, os sucessivos acórdãos do Tribunal Constitucional sobre o assunto, desde 1984 até 2006, têm dado vencimento à doutrina que, em síntese, se expressa neste trecho exemplar do acórdão 85/1985, várias vezes citado posteriormente:

« A vida intra-uterina compartilha da protecção que a Constituição confere à vida humana enquanto bem constitucionalmente protegido (isto é, valor constitucional objectivo), mas que não pode gozar da protecção constitucional do direito à vida – que só cabe a pessoas -, podendo portanto aquele ter de ceder, quando em conflito com direitos fundamentais ou outros valores constitucionalmente protegidos. » ( Neste “conflito”, como na mera “opção” não está em causa o direito à vida da mulher-mãe, evocam-se agora estes: a “autonomia”, o “direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, a “maternidade consciente”... )

Comentando esta posição doutrinária, contrapõe o jurista Mário Bigotte Chorão, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e sublinho eu: « Em suma, o Tribunal Constitucional optou por uma solução despersonalizadora do nascituro e da garantia da consequnte tutela penal; limitou-se a admitir a ideia vaga de um bem constucional objectivo, a vida intra-uterina, sem o encabeçar no seu titular (como se existisse vida em si sem um sujeito vivente) e sem o totar de efectivo amparo constitucional. É evidente que esta orientação rompe clamorosamente com as exigências de igualdade conaturais à relação jurídica como relação de justiça, fazendo prevalecer a lei do mais forte sobre o mais fraco. »

Só não é evidente para quem não vê ou não quer ver que não há vida humana (intra ou extra-uterina) que não seja sempre a de indivíduos humanos vivos, desde o primeiro até ao último momento da sua vida natural. E que, não vendo ou não querendo ver tal, adoptam ad hoc a teoria de que na vida intra-uterina há humanos que ainda não estariam “investidos” ( sic, como dizem os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, dois luminares propagandistas desta teoria ) da condição de “pessoas”; e decidem que é vida menos valiosa do que a dos sujeitos que já seriam “pessoas”. Pelos vistos, seriam “pessoas” depois das 10 semanas; já aqui ao lado, em Espanha, uma nova lei propõe 12 semanas, como na França; na Holanda são 13; na Roménia, 14; na Suécia só depois das 18, e nos EUA só a partir das 24 semanas...

Por seu lado, diz o juiz conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, um dos juizes que, no Tribunal Constitucional, têm votado vencidos contra a teoria da “investidura”:

« A protecção constitucional da vida humana, incluindo a vida intra-uterina, implica antes do mais para o Estado o dever de abster-se de condutas que representem agressões a esse bem ou valor jurídico fundamental. Mas implica também uma vertente ou dimensão positiva, que se traduz na obrigação para o Estado de adoptar procedimentos e tomar medidas que salvaguardem e promovam a possibilidade de cada homem viver a sua vida.... »


Se o leitor considerar o exposto na primeira parte deste postal e concordar comigo em que a vida de cada um de nós, neste mundo, necessariamente é vivida no tempo, com o tempo, desde o primeiro momento até ao último do seu ciclo natural, não vejo que racionalmente não convenhamos no seguinte. –

1. Se nem todos os seres humanos são iguais perante a Lei e não gozam de igual protecção desta (os humanos que, até às dez semanas de vida, não são “pessoas”);

2. E se a lei não garante um direito humano fundamental e universal;

3. Segue-se que está rompida a ligação entre legalidade jurídica e a legitimidade moral, e não há Estado de Direito.

Ainda mais, com as seguintes agravantes:

4. Se a base de todo o Direito é a garantia da protecção dos mais fracos relativamente aos mais fortes;

5. Se, pelo contrário, o que o Estado garante é o “direito” de, por mera opção, alguns indivíduos terminarem com a vida de outros seus semelhantes, totalmente incapazes de defesa;

6. Segue-se que o Estado não só não se “abstém de condutas que representam agressões a um bem ou valor jurídico fundamental”, como activamente faz “prevalecer a lei do mais forte sobre o mais fraco”.

Isto significa: Não só não temos hoje em Portugal um Estado de Direito, como o que temos é um Estado anti-Direito.

Foi a previsível eventualidade de cairmos nesta aberração legal e abjecção moral que me levou, em Janeiro de 2007, a intervir pela primeira vez neste blogue. Advertia eu na altura que esta agressão directa e brutal contra os mais fracos, desprevenidos, indefesos e inocentes dos humanos não é sem consequências para a qualidade da nossa vida social quotidiana.

Temos visto e veremos se a despersonalização de alguns não se irá tornando gradualmente na insensibilização e desumanização de muitos.

UM ESTRATAGEMA MORTÍFERO

O leitor reparou que o citado 24º nº 1 da nossa Constituição política diz categórica e universalmente – “A vida humana é inviolável” -, não diz “ A vida da pessoa humana é inviolável”. E logo como reforça esse sentido categórico estabelecendo no parágrafo imediato que “em caso algum” haverá pena de morte.

Mas aconteceu o seguinte. O art. 24 encontrava-se , no texto de 1976 da Constituição, sob o Título II, que dizia: “Direitos, liberdades e garantias.” Sucede que, na primeira revisão constitucional, aprovada em Agosto e publicada em 30 de Setembro de 1982 (Lei constitucional nº 1/82), o mesmo artigo encontra-se agora sob um “Cap. I”, do mesmo Título II, com esta redacção: “Direitos, liberdades e garantias pessoais”... Ora, como a fase embrionária da vida humana não é supostamente a vida de uma “pessoa”... [ É o que decreta o sr. juiz conselheiro Luís Nunes de Almeida, relator do acórdão 288/98 do Tribunal Constitucional, evocando descaradamente a “verdade” (!) : « a verdade é que o feto (ainda) não é uma pessoa, um homem » (sic). ]

Paralelamente, dava-se a concidência de um certo partido ter apresentado na Assembleia, em Fevereiro desse 1982, um primeiro projecto de despenalização do que era eufemisticamente chamado “interrupção voluntária da gravidez”, que viria por então a ser reprovado pela Assembleia, em Novembro; o mesmo partido insistiria com semelhante projecto na seguinte sessão legislativa, em Julho de 83; até que outro partido chamaria a si a iniciativa legislativa na sessão seguinte, em Fevereiro; que viria a ser aprovada em Maio de 1984.

O leitor interessado em aprofundar o estudo deste assunto ao nível do conhecimento médico-científico, da reflexão ética e do debate jurídico-constitucional português, tem aqui um extenso e informado subsídio:

http://www.box.net/shared/xcr599ze1q

Fica prevenido de que o documento defende uma perspectiva que subscrevo inteiramente. Com a única reserva de que não deixa claramente sublinhada a irrelevância da questão do ser ou não ser “pessoa” um indivíduo humano vivo, ponto que os sofistas defensores do abortismo têm pegado e explorado. Mas isso exigiria a investigação das condicionantes histórico-filosóficas do assunto no contexto da cultura ocidental, e dobrar a extensão do documento.

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

UMA EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE

« A educação para a liberdade deve começar por estabelecer factos e por enunciar juízos de valor, e deve ir ao ponto de criar técnicas apropriadas a realizar valores e ao combate daqueles que, por qualquer razão, escolhem a ignorância dos factos ou a negação dos valores. »

É com estas palavras que Aldous Huxley abre a penúltimo capítulo do seu livro Regresso ao Admirável Mundo Novo, que lembrei na passada semana. O capítulo tem o título do meu postal de hoje. Poucas páginas adiante do trecho em epígrafe, o autor explicita-nos quais são tais factos e qual a relação com quais valores. –

« O primeiro de todos será a liberdade individual, baseada nos factos da diversidade humana e da unicidade genética; o valor da caridade e da compaixão, baseado no velho facto familiar, recentemente redescoberto pela psiquiatria moderna – o facto de que, seja qual for a sua diversidade física ou mental – o amor é tão necessário aos seres humanos como a comida ou o abrigo; e finalmente o valor da inteligência, sem o qual o amor é impotente e a liberdade inacessível. »

Sem dúvida que é facto averiguado: cada indivíduo é geneticamente único, e mesmo os gémeos monozigóticos não são exactamente iguais, gene por gene, sim os mais semelhantes entre si. Mas, como relacionar este facto biológico com uma coisa de natureza diferente - um valor ético? E, mais ainda, relacioná-lo precisamente com o valor “liberdade” ? Não seriam tanto ou mais apropriados valores como “desigualdade” ou “singularidade” pessoal, por exemplos ? E os gémeos ou os clones (no Admirável Mundo Novo Huxley já previa a possibilidade da clonagem reprodutiva) seriam só por isso menos livres ou capazes de liberdade do que os outros ? A única explicação que me ocorre é que o autor está a pensar na base dum pressuposto que é a associação psicológica entre a diversidade dos indivíduos e a diversidade dos interesses, solicitando a diversidade de opções disponíveis a uma livre escolha ou livre-arbítrio: este estaria como assegurado na base daquela. Contudo, se, como o próprio autor reconhece, as pessoas actuais geneticamente diferentes podem (através das técnicas de propaganda e da manipulação do espírito) ser levadas a quererem todas mais ou menos o mesmo (reduzindo ou anulando o leque de opções), - também nada parece inviabilizar em princípio que indivíduos geneticamente o mais semelhantes pudessem querer (ou ser levados a querer) coisas muito diferentes. Para além de que me parece estar aqui implícita mais uma vez, neste como em tantos autores da tradição cultural anglo-americana, um entendimento estrito da liberdade como livre-arbítrio, típico do pragmatismo utilitarista; uma concepção estreita, ambígua e insuficiente, como procurarei mostrar em futuro postal.

Um outro pressuposto que, neste capítulo do livro de Huxley, aparece explicitamente assumido e criticamente reflectido, é o princípio de que o sujeito individual é mais real e valioso do que o ambiente social ou o grupo (diz ele: “um grupo não é um organismo, mas apenas uma cega organização inconsciente”…). Ora, este pressuposto, sim, é congruente com a valorização da unicidade genética. Mas, que esta singularidade biológica seja, por si só, condição suficiente para garantir o desenvolvimento e valorização de uma individualidade propriamente pessoal, - eis o que nem há cinquenta anos nem hoje é facto testado e confirmado. Pelo contrário, pelo que se sabe dos casos documentados das chamadas “crianças selvagens”, tudo indica que a relação social (o grupo, portanto) seja parte pelo menos tão necessária como a originária “unicidade genética”. É que, eticamente, parece que o axiologicamente valorizável não é o facto individual (podemos ter uma multidão de indivíduos seriados, uniformizados num conformismo unanimista: uma “massa” de gente desvairada ou indiferente), - mas sim a pessoalidade singular, consciente de si e responsável diante os outros: uma pessoa. E tudo indica que este “eu” ciente de si não se forma fora da relação interpessoal com um “outro”, num grupo. O conceito de pessoa é, pois, essencialmente relacional : relação a si-relação a outro.

Questão que importa aqui, e creio indispensável para uma uma bem sucedida “educação”, é a de saber se a relação eu-outro pode ser bem formada (vale dizer: formada no equânime e equilibrado respeito da irredutível singularidade individual de cada um ) apenas adentro do horizonte do “social”, duma sociedade meramente humana e estritamente dependente da relação com outros seres vivos e a ecologia terrestre. Se tal consciência subjectiva da pessoalidade não passa de epifenómeno da bioquímica dum cérebro complexo do primata evoluído, nenhuma garantia há que nos defenda da eventual regressão manipulada e aniquiladora, já que nenhum outro indivíduo primata manifesta qualquer sinal de um “eu” ou daquela apercepção pessoal. Mas, tanto quanto sei, é significativo que no indivíduo humano a identidade pode ser momentânea ou duradouramente lesada e até perdida (ou multiplicada em “heterónimas” personalidades múltiplas), mas a perda da consciência de si (e do outro, “fora” ou “dentro” de si) equivale pura e simplesmente à perda da consciência. Significativo não é probativo.

Do anterior decorre, parece-me, o seguinte. - Que uma genuína “educação para a liberdade” deve começar por ser o fazer caminho no orientado sentido de conduzir da mera individualidade animal à pessoalidade, afirmativa de si tanto como afirmadora de um outro, que é igualmente respeitável porquanto também pessoa ou capaz de se tornar tal. Eis o e-levado sentido duma e-ducação que, no mesmo acto da relação humana entre educador e educando, se começa a realizar pela arte da regrada tolerância e abertura simpática ao outro. Tal será, parece-me, o solo propício e disponível ao florescimento daqueles “amor”, “compaixão” e “caridade” de que fala Huxley. Duas marginais observações, a propósito: que essa tolerância não a refiro ao plano de qualquer psicologia dos “temperamentos” mas, sim, ponho-a antes ao nível dos imperativos éticos que decorrem do carácter da universal natureza pessoal da individualidade, no animal humano, portanto ao nível ontológico. Por outro lado, digo que tal tolerância pode tanto menos dificilmente frutificar em desejável liberdade quanto o educando for já por si mesmo capaz de procurar o educador que mais quer ou lhe convém, caso em que a autonomia do educando pode ser beneficiada tanto como beneficiar a do educador, aprendiz mais velho no caminho comum: recíproco serviço que se paga com a moeda da amizade, e outra nenhuma.

Disse “começar por ser o fazer caminho” e, no parágrafo anterior, já o levámos para horizontes muito marginais e distanciados da tutoria instrutora e mercantilista de o que hoje usa chamar-se “educação”, e não passa de um mero fragmento temporal duma funcional socialização, socialmente pecuniada a prossissionais assoldados, supostos especialistas: os “professores”. Gostaria, agora, em fim, de insistir no “deve começar”. É que parece haver aí também uma prioridade necessária, nesse acto educativo: não vejo deveras como é que, onde não há pessoa formada, possa certificar-se afirmada qualquer eventual liberdade, ainda que entendida só no usual sentido de mero livre-arbítrio: como o poder próprio de decidir-se o indivíduo - por si mesmo - por um alternativo curso de acção ou estado de coisas, disponíveis. É que, sem a pessoalidade, esta decisão não dá qualquer garantia, nem de ultrapassar o nível do interesse apenas individualizado, auto-referido, egotista, nem de este mesmo interesse não ser afinal senão efeito do interesse de uma “classe”, de um “Estado”, da “espécie” ou do “género” actuando e arrastando o indivíduo (que, portanto, não se poderia dizer livre, embora o presumisse). É toda a significativa diferença que vai do “por si” ao “por si mesmo”, com o poder próprio de quem assumiu a propriedade da sua identidade como pessoa. No entanto, esta posse de si, embora condição necessária, não é suficiente para a liberdade.

É o que veremos.

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

O DIÁRIO DE NOAGA

3 de Fevereiro

Na escola ensinam-nos que em muitos países na Europa. na Ameérica, na Rússia se torna mais fácil obter água. Mostraram-nos lindas fotografias.

Também o meu tio, que mora na cidade, tem água da torneira. Assim a vida torna-se mais fácil, não é?