quinta-feira, março 25, 2010

ALCIPE




ODE

Insónia em a noite de 8 de Outubro de 1824

Infeliz noite, só te não pareces,
De agitada, co’a morte soturna!
Morrer é nada; é mais o que padeço
Nesta noite funesta.

Que multidão de mágoas me percute,
Aterrada, a penosa fantasia!
Como a ígneos ferros me traça e marca
O quadro de meus males!...

Esposo, filhos, pais, irmãos que amava,
Que nunca mais verei, com que dureza
Mos dá a ver a corrupção voraz
No sepulcro fechados!...

Do parentesco os vínculos suaves,
Os laços formosos da amizade,
Em pedaços desfeitos, ou trocados
Pla indifr’ença fria!

O bando dos prazeres carinhosos,
Por acerbos pesares suplantado,
Expulsa-o de meus lares a tristeza,
A desdita o espanta.

Aplacai-vos, ó Fúrias, oh Saudades!
Já não cabeis no peito... Ou crescei tanto
Que se apague este sopro que alimenta
Minha infeliz vida!

Dos passados instantes mil imagens
Vêm funestar de novo o pensamento;
E a dor, que o tempo noutros aniquila,
Em mim se perpetua.

Se ao menos mais ditosa a Pátria visse!
Se as luzes, se as virtudes a adornassem!
Grata o suspiro extremo em paz soltara,
Os Céus o acolheriam.

Pátria! Nome sagrado! Com que fúria
Me persegue um cruel pressentimento...
Quão inúteis lições lhe deu a Sorte
-Terramotos, revoltas...


Sorveu a terra as torres, os palácios,
Sumiu a morte as gentes a milhares:
Desta lição tão cruel os preceitos
Anulou o descuido.

Das ideias erradas o fermento
Acresceu de lêvedos infortúnios:
Fomos Francos, Ingleses, só não fomos
Sensatos Portugueses.

Ah! Se não renascer co’a Pátria a glória,
Se Ciência e Justiça inda dormem,
Se a Moral não desperta, a Indústria acorda,
- Ao Nada caminhamos!





D. Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre (1750-1839), condessa de Oeynhausen e marquesa de Alorna, foi poeticamente crismada Alcipe por seu tutor na língua e literatura portuguesa e latina, Francisco Manuel de Nascimento, a que ela chamou Elísio, Filinto Elísio.

Vistos os apelidos, vejamos o certificado da nobreza da mulher. Está na seguinte carta escrita para seu pai, D. João de Almeida Portugal, preso nas masmorras da Junqueira às ordens de Pombal por espaço de dezoito anos, como sua mulher e filhas no convento de Chelas. À jovem Leonor, leitora e apreciadora dos mais avançados philosophes da época, escrevia-lhe o marquês que não se lhe dava nada de mandar Voltaire a torrar na Inquisição. E ela:

« Eu me lastimo dos seus erros, mas não posso deixar de confessar que me vieram lágrimas aos olhos quando vi que V. Exª dava sentença de queima. De que servem homens queimados, meu querido pai ? Porventura reconhecem eles a verdade na fogueira? Não é Deus que deve pôr termo aos nossos dias ? Se Deus sofre os homens miseráveis sobre a terra, que direitos têm os outros homens para os não sofrer? Eu conheço que V. Exª tem muita virtude e muito juízo para decidir bem, mas eu, que sou mulher, com o coração muito pequeno, quando se fala em matar, sempre me aflijo pelo sentenciado, seja quem for. Não está mais na minha mão. Deus terá piedade de minha fraqueza, se não é boa, em consequência do preceito de amar o próximi como a mim mesmo. Queira Deus que eu nisto não diga alguma tolice que desagrade a V. Exª, mas copiei meu sentimento pelo coração, e não sei fingi-lo. »

Bons tempos em que as filhas davam aos pais tratamento de Excelência com lições de muita virtude e juízo!

Depois do cerne, vejamos o estilo. –

« A prosa portuguesa, até então plasmada por oradores e cronistas, novelistas e poetas, preocupados sobretudo de efeitos oratórios ou brincos de engenho e, de qualquer modo, adstritos a moldes codificados na retórica, precisava de alguém que a aproximasse da linguagem falada, lhe desse o calor natural, a maleabilidade airosa, a graça espontânea da vida, de onde lhe resultasse aquele mínimo de à-vontade exigido pela expressão artística. As cartas de D. Leonor de Almeida realizam, sem modelos anteriores nem sugestões alheias, esse tipo de comunicação, naturalmente elegante. »

Quem o diz (com não menos elegância) é o editor moderno das cartas e outros inéditos, o professor Hernâni Cidade.

A vida atribulada de D. Leonor e do seu tempo, pediu-lhe muito mais do que a prosa portuguesa lhe pedia, mas não conseguiu secar a poesia e o amor da pátria na mulher que viveu e sobreviveu a terramotos de vária e desvairada natureza. A ode de 1824 dá conta dos infortúnios passados de uma e da outra. É este o poema aqui já referido por outro e prometido por mim.

Na nossa noite funesta, vamos sabendo que não são infortúnios passados.

Não se admire o caro leitor de termos em um verso dum obscuro poema mais que centenário o prognóstico exacto do que veio depois, quando os insensatos portugueses, invadidos por franceses e tutelados por ingleses, ensaiavam (com as intentonas de 1823 e Abril de 24) os primeiros episódios da guerra civil armada, cujos efeitos se replicaram até 1974-75: as últimas intervenções – 25 de Abril e 25 de Novembro, terminais – que tentaram resolver pela força armada questões do fundo da política - que são de ordem moral, cultural, existencial (vejam-se os antepenúltimo e penúltimo versos).

Não, não é de admirar, porque D. Leonor de Almeida, fibra de mulher de acção, de largo escopo político e cultural, foi mais empenhada e sofrida portuguesa que sofrível poeta. Com os setenta e quatro anos de idade que carregava nessa noite de insónia, tinha visto muito para trás e lucidez bastante para o por vir. E tal não é mais admirável que a prognose feita por outro não menos patriota, e melhor poeta, que lembrei aqui.

Quanto ao Nada, em que já estamos... - Muito tem que se lhe diga!...

quinta-feira, março 18, 2010

QUE FUTURO ?




« Portugal suporta uma crise, grave e duradoura, que é só sua e que só aos Portugueses compete resolver. Já desperdiçámos um tempo precioso e nada fizemos para atenuá-la, muito menos para superá-la.

Poderemos empobrecer lentamente até que da Europa só nos reste a geografia. Poderemos fingir que tudo está no bom caminho, mesmo quando sabemos que não está. Poderemos confiar nos acasos, com um optimismo que é apenas uma imensa irresponsabilidade. Uma coisa, porém, é certa: se não conseguirmos mudar o essencial da nossa sociedade, teremos o futuro comprometido.

A economia portuguesa regista uma década tão medíocre que só encontra paralelo próximo no fim da Monarquia e no princípio da República. Daqui emergem fenómenos sociais graves, desiquilíbrios financeiros perigosos, desmedidos endividamento público e externo. Chegámos à beira do precipício e, se dermos um passo em falso e tardarmos na reacção, ninguém evitará um enorme sobressalto. »

Tais são as primeiras palavras dum livro co-autorado por Henrique Medina Carreira, ex-ministro das Finanças, e Eduardo Dâmaso, jornalista. Publicado em Setembro do ano passado, titula-se Portugal: Que Futuro?, e tem como subtítulo – O Tempo das Mudanças Inadiáveis. Consta de uma longa entrevista escrita, precedida de uma Introdução, por Medina Carreira, e de um Posfácio, escrito pelo jornalista. A entrevista ocupa oito capítulos da obra, dos quais cinco dedicados a matéria económico-financeira; um dedicado ao sistema político vigente e sua eventual evolução; outro à Educação, e o último à situação da Justiça.

O dr. Medina Carreira sabe do que fala, e não cala. Diante a acutilância e clareza das suas intervenções públicas na rádio, televisão e jornais, os fruidores da actual situação em que vamos sobrevivendo, têm-lhe cominado a atoarda de “pessimista”: mas não desmentiram um único número das estatísticas que ele apresenta, nem avaliaram criticamente nenhuma das soluções que preconiza. Umas e outras, as essenciais, estão neste livro.O leitor interessado e preocupado com o seu presente e próximo futuro de seus filhos e netos em Portugal (se não se resigna a vê-los condenados à emigração), tem aqui uma obra imperdível de conhecer e meditar.

Medina Carreira considera que, se o nosso problema mais imediato e urgente é a economia, o seu remédio tem de ser procurado na política. Mas também sabe que « o nosso país está a suportar a acção de um sistema político-partidário fechado sobre si mesmo, com reduzida qualidade, intencionalmente “armadilhado” na criação dos requisitos para a sua sobrevivência e, até agora, sem qualquer capacidade para promover a sua requalificação. » Até agora... E no futuro, que urge? « Como devem os principais partidos e as suas elites dirigentes mudar este estado de coisas ?» Tal era o mesmo problema que a profª Teixeira Pequito encarou na sua tese, que lembrámos outro dia. O presente autor começa por apelar a um elementar princípio-dever de cidadania: « Desde logo e sempre, tendo presente que a sua [dos partidos] decisiva função consiste na promoção do desenvolvimento e do bem-estar de todos e não na satisfação dos interesses dos seus “aparelhos”. » No cap. VI o leitor encontrará propostas mais concretas para uma reforma do sistema, mas não é por acaso que o autor começa por evocar esse princípio de elementar cidadania. Como ficou dito, o sistema político vigente da partidocracia está “armadilhado” de maneira a não consentir substancial modificação nenhuma não autorizada pelos partidos, que monopolizam a representação política da soberania popular. ( Com duas excepções controláveis e controladas: o instituto do referendo e a presidência da República. ) Por isso o leitor verá que as soluções propostas por Medina Carreira supõem duas condicionantes (in)viabilizadoras em alternativa: o consentimento (improvável) dos partidos numa revisão constitucional desvantajosa para eles; ou um golpe de estado constitucional.

Mas há outras condicionantes, tão mais pesadas que podemos considerar determinantes. - Numa esplêndida síntese do mesmo quadro sombrio desenvolvido no livro em apreço, por seu lado o prof. do ISEG Trigo Pereira (já citado aqui, e a quem devemos um livro de análise minuciosa e propostas de reforma da nossa lei eleitoral), em artigo de 18 de Dezembro passado num jornal diário, falava de « incapacidade política de perceber a gravidade desses problemas [económico-financeiros] e de lhes dar uma solução ». Eu digo que a incapacidade não estará tanto no “perceber”: na nossa comparsaria política há menos estúpidos que exploradores indiferentes e oportunistas. Aproveitam a situação e tratam da vidinha deles. A ênfase deve pôr-se no verbo dar, na vontade e capacidade de resolver. A discreta visita que nos fizeram no passado Dezembro uns peritos do FMI, é mais um sinal dessa duvidosa capacidade.

Mas a incapacidade de conceber e a incompetência de acertar nas soluções nem seriam o pior mal, se não tivéssemos uma sociedade civil completamente desvitalizada e dependente: os dois terços de portugueses que dependem directa ou indirectamente dos salários, subvenções, compensações e pensões do Estado. Mas a anemia e dependência dos dirigidos e a persistente impotência dos pseudo-dirigentes resultam duma abdicação e submissão mais fundas e menos patentes: a dos partidos do sistema constitucional legal a outros “partidos” da rede constituída do sistema informal de grupos de interesses (nacionais e internacionais, de diversa origem e natureza), que capturou e controla os (principais) partidos públicos e legais. E, como o sistema dos partidos se confunde com e reduziu a si o Estado, de aí resulta que a Rede é o centro (um policentro) efectivo do poder na actual situação política portuguesa. Veja-se o que dizia há poucas semanas ( a 19 de Janeiro, num jornal semanário) o juíz e ex-director da Polícia Judiciária, José Marques Vidal:

« Neste momento os que se preocupam com o poleiro são a fachada do poder. O poder é hoje uma mistura bastante complexa. Há esta fachada que é formada pelos políticos. Mas depois existe, no miolo, uma mescla de empresas, cartéis, que comandam os políticos. Hoje, parte do poder económico vem de organizações criminosas. O dinheiro sujo movimenta quantidades impressionantes. Mais que os orçamentos de alguns Estados. »

Muito mais, sem dúvida: calcula-se em 20 % - vinte por cento - do Produto Mundial o peso económico da economia paralela das off-shores e do “dinheiro sujo”. A imposição de interesses particulares, legais ou ilegais, a políticos sem condições de proteger e sobrepor o interesse colectivo, não é nada que o dr. Medina Carreira desconheça. Leia-se, a propósito, este trecho em que nos relata certo momento da sua experiência pessoal de intervenção directa na vida política
( a ênfase é minha) :

« (...) A realidade consolidada depois disso é esta: os pequenos patrimónios têm bens imóveis e pouco mais, tributados em IMI [Imposto Municipal sobre Imóveis] e IST [Imposto sobre Transacções] ; os grandes patrimónios são integrados quase exclusivamente por riqueza mobiliária – títulos de variadas espécies – que fogem facilmente a qualquer tributação patrimonial. (…) A questão da tributação das grandes fortunas é, pois, não só um problema político como, sobretudo, de uma grande dificuldade técnica.

Os governos hesitam muito perante o risco da fácil expatriação da riqueza mobiliária – os títulos -, pelos inconvenientes económicos internos que isso pode representar. Mas, além dessa, resta o obstáculo técnico, para o qual só encontro uma solução, nas circunstâncias actuais: a da tributação dos títulos na entidade emitente dos mesmos, sem cuidar de quem são em cada momento.

Exemplificando: o accionista de um banco suportaria, directa ou indirectamente, o imposto patrimonial porque seria o próprio banco a pagá-lo ao Estado, em sua representação, aplicando uma taxa proporcional sobre o respectivo valor tributável.

Há uma proposta nesse sentido, apresentada em 1999, na sequência do convite que, para o efeito, me dirigiram em 1997 António Guterres e Sousa Franco, respectivamente chefe do Governo e ministro das Finanças. A proposta de tributação do mobiliário, de 1999, começou muito cedo a incomodar os grandes accionistas, porque perceberam ser impossível a fuga com os mecanismos gizados. Com esse sistema pagariam fatalmente, pois ele não consentiria quaisquer “habilidades”. Contra a proposta de 1999 moveram-se, desde muito cedo, creio que junto de António Guterres, influências destinadas a “sabotá-la”; como usualmente, este acabou por “encolher-se” e foi incapaz de honrar os compromissos que tinha assumido.

Nunca houve, à volta disto, uma informação séria, pelo que nada ficou esclarecido; nunca se percebeu, minimamente o que estava em causa.

A verdade foi apenas essa. Por isso, temos hoje uma solução em que os pouco abonados pagam sempre IMI e IST sobre imóveis; e os ricos nada pagam, a título de transacção patrimonial, pelas suas carteiras de títulos. »

E agora confira-se com este correspondente passo do Posfácio escrito pelo jornalista Eduardo Dâmaso:

« Há muito tempo que se tornou evidente que o país não é governado à medida dos seus poderes legítimos, mas de um conjunto de interesses com enorme capacidade de manipulação política. »

Tal é o nosso problema, que aliás não é só português. E se é necessária e prioritariamente político, parece-me que estou a ouvir algum prezado leitor a ecoar-me aqui no Tonel que – à esquerda do centrão político que nos plantou de cepa torta no pântano – , há alternativas que estes analistas preocupados com a diagnose e prognose da nossa situação actual desdenham considerar. A observação é bem achada, e bem merece outro postal, se me sobrar paciência para o assunto e não me tolher o escrúpulo de desiludir expectitivas caras a algum leitor. Antes, contudo, terá aqui no próximo a resposta directa à pergunta em título deste.

quinta-feira, março 11, 2010

ELEGIA DO AMOR


Lembras-te, meu amor, das tardes outonais
Em que íamos os dois, sozinhos, a passear,
Para fora do povo alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse ouvir-nos a conversar ?
Tu levavas na mão um lírio enamorado
E davas-me o teu braço; e eu, triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti... E, além, o sol doirado
Morria, conhecendo a noite que deixava.
Harmonias astrais beijavam teus ouvidos;
Um crepúsculo terno e doce diluía,
Na sombra, teu perfil e os montes doloridos...
Ecoavam, pelo Azul, canções do fim do dia;
Canções que, de tão longe, o vento vagabundo
Trazia, na memória... Como quem partiu
Em frágil caravela, e andou por todo o mundo,
Traz, no seu coração, a imagem do que viu.
Olhavas para mim, às vezes distraída,
Como quem olha o mar, à tarde, dos rochedos...
E eu ficava a sonhar, qual névoa adormecida,
Quando o vento também dorme nos arvoredos.
Olhavas para mim, triste, e ainda escuto
A música ideal do teu olhar primeiro!
Ouço bem tua voz, vejo melhor teu rosto
No silêncio sem fim, na escuridão completa!
Ouço-te em minha dor, ouço-te em meu desgosto,
E na minha esperança eterna de poeta!
O sol morria, ao longe, e a sombra da tristeza
Velava, com amor, nossas doridas frontes.
Hora em que a flor medita, e a pedra chora e reza,
E abrumam de mágoa as cristalinas fontes;
Hora santa e perfeita, em que íamos, sozinhos,
Felizes, através da aldeia muda e calma,
Mãos dadas, a sonhar, ao longo dos caminhos...
Tudo em volta de nós tomava vulto de alma,
Tudo um alto sentido de amor, piedade:
A folha que tombava era alma que subia...
Sob os nossos pés a terra era saudade,
A pedra comoção, e o pó melancolia.

(....)

A noite que escurece os vales e os outeiros
E que acende num bosque a voz do rouxinol,
E a estrela que protege e guia os pegureiros,
A lágrima do céu ao ver morrer o sol,
Acordam, no meu peito, infinda, etérea dor,
Que à memória me traz a luz do teu olhar...
Tudo de ti me fala, ó meu longínquo amor,
E vejo, em toda a luz, teus olhos a fulgir.
Como adivinho, em tudo, a alma que perdi!
Não encontro uma flor sem o teu nome ouvir,
Não posso olhar o céu sem me lembrar de ti!
Por isso eu amo o pobre, o triste e a Natureza,
a Mãe da humana dor, da dor de Deus a filha.
Meu coração, ao pé dum pobrezinho, reza;
Canta ao lado dum ninho, ao pé da estrela brilha.
O meu amor por ti, meu bem, minha saudade,
Ampliou-se até Deus, os astros alcançou;
Beijo o rochedo e a flor, a noite e a claridade:
São estes, sobre o mundo, os beijos que te dou.
Descubro-te, mulher, na Natureza inteira,
Porque entendo a floresta, a névoa, o céu doirado;
A estrela a arder, no Azul, a lenha na lareira,
O lírio à lama invernal atirado.
Falas comigo, sim, da dor, do bem, de Deus...
Repartes o meu pão, amor, pelos ceguinhos...
E pelas solidões os pobres versos meus,
Como os pobres que vão, a orar, pelos caminhos.
És a minha ternura, a minha piedade,
Pois tudo se me acende no peito e me comove!
Por isso eu vivo sempre em doce companhia,
Com o pobre que pede e a estrela que fulgura;
E assim a minha alma igual à luz do dia
Derrama-se, no céu, em ondas de ternura:
Sou como a chuva e o vento, e a sombra duma cruz;
Uma lira, que a mais leve brisa faz tocar...
Água, que ao luar brando em nuvens se traduz,
Fruto que amadurece à luz dum claro olhar...
Pedra que um beijo funde, e místico vapor
Que um hálito condensa em pura gota de água;
Sou aroma que um ai encarna em triste flor,
Riso que muda em choro a mais pequena mágoa;
Vivo a vida infinita, eterna, esplendorosa,
Sou neblina, sou ave, estrela, Azul sem fim...
Só porque um dia, tu, mulher misteriosa,
Por acaso, talvez, olhaste para mim.


Teixeira de Pascoaes



[ Excertos das duas partes da Elegia do Amor, do livro Luz Etérea (1906). Composição feita sobre a edição de Jacinto do Prado Coelho e outra, em separata (1924), por Guilherme de Faria e D. Manuel de Castro. Animado pela liberdade formal com que o Poeta tratou o metro elegíaco, nesta e nas outras suas Elegias (1912), atrevi-me a converter os hexassílabos do original em alexandrinos, para não sair aqui uma tira muito estirada. ]

segunda-feira, março 08, 2010

O DIÁRIO DE NOAGA


8 de Março
Já há muito tempo que não nos juntávamos para nos divertirmos com os nossos brinquedos. Há numerosas tarefas para cumprir em família. Felizmente, hoje é dia de festa!

quinta-feira, março 04, 2010

DIFÍCIL LIBERDADE

Imagine o caro leitor que na hiperabundância do hipermercado em que entrou não existia, entre tantos e tão diversos, aquele artigo que decidira adquirir; e supunhamos que só esse artigo que procurava, e nenhum outro do mesmo género, é unicamente o que lhe interessa. Nestas condições, a multiplicidade e diversidade dos artigos disponíveis é irrelevante para a satisfação da vontade. Em contrapartida, tivesse o hipermercado sido despojado de todos os artigos menos um – esse que era do seu interesse -, com satisfazer o valor da aquisição dele tinha realizado essa vontade. E, se a liberdade é alguém poder realizar o que quer, o leitor podia dizer-se livre.

As lições de senso comum que esta comezinha situação sugere ao bom senso não são poucas nem de menor consequência. Logo à partida, afunda-se aquele sofisma da propaganda que confunde ou reduz o livre-arbítrio à oferta de muitos e diversos objectos disponíveis. Um único basta, se é o que o sujeito quer. O livre-arbítrio está do lado da vontade, que quer ou não quer – mesmo contra ou apesar do seu interesse mais imediato -, não do lado das coisas, muitas ou poucas. (Aplicando à vida política, de que temos falado: o pluralismo partidário torna-se irrelevante ou até oposto à liberdade cívica, se nenhum dos vários partidos interessa aos eleitores. Disto, é óbvio, não há-de inferir-se imediatamente que um só partido seria bastante: em sociedades alargadas e complexas de tantos e tão diversos interesses, unicidade e unanimismo só poderiam ser artifícios forçados. ) Mas também outra confusão usual cumpre discernir – entre desejar e querer -, como já advertimos aqui.

Há a considerar mais o seguinte. – Se o interesse do agente está ligado a um objecto qualquer (coisa, pessoa, acção ou situação) exterior a si, ou seja um único ou mais do que um objecto, a sua vontade fica, por esse facto, dependente da existência e acessibilidade de tal objecto; e, portanto, será a priori menos livre do que a vontade solta de tal dependência. Foi a lição que, segundo o conto, deu certa criança ao nosso filósofo, quando a viu levar a água da ribeira na concha da mão à boca. E Diógenes tirou do bornal a escudela que usava e deitou-a fora: quem era capaz de dormir num tonel, também não precisava de mais que as mãos para comer e beber. Estamos, com efeito, a falar da celebrada autarkeia ou auto-suficiência, tão prezada pelos velhos filósofos, cuidadosos de cultivarem e conservarem a vontade livre o mais possível de constrições exteriores a si própria.

Para o que segue, julgo necessário e oportuno relembrar o complexo de factores que parecem implicados no acto da vontade ou intencional: motivações; finalidade; deliberação; decisão; como também, do lado comportamental, a aplicação da decisão aos meios disponíveis; o resultado; as consequências.

Pode dizer-se livre a decisão da vontade de um indivíduo, nestes termos: é a que mais lhe convém ou interessa sendo ele quem é; e estes termos vão no sentido de se determinar por si própria (autonomia/autodeterminação) numa resolução determinada (decidida) a empregar os meios para os resultados adequados ao fim que se propôs; mas também no assumir as consequências por que pode razoavelmente ser responsabilizado quem é autor dos seus actos. Nestes termos, salta à evidência a importância da deliberação na formação da vontade livre: como discernimento da motivação que se identifica com o melhor interesse do agente, mas também na provisão dos meios mais aptos ao resultado intencionado e na previdência das consequências possíveis. Noutros termos: a importância do velho preceito - Conhece-te a ti próprio -, porque se o indivíduo não se conhece bem, não pode bem julgar (deliberar) o que firmemente quer ou não quer.

Em suma, sistematizando estes aspectos que me parecem fundadores duma liberdade possível e, consequentemente, fundamentais numa educação para ela:

(1) Poder um indivíduo conhecer-se a ponto de saber o que melhor lhe convém, sendo ele quem é. (Autognose)
(2) O poder de resolver-se por si próprio, determinado e levado ao fim que se propôs. (Autonomia)
(3) O poder por si próprio dispor e empregar os meios para obter (ou corrigir) resultados em conformidade com os fins que se propôs. (Autarquia)

O leitor sabe ou pressente que a simplicidade destes esquematismos encobre mal a enorme complexidade dos problemas envolvidos na velha questão da existência real de liberdade nos humanos, a começar nas primárias causas motivadoras sobre as quais o agente delibera: causas que transcendem o controlo do sujeito; ou que lhe não são conscientes; ou que a consciência auto-iludida mistifica, tomando como suas próprias causas de facto induzidas pela sociedade (os “interesses de classe”...) ou pela sugestão das propagandas. O que tudo está ligado à não menos momentosa questão de conhecer-se cada um tão bem que possa garantir (sem margem para dúvida razoável) qual seja a sua verdeira vontade, tantas vezes pouco ou nada transparente a nós próprios (os problemas da “vocação”, da orientação escolar ou profissional, do casamento, etc.). Até à insuprível falta de meios ou à insuperável incompetência ou inabilidade de os empregar em conformidade com os fins em vista. Para não falar na velha “falta de força” de vontade, radicada em défices motivacionais (ou contrárias motivações) que o sujeito (uma vez mais) não conhece nem controla, ou não acha em si ou fora de si os meios de reforçar.

A lição a tirar é que a liberdade (se realmente possível) é uma luta: pelo conhecimento de si e dos precisos meios para a realização de o que o agente quer, depurando, corrigindo, superando ou rejeitando défices e contrários impedimentos. E como a acção dos agentes humanos é neste mundo necessariamente desenvolvida no tempo, teríamos este corolário: a liberdade (se possível) efectiva-se existencialmente como acto de progressivo desprendimento de condicionamentos de circunstância, interiores ou exteriores ao sujeito, que o sobredeterminem.
( O grande filósofo Kant acrescentaria uma outra qualificação, incómoda aos facilitismos de amoralistas ou relativistas morais: conhecer-se a si e aos precisos meios para se realizar o que se quer - tanto como o que se deve querer, enquanto membro duma comunidade de seres racionais. )

Mas, será tal libertação possível? Aparentemente. E eu alegaria dois casos empíricos que me parecem bem expressivos e relevantes (não digo concludentes, que não creio, com o mesmo Kant, a liberdade como empiricamente demonstrável), porque colocam o agente humano em confronto com forças ou “leis” da natureza as mais fortes. – A força da gravidade amarra-nos à Terra, e a nossa estrutura biomorfológica não nos dá os meios de nos elevarmos muito acima do chão e voar. Mas desde remotos tempos a humanidade teve esse “sonho”, esse “ideal”; aliás tão universalmente difundido como as práticas religiosas, com algumas das quais ( significativamente ) procurávamos elevarmo-nos “em espírito” e chegar aos “céus” e aos “seres celestes”. Ora, com o tempo e o engenho, encontrámos os meios de efectivamente elevar o corpo bem acima da Terra, voar, e levámo-lo... até à Lua. – O segundo caso confronta as poderosas motivações da fome e da sede, capazes de nos fazerem beber urina e sangue, ou de comermos a carne doutros humanos mortos, mesmo familiares queridos (como no séc. XX europeu, no cerco de Leninegrado). Pois a “greve de fome”, levada até à morte, afirma a existência nos humanos de intencionalmente assumidas motivações ainda mais fortes e capazes de superarem essas fortíssimas motivações da natureza biológica.

Como é evidente no caso do voo e aviação, a liberdade precisa de tempo, até multimilenarmente orientado, e é de facto um processo de progressiva libertação. Mas, dá-se nos indivíduos o mesmo que parece ocorrer na história colectiva ? Se pode sustentar-se isso até à plena maturidade pessoal, quem diria o mesmo vendo-nos amarrados pela trombose à cama dum hospital, ou menorizados e inscientes velhos submetidos num “lar” à tutela aniquiladora dos srs. Parkinson e Alzheimer? Precisamos de tempo, mas o que o tempo dá à mão do adulto, a do velho deixa cair e o tempo leva. Apesar de tudo, se vencemos a gravidade, a fome e a sede, por que não havemos de vencer o tempo ? Estamos determinados (ou somos determinados...), nem que para isso seja preciso remexer e recompor de alta a baixo o genoma humano... Eis aqui o que parece estar significado no processo da, real ou ideal, libertação humana: corremos no tempo... – para subir além do espaço e do tempo.


[ Vá este postal em respeitosa homenagem ao operário Orlando Zapata, que levou uma greve de fome de oitenta e seis dias até à morte nas prisões cubanas, em finais de Fevereiro passado. Quando morreu, estava o ex-operário Lula da Silva conversando diplomaticamente em Havana com o fidel clone Castro, amarrado à força das “razões de Estado”...

O leitor não esqueça que a “greve de fome” modernamente motivada por motivos ético-políticos de denúncia ou protesto, tem ainda hoje, como antigamente, outros motivos – religiosos -, e chama-se “jejum”. Nos tempos medievais, alguns dos ordenados perfeitos, na heresia do Catarismo, isolavam-se e deixavam-se morrer de fome: uma acto que, na língua occitana, chamavam endura. ]