sexta-feira, abril 30, 2010

INALIENÁVEIS DIREITOS HUMANOS

« Sustentamos como verdades de si evidentes que todos os homens são criaturas iguais; que a todos eles dotou o Criador de certos direitos inalienáveis (unalienable Rights), entre os quais o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade. »

Assim escrevia Thomas Jefferson em Julho de 1776 na Declaração de Independência dos 13 estados norte-americanos que a subscreveram. No anterior mês de Junho a Declaração de Direitos do Estado da Virgínia já falara em direitos inerentes (inherent Rights). Enfatizei as palavras que respondem a uma velha voz que começara a fazer-se ouvir já no clássico séc.V grego:

«... Pois somos por natureza iguais em tudo, tanto os Bárbaros como os Helenos. »

Isto dizia o retor ateniense Antifonte, no mesmo século em que outro sofista, Alcidamante, discípulo do mais conhecido Górgias, teria dito a extraordinária frase que um comentador de Aristóteles registou:

« Deus criou todos livres; a natureza não fez ninguém escravo. »

Antifonte e Alcidamante tocavam no mesmo diapasão por que ficaram e são inda hoje reconhecidos esses e outros coreutas do movimento da Sofística: uma diferença essencial, até à conjuntural oposição polémica, entre a natureza (physis) e as normas/convenções (nomos) da existêncial social e política humana.

Mas teriam de vir ainda alguns séculos e as contribuições decisivas do cinicismo e do estoicismo, para outra extraordinária voz se fazer ouvir: a de um judeu da Cilícia, perseguidor de cristãos e subitamente convertido ao Cristianismo, Paulo de Tarso:

« Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Jesus Cristo. »

Temos aqui as duas fontes –greco-latina e hebraico-cristã – cujas misturadas águas fizeram germinar na Terra a árvore que mil novecentos e quarenta e oito anos depois frutificou na Declaração Universal dos Direitos Humanos. No primeiro dos Considerandos com que abre esta Declaração encontramos o termo usado por Jefferson:

« Considerando que o reconhecimento da dignidade intrínseca a todos os membros da família humana e o da igualdade e inalienabilidade dos seus direitos são o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.... »

E por isso que são direitos inalienáveis, o último Artigo (Artigo 30) tem o cuidado de estabelecer:

« Nenhuma disposição da presente Declaração pode interpretar-se como se conferisse algum direito ao Estado, a um grupo ou a uma pessoa para empreender e exercer actividades ou realizar actos tendentes à supressão de qualquer dos direitos e liberdades proclamados nesta Declaração. »

Isto é racional e razoável: não é concebível invocar-se um qualquer direito humano para suprimir direitos humanos. E por isso que não é racionalmente legítima nenhuma disposição, objectiva ou subjectiva, moral, legal, social ou psicológica tendente à eliminação deles, - é (ou era...) doutrina consensual dos juristas a consideração dos “Direitos Fundamentais” como direitos “indisponíveis”. Podem ser legalmente ignorados, limitados, suspensos, proporcionados, mas não suprimíveis. Porque são inalienáveis. E por que não são alienáveis ? Respondia Antifonte 2 500 anos antes: porque somos assim por natureza. E, 2 500 anos depois, o Artigo 1º da Declaração: « Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.... »
( Ecoando a Declaração dos Direitos francesa de 1789: « Artigo 2º. Os homens nascem livres e iguais em direitos.... » )

Implica-se aqui o que na síntese tomista medieval foi contemplado e definitivamente fixado com as expressões “Direito Natural” e “Lei Natural”. Trata-se, como é de ver, não de nascimento e natureza biológicos (nascemos carentes, dependentes, desiguais), mas de uma natureza moral e do valor - da dignidade - desta. Por isso apela-se no Preâmbulo da Declaração ao “ensino” e à “educação” para o “reconhecimento e aplicação universais e efectivos” dos Direitos Humanos.

Portanto, se são inalienáveis, como é que podem ser "renunciáveis"? Ora têm aparecido alguns juristas aos quais isso parece não só concebível como justificável. E tal concepção divulga-se já em livros de “Bioética”:

« Uma vez que o interesse sujacente ao reconhecimento do direito à vida é essencialmente pessoal, parece-nos que não é de excluir a possibilidade de renúncia, ainda que se trate de renúncia à titularidade do direito. Ao contrário do que entende alguma doutrina, não nos parece evidente que o direito à vida é indisponível. »

Isto diz a professora de Direito na Universidade do Minho Benedita MacCrorie, no seu ensaio “A Doutrina da Renúncia a Direitos Fundamentais: os Casos da Eutanásia e da Colheita de Órgãos em Vida”, integrado na colectânea Pessoas Transparentes. Questões Actuais de Bioética, há poucas semanas publicada em Coimbra. Então haverá deveras um legítimo “interesse essencialmente pessoal” para “renunciar” a Direitos que são inalienáveis e que pareciam do essencial interesse de todas e cada uma das pessoas humanas?

Tentaremos nós ver melhor o que já não parece evidente à senhora professora.

quinta-feira, abril 29, 2010

A Single Man

A Single Man é claramente um dos filmes mais belos e tocantes que vi nos últimos anos. A fotografia é impressionante, a banda sonora lindíssima e interpretação de Colin Firth, de qualidade superior. A forma de abordar questões como o amor, a memória, o envelhecimento e o "sentido da vida" recordam-nos filmes de Visconti como Morte em Veneza e O Leopardo. Mas é na reflexão, quase proustiana, sobre como os momentos do passado nos constroem e dão sentido às nossas vidas que o filme atinge o seu auge.


domingo, abril 25, 2010

Onde perdemos nós Abril?


Gosto de usar o nome do mês de Abril - simplesmente a palavra"Abril" - para me referir à Revolução dos Cravos e ao Portugal que dela emergiu. Não sou o único a fazê-lo, mas para mim a associação entre o mês em que a Primavera ganha força e a ideia de que Portugal pode regenerar-se é uma espécie de casamento poético que me diz muito. A data e o que ela representa continuam a ter um profundo significado e continuam a ser um mote de esperança.

Contudo, este não é o Abril que eu sonhava. Se nos dias que se seguiram à revolução se acreditou que tudo era possível e que o Homem Novo seria mais solidário, menos materialista, menos individualista, este mês de Abril tem sido, ano após ano, uma manhã de nevoeiro em que a transformação social não se opera e em que a mentalidade dos homens não muda. Se houve um Portugal de Abril, no ano de 74, parece que esse é um país imaginário e idealizado, com outra gente e outros costumes. Ao ver documentários e ao ler testemunhos sobre os anos quentes do PREC, fica-nos a impressão (provavelmente errada) que dominava um outro espírito, uma outra crença, entre as pessoas. E essa gente parecia ser outra. Mas, estranhamente, foi esse mesmo povo português aquele que agora revela o seu fascínio pelo consumismo, o seu vazio intelectual, o seu burguesismo, a sua falta de civismo e de consideração pelo outros, o seu egoísmo.

Onde, neste percurso de trinta e seis anos, perdemos nós Abril?

quarta-feira, abril 21, 2010

DIFERENÇAS DE CLASSES

Houve e ainda há quem pense ser uma diferença essencial entre as pessoas humanas o pertencerem a uma ou outra classe social; a ponto de tal diferença explicar a parte existencialmente mais relevante do devir histórico da humanidade. E seria aliás uma diferença correlativa destoutra: pessoas que teriam uma “consciência de classe” e as que a não teriam. Ou, ainda outra: uma consciência de classe “revolucionária” ou “reaccionária”, relativamente ao sentido daquele acreditado devir histórico da humanidade.

Mas, suponha-se que os genes dos indivíduos, para além do fenótipo biológico característico da espécie, são a causa de alguns indivíduos manifestarem desde cedo certas notáveis (e notadas) disposições e capacidades (ou “talentos”) dirigidos para qualquer actividade (e. g., actividade artística), que outros não manifestam para nada em especial. Isto é de universal e sempre reiterado senso comum. Ora, terem uns desde cedo manifesta aptidão ou inclinação para isto ou aquilo, e outros nenhuma em especial, - parece que nos dá outra e não menos relevante diferença entre as pessoas. E eis uma terceiro tipo de diferença que, essencial ou não, tenho para mim como muito significativa: entre os que acreditam numa (qualquer) forma de existência depois da morte, e os que não crêem tal. Permita-me o caro leitor umas poucas palavras sobre o quanto me parece significativa.

Suponhamos que – na verdade – não haveria nenhuma espécie de sobrevivência pessoal, sob qualquer forma concebível ou não por nós: nenhuma consciência, nenhuma experiência possíveis. Portanto, ficaríamos apenas com uma existência, ante mortem, esta vida, a única. Pensemos agora em um indivíduo que nasceu com especiais predisposição, talento ou vocação para a criação artística; e tão fortes que esse tal abdicou de viver para os outros valores (casar, ter filhos, uma carreira profissional, etc.) a que se dedicam e bastam aos normais indivíduos sem nenhuma especial vocação. Pensemos, por exemplo, no caso do nosso Fernando Pessoa. Ponho agora a questão: que objectiva e suficiente razão teria Pessoa para considerar os valores da Arte – os seus -, preferíveis ou superiores ou melhores que quaisquer outros, nomeadamente os preferidos e cultivados pelos indivíduos comuns, os "Esteves da Tabacaria"? Eu não vejo uma única. E porquê? Porque, no fim (no “fim de contas”), para Pessoa os papéis que deixou no baú, para as outras pessoas os papéis que deixaram no banco... – têm para todos o mesmo igual, terminante e definitivo fim (termo temporal). E, deste ponto de vista objectivo e universal – independente dos variáveis fins que se ficcionam para si os vários indivíduos ou grupos –, também parece claro que teriam o mesmo fim (finalidade última) – o mesmo igual valor. (O argumento é, evidentemente, extensível aos herdeiros hábeis e pressurosos nas herdanças: neste caso, o mesmo fim coincidiria com a última geração de herdeiros e da espécie humana. Mas o certo é que, para todos os testamenteiros, isto é irrelevante: a “fama” das suas obras e feitos, se a conheceram, ou o anonimato, tudo desaparece com a extinção definitiva desses doadores.)

Portanto, o valor da dedicação exclusiva e sacrificada à sua obra seria precisamente equivalente ao valor da dedicação dos outros ao seu dinheiro ou a qualquer outra coisa. Mais ainda, e este ponto é de importância decisiva: não se vê razão nenhuma para sequer falar em valores. Onde as mais díspares coisas valessem todas o mesmo, ou todas valessem nada... – qual a diferença? Sucederia apenas que cada um teria os seus motivos e preferências, mais ou menos geneticamente, mais ou menos socialmente condicionados (ou determinados) pelos padrões de cultura vigentes e pelas circunstâncias da existência de cada qual.

O leitor já previu aonde chegamos. – Se não há uma razão objectiva, universal, absoluta (incondicionada) e final para o que é bom, que sentido para X em vez de Y ? A resposta ficou lapidada com lapidar sucintez e secura na inscrição dum sarcófago velho romano: In nihil ac nihilo quam cito recidimus. Do nada no nada quão cedo recaímos.

Dois pensadores e pensamentos tão diferentes entre si, que pensaram a fundo esta questão – um Sócrates e um Nietzsche –, contrapuseram e compartilharam ambos neste ponto uma e a mesma solução alternativa. Neste sentido: - os actos que dão valor (e sentido) à vida devem ter uma valiosidade não finita: a morte não lhes pode pôr um termo absoluto, para além do qual... nada. Mas, como esta morte é uma possibilidade iminente a qualquer momento neste mundo, - que diferença faz o prazer ou o sofrer, que diferença dedicar-se um Pessoa a encher o baú de textos maravilhosos, ou dedicarem-se outras pessoas a encherem os cofres de dinheiro, sujo ou limpo? - Para além das óbvias e imediatas, sempre muito relativas e subjectivas... nenhuma. Para além dos finitos, variáveis e transitórios motivos de conveniência pessoal ou social, - nenhuma razão ou critério objectivo nem universal para preferir como “boa” a actividade criadora de Pessoa, como para cominar de “má” a actividade traficante do mafioso... ou o contrário. Tão indiferente gozar ou sofrer como ter morrido sem chegar à consciência disso. Teria razão o céptico romano que só via nada. Em contrapartida, vê-se muito bem que, nesta perspectiva de fundo niilista, os indivíduos podem ficar muito ansiosos com a possibilidade de, enquanto há tempo, perder os "bons bocados", não gozar mais do que sofrer e muito preocupados com planos e balancetes deste tipo; é a vidinha hiperactiva deste nosso canto rico e enfartado do mundo, sôfrego das hiperabundâncias de hipermercados.

Bem, não era minha intenção hoje ir com o leitor ao hipermercado, mas convidá-lo antes a medirmos as consequências práticas para a vida individual, pessoal e cívica, colectiva e civilizacional de duas atitudes existenciais as mais díspares entre si: a de crer forte e firme na continuidade de alguma forma de existência e consciência além de o que chamamos “morte”, ou a de crer em nada disso. Por mim acho que temos aqui duas classes de pessoas e dois géneros de vida mais irredutivelmente apartadas entre si do que pela mera distribuição da riqueza ou dos genes.


[ O leitor que prejulgue impossível haver algum filósofo capaz de tratar estas magnas questões em poucas e simples palavras, enganou-se. Traduzido e arranjado pelo nosso jovem filósofo Pedro Galvão, tem aqui a prova no austríaco Moritz Schlick (1882-1936):

http://intelectu.com/intelectu_archive_win_05_07.html

É um texto duma cristalina clareza e (vergonha minha!) mais breve do que a maior parte dos postais que aqui tenho posto. Apenas um ligeiro senão: julgo que a leitura ficará ainda mais clara se lermos sempre finalidade onde repetidamente está “propósito”, no contexto tradução menos conveniente do inglês “purpose”. Recomendo-o vivamente como exemplo duma posição contraposta à que deixei implícita supra, embora o meu propósito não fosse senão o de apontar que há certas diferenças de classes de pessoas que são existencialmente mais irredutíveis e relevantes que as classes de que tratam os sociólogos e politólogos. ]

quinta-feira, abril 15, 2010

CENTENÁRIO DA REPÚBICA: DA RUA DA ESPERANÇA AO LARGO DO DESENGANO


No dia 3 de Outubro, pelas 20.30 horas reuniam-se num 2º andar do nº 106 da Rua da Esperança, Lisboa, meia centena de pessoas, civis e militares, para decidir sobre começar imediatamente ou adiar mais uma revolução política :
« Só Afonso Costa se sentara numa poltrona a um canto da casa. Todos estavam de pé, projectando-se os primeiros cículos de luz mais intensa do candeeiro de suspensão em Cândido dos Reis e nos oficiais, que tinham nessa hora trágica o papel supremo. O Directório, que estava representado por mim e Inocêncio Camacho, José Barbosa, Cupertino Ribeiro e Eusébio Leão, aguardava silencioso as palavras decisivas dos oficiais revolucionários, sobretudo as palavras finais de Cândido dos Reis, a figura que tudo dominava com a grandeza da sua fé e com a energia das suas resoluções. »
Quem isto conta, estava 24 horas depois na varanda dos Paços do Concelho de Lisboa a anunciar a vitória do movimento reolucinário. Hora “trágica” é como José Relvas qualifica a hora das decisões irrevogáveis, neste trecho do 1º volume das suas Memórias Políticas (1977), que teve ocasião de redigir depois “com a serenidade de quem está já isento de paixões, alheio às lutas”. Triunfou a decisão expressa nas “palavras finais” do almirante Cândido dos Reis: - « A Revolução não será adiada. Sigam-me, se quiserem. Havendo um só que cumpra o seu dever, esse único serei eu. Para a vitória ou para a morte! »
A “hora” não demorou tempo a desenganar as alternativas categóricas dos humanos, que o tempo gosta de converter às vezes em inesperadas conjuntivas: a revolução saiu vitoriosa e o “chefe supremo da revolução” viria a ser a primeira vítima mortal dela... às suas próprias mãos. Mas o suicídio do impenitente anti-clerical na solidão da Travessa das Freiras foi negado pela imprensa republicana que, em sucessivas tiragens saídas sem incómodo nenhum da polícia, dava o famoso e popular almirante como vivo e a comandar energicamente as forças da marinha nos barcos sublevados e surtos no Tejo...
Na redacção de um destes jornais, A Luta, improvisava-se uma Junta Revolucionária, que foi o posto de comando, informação e coordenação das diversas e dispersas iniciativas de militares e paisanos que se foram desenrolando desde o Poço do Bispo a Alcântara. José Relvas, que esteve na Junta e depois foi instalar-se com os companheiros num hotel ao Chiado, conta-nos do desfecho na manhã de 5 de Outubro:
« E quando o grupo do Hotel d’Europe, que representava o Directório (o directório que recebera o encargo de fazer a revolução) e a Junta revolucionária de A Luta entrou no Rossio o povo levou reunidos nas mesmas aclamações e no mesmo triunfo esses homens e o coronel de Caçadores 5 [ José Joaquim Peixoto, monárquico]. Naqueles estava a síntese da revolução; neste o símbolo da realeza vencida, mas já cercada da generosidade dos vencedores. Começava a epopeia dos inolvidáveis dias de Outubro, em que a vitória e o perdão se confundiam num impulso de nobreza patriótica, que desde logo conquistou para a República a simpatia e a admiração da Europa. »
Às 9 da manhã José Relvas anunciava a instauração do novo regime e os o nomes do seu 1º governo (provisório). Mas só cerca do meio-dia o homem “sentado na poltrona” se dignou sair da sombra e aparecer na Câmara, onde começou logo a redigir proclamações e decretos. –
« O Governo Provisório foi constituído à la diable e as ideias governativas da Revolução foram entregues ao arbítrio dos ministros, donde resultou a obra desconexa do Governo provisório e a inconcebível situação dum Ministério acéfalo (que o mesmo era ser presidido por Teófilo Braga), com acção independente em cada pasta! Não faltavam entre os homens da Revolução capacidades suficientes, e algumas especializadas, para fixar os princípios de direito, de administração civil e política, de regime financeiro, de organização colonial, de defesa nacional, pela reforma do exército e pela orientação da política externa das novas Instituições. Mas faltava a sequência de esforço, e os paladinos da República julgavam cumprir suficientemente a sua missão numa actividade de comícios e conferências, sem dúvida admirável para despertar as energias da reacção popular, mas estéril para com ela se formar um corpo de doutrina, e dirigir um Estado. Deste imenso erro veio a enfermar a vida da República. »
A opinião depreciativa de José Relvas relativamente a Braga era extensiva à figura de Bernardino Machado e à obra de Afonso Costa. –
« São bastante severas as apreciações que tenho feito de Bernardino Machado. Mas são merecidas pelo mal que este homem funesto causou ao País e à República. Associado a Afonso Costa, ligando-os um pacto que começa no Governo Provisório e vai até à imposição da sua [de Machado] eleição de Presidente da República a uma Câmara reconhecidamente hostil a essa chefatura, apoiado nos elementos mais perturbadores dos centros republicanos de Lisboa, ele é, com Afonso Costa, o grande responsável do descalabro nacional, pelo predomínio de factores anárquicos, que divorciaram a maioria da opinião portuguesa das novas Instituições. A Revolução fora uma esperança entusiástica, abraçada simultaneamente pelo povo e pelas classes cultas. (... ) Havia a impressão de que se preparava uma obra eminentemente nacional, aberta ao triunfo das maiores capacidades e das mais altas virtudes. O desengano foi cruel para os velhos e sinceros republicanos (...). Aqueles dois homens fizeram uma obra de divisão, atacaram crenças, costumes e tradições, que eram e são inseparáveis do sentimento nacional; radicaram um regime faccioso, proclamando uma República privativa duma parte da nação e foram assim os maiores agentes da obra liberticida que veio a ser a característica da República na sua pior fase! »
Uma das cinco figuras que, com José Relvas, o historiador Carlos Ferrão considerou terem tido “o principal papel na preparação ” do 5 de Outubro (além de Miguel Bombarda, Cândido dos Reis e Machado Santos), foi o publicista João Chagas, que chefiou o primeiro governo constitucional da República; cinco anos depois, numa entrada de Janeiro do seu Diário, sintetizava assim o “descalabro nacional” : « Estamos num estado que perdeu toda a autoridade e todo o prestígio, dirigido por insensatos, anarquizado por doidos e abandonado ao seu destino por egoístas pusilânimes. »

[ Imagem da Marianne portuguesa, a jovem alentejana Ilda Pulga, que deu o busto ao brônzeo busto da nossa República , com a arte do escultor Francisco Santos. ]

segunda-feira, abril 12, 2010

O DIÁRIO DE NOAGA


12 de Abril
Que cansaço, hoje para cortar e arrumar a lenha!
Mas é que a Mãe precisava dela para cozinhar.

quarta-feira, abril 07, 2010

MOINHOS E MOENDAS


Tão bem me governaram o amor
E os benefícios de Abu Bacre Almodafar
Que parti para um campo primaveril...

Com esta elegante ironia refere-se o poeta Abu Zaíde Ibne Mucana Alisbuni Alcabdaque ao termo do seu serviço cortesão na corte do emir Almodafar, de Badajoz, e retorno aos campos primaveris da sua Alcabideche (Alcabdaque) natal:

Deixei os reis cobertos com os seus mantos
E renunciei a acompanhá-los nos cortejos...
Eis-me em Alcabideche colhendo silvas
Com uma podoa ágil e cortante.

Aqui nascera em princípios do século XI, e aqui voltava na velhice, “quase surdo”, como diz, mas longe de cego: com cortante podoa da ironia a colher silvas, como quem diz colher os frutos de espinhosos trabalhos e desenganos. O mais precioso fruto é referido logo a seguir:

Se te disserem: gostas deste trabalho?, responde: sim.
O amor da liberdade é timbre dum carácter nobre.

Carácter e palavra de homem decidido e servido de atilado discernimento. Com uma condição:

Se és homem decidido precisas de um moinho
Que trabalhe com as nuvens sem dependeres dos regatos.

O sábio Abu Zaíde, escarmentado das silvas, não diz: dependente dos variáveis ventos políticos. Aponta para mais alto...

De ventos amigos dependiam os nossos velhos moinhos, cujo dia nacional se celebra hoje, 7 de Abril, que esteve lindo de Sol a enxugar os lavados campos primaveris. E nem faltou uma brisa delicada e suficiente para armar as velas dalguns que ainda as têm. Na década de 60 contavam-se ainda cerca de mil, só na nossa Estremadura. Pude visitar alguns, em plena laboração, e para sempre me ficará na lembrança o som músico das cabacinhas de barro furado, presas nos mastros e cordame das velas: ouviam-se longe, e davam aviso ao moleiro lavrador da força e direcção dos ventos. A mim me lembravam também outros ventos: o som da siringe grega (de que fala Parménides em seu Poema), que Dioniso tocava a convocar das silvas silvanos e ninfas. Na falta destas, bailavam as nuvens.

Em tais visitas e moendas fui guiado pelo velho amigo Gabriel Vitorino, a quem daqui saúdo, comovidamente.


[ O poema de Mucana está no vol. IV (1975) da antologia Portugal na Espanha Árabe, organizada por António Borges Coelho. Terá sido composto cerca de 1068, ano em que morreu o citado Almodafar. Vai infra uma fotografia do moinho de que Vitorino Nemésio, aqui lembrado na quinta-feira passada, foi proprietário no cabeço da Portela de Oliveira, serra do Bussaco. O Poeta chegou a ser presidente da Associação Portuguesa dos Amigos dos Moinhos. A Câmara de Penacova restaurou-o e tem próximo dele um bonito e instrutivo Museu do Moinho, que muito recomendo ao estudante amador e procurador das coisas boas portuguesas.

Duas ligações úteis: http://www.moinhosdeportugal.org/web/





domingo, abril 04, 2010

CHRISTUS TRIUMPHANS


Porque buscas o Vivente entre os mortos ?
Não está aqui: ressuscitou!
Lc 24, 5

« A epístola da missa da Páscoa faz ressoar cada ano aos nossos ouvidos o convite que o Espírito Santo dirige a todos os cristãos pela boca de Paulo: “ Portanto, já que fostes ressuscitados com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus " ( Aos Colossences, 3, 1). Esta pequena frase contém a mais extraordinária das afirmações. Significa, com efeito, que não só Cristo ressuscitou e que ressuscitaremos um dia com Ele, mas que já ressuscitámos com Ele pelo Baptismo. Nesta afirmação está contido todo o mistério da existência cristã. Aparentemente, nada mudou na condição humana. Contudo, a ressurreição de Cristo já realizou a sua operação transfiguradora no mundo secreto das almas, de modo que o cristão já não espera senão a manifestação daquilo que substancialmente já se realizou n’Ele. S. Paulo, com efeito, continua: “ A vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, vossa vida se manifestar, então também vós aparecereis com Ele em glória ”.

Perguntámo-nos, primeiramente, o que significa a própria palavra “ressurreição”. (...)
Trata-se, não dum simples regresso à vida mortal, mas da passagem da condição mortal, que é a condição natural, a uma condição imortal, transcendente a toda a vida natural, porque é uma misteriosa participação na vida de Deus. Esta imortalidade não consiste na imortalidade filosófica, que é a persistência da alma na existência. Esta persistência pode ser uma morte espiritual. É antes a vivificação dum ser mortal pelas energias divinas que lhe comunicam uma incorruptibilidade sobrenatural e o elevam acima da condição mortal.

O mistério cristão da ressurreição consiste precisamente nisto. Por si mesma, a natureza humana está orientada para a morte, como tudo aquilo que pertence à biosfera da qual faz parte, devido ao seu corpo animal. Mas o verbo de Deus, que desde o princípio tinha chamado a natureza human à imortalidade, introduzindo-a no paraíso e destinando-a a alimentar-se do fruto da árvore da vida, vem restabelecer esta natureza que o pecado de Adão tinha reduzido à condição mortal. Pela Sua ressurreição, Cristo comunica-lhe uma vida incorruptível, que é a Sua. Pela Sua ascensão exalta-a à direita do Pai. E a Sua humanidade glorificada torna-se o princípio de ressurreição para todo o homem que nela é enxertado pelo baptismo.

A ressurreição significa, portanto, a elevação da humanidade acima de si, ao mundo inacessível de Deus. Ela é a Boa Nova por excelência, o maravilhoso destino ao qual o amor do Pai chamou a humanidade no seu Filho único, pelo dom do Espírito. Ela é essa inaudita aventura pela qual esse seres de carne e sangue, que somos nós, tão próximos do mundo animal, são mergulhados no fogo depurador da vida trinitária, que destrói tudo o que é mortal e comunica a incorruptibilidade: “ a fim de que tudo o que é mortal seja absorvido pela vida” ( 2ª Aos Coríntios, 5, 4). Isto só é possível devido ao gesto de Deus que, em Cristo, desce à nossa natureza mortal e, assumindo-a, a eleva às alturas, para a conduzir às profundidades do Pai, “onde Cristo está sentado à direita de Deus”.
(...)
Esta força da ressurreição de Cristo atinge a totalidade do homem. Atingirá, um dia, os nossos corpos adormecidos na morte, quando a centelha do Seu fogo se lhes pegar; levantá-los-á de novo e vivificá-los-á com uma vida que não será apenas a da carne e do sangue, mas a do Espírito incorruptível, que comunicará aos nossos corpos mortais a Sua incorruptibilidade. Mas ela atinge, desde já, as nossas almas mortas – mortas pelo pecado que nos privava da vida de Deus; toca as nossas almas mortas e suscita nelas a vida do Espírito Santo, que converte as nossas inteligências e os nosso corações, os fortifica, os vivifica e os torna capazes de conhecer a amar as coisas divinas, por uma misteriosa participação no conhecimento e no amor com que Deus ama e Se conhece a Si próprio. »

Jean Daniélou, A Ressurreição, trad. port. de Pedrosa Ferreira, Porto, 1971.

sexta-feira, abril 02, 2010

A IMOLAÇÃO DO SERVO: FERIA SEXTA IN PARASCEVE


Senhor, meu Deus e meu salvador,
eu clamo em tua presença dia e noite.
Chegue junto de ti a minha oração,
inclina o teu ouvido à minha súplica.

A minha alma está saturada de males
e a minha vida chegou às portas da morte;
estou no rol dos que descem à sepultura,
sou um homem já sem forças.
Estou abandonado entre os mortos,
como os defuntos que jazem no sepulcro,
de quem Tu já te não lembras,
uma vez sacudidos da tua mão.
Lançaste-me na cova mais profunda,
na escuridão do abismo.
Pesa sobre mim a tua indignação,
humilhas-me com tantas aflições.
Afastaste de mim os meus amigos,
tornaste-me insuportável para eles;
estou como um preso sem poder sair,
os meus olhos apagaram-se de tanto sofrer.
Todos os dias te invoco, Senhor,
estendo para ti as minhas mãos.
Acaso farás prodígios para os mortos,
irão os defuntos levantar-se para te louvar?
Poderá a tua bondade ser exaltada no sepulcro,
ou a tua fidelidade, na mansão dos mortos?
As tuas maravilhas serão conhecidas nas trevas
E a tua justiça, na terra do esquecimento?

Eu, porém, Senhor, clamo por ti;
de manhã, a ti apresento a minha oração.
Por que me rejeitas, Senhor,
e escondes de mim o teu rosto?
Infeliz de mim, que agonizo desde a juventude;
já não posso mais suportar os teus castigos.
Sobre mim passou a tua indignação
e os teus terrores aniquilaram-me.
Como vagas, rodeiam-me todo o dia,
e todos juntos caem sobre mim.
Afastaste de mim amigos e companheiros,
e a minha companhia são as trevas.

Salmo 88


Meu Deus, Meus Deus, porque me abandonaste,
rejeitando o meu lamento, o meu grito de socorro?
Meu Deus, clamo por ti durante o dia e não me respondes;
durante a noite, e não tenho sossego.

(...)

Eu, porém, sou um verme e não um homem,
o opróbrio dos homens e o desprezo da plebe.
Todos os que me vêem escarnecem de mim;
estendem os lábios e abanam a cabeça:
“Confiou no Senhor, Ele que o livre;
Ele que o salve, já que é seu amigo”.


Salmo 22, 1-3 e 7-9


Eis o meu servo, que Eu amparo,
o meu eleito, que Eu preferi.
Fiz repousar sobre ele o meu espírito,
para que leve às nações a verdadeira justiça.


Isaías, 42, 1-4


O servo cresceu diante do senhor como um rebento,
como uma raiz em terra árida, sem figura nem beleza.
Vimo-lo sem aspecto atraente,
desprezado e abandonado pelos homens,
como alguém cheio de dores, habituado ao sofrimento,
diante do qual se tapa o rosto.
Nós o reputávamos como um leproso,
ferido por Deus e humilhado.
Mas foi ferido por causa dos nossos crimes,
esmagado por causa das nossas iniquidades.
O castigo que nos salva caiu sobre ele,
fomos curados pelas suas chagas.
Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas perdidas,
cada um seguindo seu caminho.
Foi maltratado, mas humilhou-se e não abriu a boca,
como um cordeiro que é levado ao matadouro,
como uma ovelha emudecida nas mãos do tosquiador.
Sem defesa nem justiça, levaram-no à força.
Quem é que se preocupou com o seu destino?


Isaías, 53, 2-8


Quem dentre vós teme o Senhor
e escuta a voz do seu servo?
Mesmo que caminhe nas trevas,
privado de luz,
confie no nome do Senhor
e firme-se sobre o seu Deus.


Isaías, 50, 10


O meu Deus tornou-se a minha força.
Disse-me: “Não basta que sejas meu servo
só para restaurares as tribos de Israel.
Vou fazer de ti luz das nações,
para que a minha salvação
chegue aos confins da terra.


Isaías, 49,6


Ele, que é de condição divina,
não considerou como uma usurpação ser igual a Deus;
no entanto, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo.
tornando-se semelhante aos homens
e sendo, ao manifestar-se, identificado como homem,
rebaixou-se a si mesmo,
tornando-se obediente até à morte
e morte de cruz.


Paulo, Aos Filipenses, 2, 6-7



[ Versões da Nova Bíblia dos Capuchinhos. ]

quinta-feira, abril 01, 2010

FERIA QUINTA IN CENA DOMINI 1963


Já uni os artelhos para a morte.
Minha mãe velha espera o tempo nos seus ais.
Quinta-feira Maior ainda: a quantas vi a tarde roxa!
No lava-pés dos pobres ardia o pão consumado.
Mas o Senhor não toca o seu fogo a quem quer,
Nem por já ser o dia há-de ser a lembrança.
O pecado é maior que a escara, a compressa, a bugia,
E o peso real da morte é alto na balança.
Como uma agulha o nosso coração posponta o tempo e mal alcança.
Sinos, parai! Desnudemos os ossos sem altares:
Que toda a imagem cesse aos olhos vãos sem o sal da pena.
Pecámos a extensão da vida reparada,
Fez-se-nos a noite à estrada e a lâmpada é pequena.
Se ao menos aquele pálido Atoalhado
Dos Rins – me enviasse pedra ou flor de sangue ao charco!
O Pendente na Noite, agrimensor a braços, cravo a cravo do dia.
Por que lívido o tenho na parede, ou a que intenção,
Se desselo sem Ele as mensagens corruptas da vidraça,
Acenos da manhã, logo ao mal induzidos,
A persuasão do dia amorfo e lento nos meus gestos,
O dormir e acordar perpétuo em lama e ardor?...
Oh radical pendido e alanceado, só chamado Senhor!
Agora que na cal te estampas, todo sombra,
Só com um rubi a arder na virilha enfaixada,
Da morte triunfas,sim, mas não da minha alma,
Que quieto te deixei sem prece ou lume brando,
Pregado como o insecto, em V esquecido,
No alívio dos joelhos reparando.
Ah, não a morte (alta era a esperança) ou a culpa
Tornada chão sem dar o vinho próprio de hoje.
Pudera outra monção compor-me as coisas
Sem esta altura de unhas na rapina,
Sem a espreita do enfarte ou o orgasmo morto
Na miséria alcalina.
Nem o hino comosso, se voltasse,
Empinaria já trombetas claras nas labiais dos Anjos
(Loa ou bando de Juízo?) :
Que só nos convém saco e cinza agora,
Só pó mordido e algum morrão de endoença
Na hora morte de alma e vida a corpo aberto,
Esta dor viva nele aberta, que ainda pensa.


Vitorino Nemésio, in Canto de Véspera (1966).


[ Em nenhum dos principais dicionários (Morais, Aulete, Figueiredo, Machado, Houaiss, Academia) encontrei a palavra “comosso”, que infelizmente ainda não pude ver se permanece na edição da Poesia Completa, da Imprensa Nacional. Não se tratará antes de comisso? Tínhamos esta antigamente com o significado de culpa, pecado, o que joga com o saco do remorso e a cinza do arrependimento quaresmais trazidos até ao tempo de Endoenças (das indulgências ganhas pela Misericórdia do Pendido na Cruz). Mas pode ser que também o Poeta deliberadamente troque o nome substantivo pelo particípio passado adjectivado commissus, do verbo latino comitto: unido, entregado, confiado, começado, iniciado, mas também: o que incorreu numa falta e tornou-se merecedor de castigo ( em face da trombeta angélica anunciadora do final Juízo). Teria, portanto, aqui, preferido o Poeta o latinismo comisso ao nosso cometido, que lhe terá parecido semanticamente mais estrito e mais fraco. Não esquecer que o eruditíssimo Nemésio, além de Mestre de Humanidade, fora da academia, era academicamente doutorado em filologia românica.

Se não é gralha, talvez tenhamos de recorrer ao italiano, não ao latim, segundo a preciosa sugestão que o leitor e eu ficamos a dever ao administrador deste bolgue, Alexandre Dias Pinto. Na terminologia musical (e o Poeta era um executante amador de guitarra) temos as indicações mosso (movimentado, veloz) e moto, con moto, que jogam com o derivado comosso (comovido), sugestões todas pertinentes no contexto. Mas, neste caso, seria de esperar que a palavra aparecesse em itálico, o que não acontece na impressão de 1966.

Não faltam enigmáticos pormenores no poema maior que aqui fica. Não faço eu enigma da relação entre este e o da semana passada, da nobre senhora Marquesa de Alorna. - O outro prevenia-nos do Nada, em que estamos; este tem muito que lhe dizer e opor nestes tempos de enfarte e enfartados, de rapina sem indulgências (nem comoção: a quantos, falantes do europês, já nada diz...), da única oposição viável hoje: a comungante e crucificada com O Pendente na Noite.

Na imagem, inciso gravado por um prisioneiro numa parede de Auschwitz. ]