sexta-feira, julho 30, 2010

ANTÓNIO CORRÊA DE OLIVEIRA



Nasceu em S. Pedro do Sul, ano de 1879. Não cursou estudos secundários ou universitários. Educação superior recebeu-a o Poeta da prática dos mestres maiores do seu ofício, a começar no povo da Beira, e da compenetração telúrica com a paisagem natal das terras de Lafões e do Vouga. Mas não foram precisas mais certidões que as obras para a Academia Portuguesa de Ciências, e Brasileira de Letras, se honrarem de o eleger como membro seu.

Aos dezanove anos vem para Lisboa iniciar carreira no funcionalismo público, empregado amanuense na Procuradoria Geral da Coroa. Escreve em jornais, frequenta cafés, tertúlias e salões, como o de Maria Amália Vaz de Carvalho, que lhe reconheceu, protegeu e estimulou as primícias literárias. Com a revolução republicana demitiu-se da carreira burocrática, por fidelidade ao regime deposto e providencial graça da Poesia.

Não se demite porém de colaborar desde a primeira hora, com seu irmão o dramaturgo João Corrêa d’Oliveira, no movimento da Renascença Portuguesa e nas primeiras séries da revista A Águia, a convite de Teixeira de Pascoaes, seu amigo de toda a vida.

No ano seguinte de 1911, um encontro decisivo vai marcar a vida do homem e influir na trajectória vital da obra do poeta: conhece uma jovem minhota que viria a ser sua esposa. Maria Adelaide da Cunha Sottomayor de Abreu Gouveia «era, pelo coração boníssimo, sensibilidade vibrátil e lhaneza de trato, a esposa ideal do (como lhe chamou meu pai) “Beato António, ermitão de Belinho” », conforme lembra do seu convívio pessoal o poeta Couto Viana. Em finais desse ano abandona a capital pelo solar retiro da casa de sua mulher, em Belinho, Esposende, donde raro sairá até ao fim da vida; aí, o quase analfabeto de instrução oficial fundará um colégio para as crianças pobres da terra aprenderem a ler as primeiras letras e os primeiros versos.

A casa de Belinho, «entre rosas, lilazes e glicínias, com soberba vista para o mar desde a Apúlia à Âncora» (conta o escritor Alfredo Guimarães), dir-se-ia o abrigo ideal para um poeta português e amoroso da Pátria lacerada pelas comoções revolucionárias, apurar – sem amargura nem revolta – ao lume do Lar e à luz do Céu, o cautério de sobrivência à agonia. E em boa parte o foi, abrigo ideal, e mais do que abrigo; mas, no real (“não há gosto perfeito na vida”...), o sonido contínuo e bravo do mar próximo bulia com os nervos deste terrantês nado e criado no colo montanhoso da Beira. E era passeando nos montes convizinhos da casa que o poeta ia muitas vezes colher as ramadas de versos que depois dispunha logo perfeitos no papel.

Outro mestre da Renascença Portuguesa, o filósofo Leonardo Coimbra, na sua tese de 1912 sobre O Criacionismo, considerava Corrêa d’Oliveira « o abraço mais abraçado da alma popular portuguesa, alma imediata (sem maneiras artificiais ou sábias) da simplicidade, do doloroso e comovido saber do coração, fusão íntima e perfeita da Mulher e da Terra, do lar e da lenha do secrifício. » Era a certificação das mais auspiciosas promessas que críticos e conhecedores tão autorizados como Trindade Coelho, Sampaio Bruno ou João Penha tinham saudado nas primeiras obras do poeta. Como testemunhou Fernando Pessoa a Armando Cortes-Rodrigues, fora Corrêa d’Oliveira o poeta que mais o influenciara pelos anos de 1908-1909, e que, em carta de 11 de Março de 1914, confessa ao poeta dos Dizeres do Povo a sua “alta e sincera admiração”.

Já em 1917, quando da conclusão do ciclo de dez livrinhos sobre A Minha Terra, e fazendo-se eco da voz comum, considerava o Diário de Notícias Corrêa d’Oliveira “o cantor eleito do povo português e da terra portuguesa”. Eleito, digo eu, por a mais legítima eleição que um poeta pode ter: a de fazer o povo seus versos dele. (Ainda num poema datado de 1968, de um poeta popular alentejano, Manuel de Castro, achei uma glosa dos versos da célebre quadra – Sino, coração da aldeia; / Coração, sino da gente: / Um a sentir, quando bate, / Outro a bater, quando sente. ) Confirmava-se a previsão que o seu amigo Pascoaes escrevera nas colunas d’ A Águia: « o Poeta perde o nome de Corrêa d’Oliveira e chama-se Povo. »

Publicou mais de seis dezenas de livros de poesia, de maior ou menor tomo, em todos os géneros e metros. De certo, ao leitor urbanizado e cosmopolita de hoje, sobretudo influenciado pelos variados modernismos que pervadiram o séc. XX, muito há de estranho e aborrecido numa poética matricialmente fiel à poesia popular e a poetas como João de Deus, António Nobre ou o Junqueiro de Os Simples, mesmo que compreendesse e perdoasse a adesão sincera que o cidadão e o artista Corrêa d’Oliveira deu ao ideário político do Estado Novo. Mas tenho que há pelo menos quatro grandes poemas (que são quatro livros inteiros) – Tentações de São Frei Gil (1917), Verbo Ser e Verbo Amar (1926), Job (1932) e Elogio da Monarquia (1944; trata-se da Monarquia divina sobre o universo e a história humana, cristãmente meditada) – que pelo lado da problematização humana, cósmica e divina, não menos que pela excelência da realização artística, estão ao nível das melhores obras de toda a nossa história literária, e justificam plenamente que Corrêa d’Oliveira tenha sido o escritor português mais vezes proposto ao Prémio Nobel.

Um ano após a publicação do seu derradeiro livro, num discurso em Esposende, quando do encerramento das homenagens nacionais ao Poeta, a 30 de Julho de 1955, dizia o padre António Dias de Magalhães que Corrêa d’Oliveira alcançara “um lugar inconfundível entre os maiores poetas de Portugal”. E comparando-o com Pascoaes (de quem Magalhães foi bom amigo e bom conhecedor da obra) e com Pessoa, concluía: « Nenhum destes, porém, realizou a harmonia entre a inspiração e a arte, a terra e o céu, a inquietação e a serenidade, o espírito e a forma, a vida e a poesia, a verdade e a beleza que António Corrêa d’Oliveira encontrou nos mais divinos momentos. »

Nos últimos anos de vida, com o agravamento da “doença implacável”, o Poeta, que já suportara a dor da perda do primeiro filho e a morte da esposa tão amada, padeceu a perda total da vista. Faltava-lhe isto para até ao fim se irmanar mais « Daquele homem que foi Santo / E que fez versos também. »
Faleceu na sua casa de Belinho, em 1960

TERRA DO PARAÍSO

Eu quis, lembrando o que fora,
Futurar quanto seria:
Que, pelos tempos de agora,
Só quem olhar aos de outrora
Crê em vindoira alegria.

O que foi, será. Adiante
Vai a candeia, e que faz?
Deita as sombras para trás...
- Louco e ingrato Caminhante,
Donde vens? – Nem saberás!

E tudo volta... Criada
Foi a Luz por nosso bem:
Não pode ser apagada,
Só porque as sombras do Nada
Andem n’alminha dalguém.

A terra, em culpa e malícia,
(inda que tojos a comem)
Voltará a ser propícia:
Pois se fez para delícia
De jardins, homem por homem.

E ninguém sabe, afinal,
Se não calca, em duro piso
E em negro passo indeciso
(Anda-me ouvir, Portugal!)
A Terra do Paraíso...

(...)

Ó Paraíso da terra!
Ó terra do Paraíso
Onde Satã nos fez guerra:
Entre que mar, vale ou serra,
Sorriu Deus no teu sorriso?

Não o diz o Livro Santo,
Ou conta-o de tal maneira,
Que não há eira nem beira
Que não presuma um recanto
Da virgem terra primeira.

Luz que Deus nos acendia,
Desfeita em sombras fatais...
-Onde foi? Onde estaria
(Perguntei: ninguém sabia!)
O berço de Nossos Pais?

Em Portugal?... Pois seria!
Que, no mundo em redor,
Terra assim onde a haveria,
Para ser Deus, algum dia,
Jardineiro e lavrador?

Águas, luz, aves em bando,
Veigas de pão, roseirais;
Que jardim valera mais,
Para andarem passeando
Eva e Adão, nossos Pais?

Onde sol mais a contento?
E sombras mais a carinho?
O vale em forma de ninho;
As serras dizendo ao vento:
- «Amigo! vai de mansinho...»

Onde a rosa mais ardente?
Doirados pomos assim?
Sombra a fugir, no jardim,
Como um vulto de Serpente,
Atrás de ti e de mim?

Onde um Anjo Guardião
Mais firme do que a montanha?
Onde maior tentação
Do que o mar (serpente ou não...)
Caminho da terra estranha?

Ó chama de altos Destinos
Desfeitos em cinza vã!
-Onde houve, em noite ou manhã,
Mais longos passos divinos?
Maior sombra de Satã?

Nas angústias de quem chora,
Portugal, o teu Sentido
É Saudade: entendo-a agora...
- Ó Paraíso de outrora,
Meu Paraíso perdido!

Em seu amor que não cansa,
Inda, na terra, o profundo
Reverdecer, é lembrança
Do que foi, cheia de esp’rança,
Quando Deus fez este mundo;

(...)

- Ó Cavador, meu amigo,
Meu irmão e companheiro:
Anda daí! Vem comigo,
Por entre as vinhas e o trigo,
Ao cimo daquele oiteiro.

Descansa a enxada, um momento;
Tempo não perdes, que, enfim,
Também o meu Pensamento
Revolve as sombras: e intento
Cavar por ti e por mim.

(...)

Serás, tu, a sombra ingente
De quanta humana criatura
Ergueu a Enxada à altura,
Desde a primeira semente
Que tombou na leiva escura.

Eu serei, em vão segundo,
Eco de toda a Palavra
(Oração, canto profundo)
Que passa, em luz, sobre o mundo,
E também semeia e lavra.

(...)

De nada eu sei mais diverso,
Sendo, afinal, meu irmão:
- Meter arados ao chão;
Cavarmos, de verso a verso,
Nosso arreto: o coração.

(...)

Tempo de hoje é negro véu
Do que foi, será de novo...
- Cavador, vem a mais eu;
Em vozes de lumaréu,
Anda pregar ao Povo:

- “Há céu. Lá cima; e, no chão,
Outro céu, sob os meus passos:
Vinde-os ganhar onde estão,
Pela força da oração,
Ao jeito dos nossos braços.”

(...)

Cheia a arca, cheia a tulha;
Maré viva a eira e a adega.
E, das sachas à debulha,
Como pomba quando arrulha,
Arrulhos de água de rega.

Ao sol, nas ceifas e mondas
Rapazes e raparigas
Bailarão, cantando em rondas,
À semelhança das ondas,
Ao marulhar das espigas.

Nem invejas, nem pobreza!
Nem desmaios de saúde!
Lar em chama, almas em reza;
Cubas de azeite em represa,
Lagar de vinho em açude.

(...)

Sem paixão entremetida,
Caia em Domingo de Ramos
Eterna Páscoa florida...
- E seja a Festa da Vida,
A que tu vás, e nós vamos.

O que foi, será... A terra
Começou num Paraíso:
E (Deus o quer!) é preciso
Que torne, do vale à serra,
Seu edénico sorriso.

(...)

E trago no meu sentido
Ser Portugal o lugar
Onde se encontre, a lavrar,
O Paraíso perdido
Que inda está para encontrar.


António Corrêa d’Oliveira


[ Vinte e uma das noventa e cinco quintilhas de Terra do Paraíso (1922), como foram reeditadas em Hora Incerta:Pátria Certa, 1948. ]

terça-feira, julho 27, 2010

PESOS (AINDA) MAIS PESADOS

« Coberta a vala, sobre ela devem ser espalhadas bolotas, de maneira que o lugar possa tornar-se verde outra vez, e a vegetação cresça espessa, pois os traços da minha campa devem desaparecer da face da Terra, como espero que a memória de mim se desvaneça da mente de todos os homens.... salvo dos poucos que na sua bondade me amaram até ao último momento, e de quem levo uma doce lembrança comigo para o túmulo. »

Eis o que dispunha Sade no seu testamento. Os maîtres à penser da moda e outros mediáticos protagonistas do aparelho cultural francês não lhe fizeram a última vontade, quando elevaram a pornografia literária às honras de edição na Bibliothèque de la Pleiade. É caso para uma paráfrase dum célebre apelo do marquês: Français, encore un éffort... – e ainda o vereis entronizado a título póstumo entre os imortais da Académie Française! Preferiram pois seguir o lógico fio da voz de certa personagem sadeana, que ambicionava um crime que “provocasse um caos de tais proporções que provocasse a corrupção geral ou um distúrbio tão formal que, mesmo depois da minha morte, os seus efeitos ainda se sentissem.” A última vontade do philosophe scélérat era mais consequente com o “sistema do nada”, que vimos já afirmado aqui; a da personagem sadeana, mais consequente com o sadismo.

Isto, aplicado à escala cosmológica do “eterno retorno do mesmo”, reproposto por certo pretenso defensor dos “valores da vida”, o filósofo Nietzsche, que intrometemos aqui no postal anterior, daria o seguinte. - Num mundo em que o mal é mais abundante, mais fácil de cometer e comprazer do que o bem, a quem é que mais interessa tal “retorno” ? - A resposta é óbvia: à minoria dos que já naturalmente realizam em si essa “inversão dos valores”: os sádicos e masoquistas. Quanto aos mais, um Nietzsche teria de apelar a alguma espécie de “lei moral” kantiana, pervertida: contra a comum natureza humana, deves querer que seja assim mesmo porque... “é” assim mesmo.

O eterno retorno do mesmo não é uma possibilidade excluída, ao menos para o jovem cosmofísico Peter Lynds, que em 2006 veio por seu lado repropor a hipótese adentro do modelo do Big Bang-Big Crunch de um universo que ainda mal conhecemos, se é verdade que 90% dele é constituído por energia e matéria “escuras” como a nossa ignorância. Mas não menos está excluída a possibilidade de a velha teoria não passar de mais uma banal projecção numa “eternidade” cósmica do banal eterno retorno temporal dos mesmos tipos (biopsicológicos, sociais, culturais) em diferentes indivíduos, geração após geração.

Certo, certo é que não pode ser o mais pesado o “peso mais pesado” de Zaratustra-Nietzsche, a começar pelo “grande sim à vida”. - Quem realmente quer tanto à “vida”, não deveria querer antes que ela jamais se interrompesse, nem sequer na memória? Mas teria de esperar quintiliões de anos até que uma mesma Terra se começasse a formar de novo, até que os mesmos homens viessem a viver, esquecidos, como se fosse afinal a primeira e única vez... Mesmo que, depois, surgissem alguns “homens superiores” a lembrar isso, de que lhes valeria, se morriam e esqueciam?... Parece pois evidente que o genuíno “sim à vida” , se pode perfeitamente admitir mutações, o que deve querer é a não interrupção da continuidade duma existência que, no caso tipicamente humano, é uma existência consciente. Isto é, o marquês de Sade e qualquer sádico consequente não deveriam querer senão fazer e comprazer no mal continuadamente, sem fim; mas não desfazerem-se em erva, bolotas e porcos. Ora, existia ao tempo do marquês (e ainda hoje) uma perspectiva que parece garantiria as delícias perpétuas do sadomasoquismo: a da “eternidade” do Inferno. (A que pelo menos o masoquista não parece possa ser “condenado”, porque isso seria para ele um “lugar” de delícias, não de teológica “reprovação”! Mas, então, não querendo purgar-se no Purgatório, para onde iria?...) Esse “lugar” pode ser mais escuro que a nossa cosmológica “matéria escura”, mas a consequência lógica é clara: - quem realmente quer o mal (ou o bem), quere-o infinitamente.

Não sei se o meu leitor já reparou em que esta velha a aparentemente “bárbara” perspectiva tem pelo menos uma implicação muito estimável: - leva muito a sério e dá o máximo peso à Liberdade humana. – Quem, neste mundo, realmente quis, ou o bem, ou o mal, terá conforme quis, ou o bem ou o mal, depurados, clarificados, continuadamente, sem fim. Já lá dizia com nímia clareza o nosso Martinho de Dume aos seus rústicos suevos, no século VI: « Nam et vita aeterna et mors aeterna in arbitrio hominis posita est. Quod sibi elegerit unusquisque, hoc haberit.»

( Com efeito, tanto a vida eterna como a morte eterna dependem do arbítrio do homem. O que cada um escolher para si, é o que terá. ) – Como? diz-me o caro leitor que isso seria levar demasiado a sério a liberdade do homem, que não sabe o que quer, que não sabe querer, que talvez não tenha nenhuma vontade livre mas somente um maior ou menor desejo de libertação!... Eu diria ao leitor que tudo o que for menos do que isso tem um nome: - desresponsabilização. Pois dar-se-ia então o caso de o mal (e o bem) transcender o humano de tal maneira que escolher o mal não seria uma escolha da liberdade, mas abatimento dela? – Aceito, na medida em que a degradação não vá ao ponto da eliminação duma inerradicável liberdade e, portanto, da total desresponsabilização. (E lembro que este abatimento milita contra a existência de “penas de morte”.)

O sadeano Saint Fond e o nietzscheano Zaratustra são exemplos das possibilidades extremas a que os comuns mortais normalmente não chegam (nem sequer sonham), mas nem por isso estamos livres de não chegar lá, neste mundo ou em qualquer outro mundo possível. O anormal elucida-nos muito sobre nós outros pretensamente normais. O anormal é raro e clarificador da norma. Não pode, assim, ser o mais pesado mal. Devemos a Hannah Arendt e a Susan Neiman, aqui citadas no último postal, o terem-nos desmascarado o que mais pesa sobre nós, e de que mal damos por isso, de tão comum e tão “normal”: a debilidade e mesquinhez da nossa consciência moral... os milhões de pequenos Eischmanns ordinários que, todos juntos, podem vir a gerar e aclamar um Hitler. A desequilibrada inclinação para fazermos mais, mais facilmente e com mais gosto o mal do que o bem. Portanto, o “anormal” não seria aqui de maneira nenhuma o excepcional, mas sempre o caso extremo.

Essas mesquinhez e debilidade parecem estar profundamente radicadas na “natureza”: o menino assaltante de ninhos ou que se compraz na vivissecação de animais. Sade e Nietzsche (menos claramente, este) foram dois dos raros que, na modernidade, defenderam que o mal é pelo menos tanto um fenómeno natural como é um fenómeno moral. Neste ponto julgo que Susan Neiman, boa conhecedora e defensora de Kant, não se distanciou o suficiente dessa modernidade para se confrontar com a visão de Sade, aqui mais original que Nietzsche (quanto a este: de há muito que os homens dejam superar-se e ser como deuses, desde pelo menos... o Éden bíblico!), - a visão de uma soberana Natureza-divindade, cruel, que lança os homens na existência para destruírem e se destruírem. É a hipótese de um “Deus maligno”, que só Descartes (muito de fugida) ousou pensar. Isto quer significar uma coisa, que não pode passar não pensada, por mais que seja difícil de pensar: - que o mal transcende o humano e afecta-nos a nós como ao universo físico em que habitamos.

Considerarei esta possibilidade em breve.

sexta-feira, julho 23, 2010

UM ENCONTRO EM OUTUBRO DE 1911

A um ano da nossa revolução de Outubro, no dia 3, alguns grupos de monárquicos exilados na Galiza, mal municiados e mal preparados, entram no país sob o comando de Paiva Couceiro, para serem rapidamente contidos e obrigados à retirada. Mas esta ameaça comum não chegou para congraçar as desavindas facções republicanas que, pelo contrário, agravam as respectivas dissenções a ponto de, no dia 20, uma turba ter tentado assassinar o dr. António José de Almeida. Regista nas suas Memórias deste mês Raul Brandão: « O povo parece desvairar. (... ) A agitação nesta camada que vai de Alcântara ao Poço do Bispo é enorme. Fala-se de assaltos. Continuam as prisões. (...) os diferentes grupos de republicanos parecem a ponto de vir às mãos. Anteontem (27 de Out.) os amigos do António José [de Almeida] reuniram à noite na redacção da República, todos armados de brownings e smiths, na iminência dum ataque. São os fanáticos? É o povo? O país não é. O país está bem representado neste pobre António Lourenço que veio por aí abaixo da Guarda e que quer por força pregar ao governo e ao ser. Afonso Costa a ideia de Deus. – “Tudo isto mudará no dia em que eu os convencer”... »

O leitor recordará que ainda não eram passados seis meses sobre a aprovação pelo governo provisório da fundamental “Lei de Separação do Estado das Igrejas” , da lavra do dr. Afonso Costa e mais confrades maçónicos, que teve funda repercussão no país e mereceu o repúdio da Igreja Católica portuguesa e da Sé romana. Não foi ela sem relação com o apoio e envolvimento directo ou indirecto de muitos padres no norte com a incursão de Couceiro. Como não será sem relação com a vinda deste notável guardense a Lisboa. Quem era António Lourenço? Eis como no-lo dá Raul Brandão:

« Deve ter mais de cinquenta anos. É uma figura seca, amolgada pela vida. Tem não sei quê de grande e de triste. Quer exprimir-se e balbucia. É um aldeão que desceu da montanha e vem pregar ao povoado. Vê-se que aquela ideia o dominou até fazer parte integrante de todo o seu ser. Largou tudo, deixou tudo e pôs-se a caminho. Onde dorme? Onde come? Não sei, nem ele decerto o sabe. A todas as perguntas responde sempre da mesma forma obstinada:

- É preciso demonstrar a esta gente que Deus existe. Não sou católico, não me importo com igrejas nem com padres. Entendo, porém, que o mal de que padece toda a nossa sociedade é a descrença em Deus e o progresso do materialismo. »

Não é católico, mas tem letras, reivindica uma certa doutrina e está pronto a responder por ela:

« E António puxa dum papel. – O que quero está escrito aqui:
A ruína do país vem dos materialistas. Materialistas são os homens que dizem que não há Deus e que o homem é só matéria. Os homens que eu acuso, que se justifiquem; eu estou pronto a sofrer se não provar o que afirmo.
Por este meio ficam avisados os sábios materialistas a apresentarem-se a debater comigo, em reunião que daqui a dias se anunciará.
Deus existe!

Peço-lhe que assine o nome, e, vagarosamente pegando na pena com os dedos nodosos e habituados à enxada, ele assina: António Lourenço. António Lourenço vai pregar o idealismo às turbas de Lisboa. Quer principalmente discutir. »

Queria discutir e teve discussão; queria reunir a debater com os sábios, e surgiu esse inesperado e singular debate, com um sábio interessado e muito informado dos mais recentes progressos das ciências, e por essa altura já preocupado com a realização dum sistema filosófica explicador do inteiro universo, do homem e da vida. E é este encontro extraordinário que eu acho merece hoje comemorar-se, não certamente o dos republicanos no jornal República, de pistolas aperradas para defesa pessoal. Brandão relata-o assim:

« À noite surge inesperadamente [Guerra] Junqueiro e pergunta logo: - O cavador? Onde está o homem? – Fui-lho buscar. E tenho pena de não poder reproduzir textualmente a ironia que faiscou e durou um minuto irisada como uma bola de sabão.

- O senhor que é na sua terra?
- Cavador.
- Então como é que Deus existe?
- Porque foi ele que criou tudo isto.
- Quem criou tudo isto não foi Deus, foi o Diabo. Deus não pode criar senão uma obra perfeita. Ora tudo no mundo é imperfeito e o homem é mau. O senhor na sua vida nunca encontrou anjos.
- Mas, segundo a doutrina dos nossos maiores, no Paraíso o homem era bom.
- No paraíso o homem já era mau. (...) »

A “doutrina dos nossos maiores” não era a dos católicos, que Lourenço dizia não ser: no Paraíso o homem era inocente do bem e do mal. Junqueiro, por seu lado, num dos seus repentismos famosos de cómica caricatura, improvisava ad hoc um dualismo maniqueu para confundir o pobre com o problema do mal.

Estávamos em 1911. Não demorariam muitos anos para que o satirista Junqueiro, sem aparentemente nenhuma “irisação de faiscante ironia”, confidenciasse estas reflexões ao seu amigo Raul Brandão no dia 9 de Julho de 1921: « Também para mim o Inferno não existia. Hoje sei que há Inferno, o Inferno existe! Bem vê que Deus é infinitamente bom e infinitamente justo; portanto, o Inferno tem de existir, para as almas que durante a eternidade se não arrependerem. Mas há almas que não se arrependam durante a eternidade?... O cristianismo é uma verdade eterna. Melhor: existiu sempre, existiu antes de Cristo... »

terça-feira, julho 20, 2010

O PESO MAIS PESADO

« O século XVIII usou a palavra “Lisboa” como hoje usamos a palavra “Auschwitz”. Que peso pode uma referência cruel transportar ? Não é preciso mais que o nome de um lugar para se obter este significado: o colapso da mais básica confiança no mundo, o ponto que torna a civilização possível. Ao perceberem isto, os leitores actuais podem sentir-se melancólicos: ditosa a época em que um tremor de terra podia fazer tais estragos. O terramoto de 1755, que destruiu a cidade de Lisboa e matou tantos milhares de pessoas, abalou o Iluminismo até à Prússia Oriental, onde um desconhecido académico menor chamado Immanuel Kant publicou três ensaios sobre a natureza dos terramotos num jornal de Konigsberg. Kant não estava sozinho. A reacção ao terramoto foi tão alargada como rápida.... »

Tais são as primeiras palavras da Introdução de Susan Neiman ao seu livro O Mal no Pensamento Moderno (original de 2002).

Numa das atoardas tão ao seu jeito, dizia o filósofo Nietzsche que tinha como seu ideal de humanidade um indivíduo que juntasse em si a inteligência subtil duma mulher judia com a disciplinada resistência do soldado prussiano. Eu acho que a resistência disciplinada a encontraria ele na maior parte das mulheres judias, não por judias, mas por serem mulheres; e que o tal ideal assenta tão bem ao próprio Nietzsche quanto à filósofa que foi capaz de escrever este livro. Mas isto não se deverá tanto a ser judia como simplesmente a não ter esquecido uma certa vocação: « como tantos outros, vim para a filosofia para estudar questões relacionadas com a vida e a morte, e ensinaram-me que a profissionalização exigia que as esquecesse. Quanto mais aprendia, mais me convencia do contrário: a história da filosofia era, de facto, animada pelas questões que nos levaram a ela. » É o que excelentemente diz a terminar a Introdução, mostrando no mesmo passo quanto o Mal está de facto presente desde as primeiras páginas do seu livro ( a profissionalização exigia que as esquecesse...), e que estamos diante alguém capaz de o enfrentar ( e fazer bem ao leitor que queira verificá-lo por si). Por mim, força por força, quereria antes a desta mulher aqui.

A referência a Lisboa ocorre em não poucas passagens do livro e, muito especialmente, nas págs. 270-280 do cap. IV, titulado “Sem-Abrigo”. O terramoto surge como o que de facto foi para a consciência europeia do tempo: um paradigma do “mal natural”, caído em cheio no meio do Iluminismo setecentista. O outro acontecimento é Auschwitz, como paradigma do “mal moral” que os humanos nos podemos fazer uns aos outros, num século iluminado pelos fornos crematórios e pela bomba atómica.

Para a autora, « o que se passou nos campos da morte de Auschwitz foi de um mal tão absoluto, como nenhum outro em toda a história da humanidade, que desafiou a capacidade humana de compreensão.» Desafiou e desafia. E o leitor verá se, quanto a isto, a filósofa Susan Neiman conseguiu ir mais além do que foi outra mulher judia de inteligência subtil – a filósofa Hannah Arendt. Julgo defensável que sim, mas descubra-o o leitor, que lhe recomendo vivamente o livro.
Se a capacidade humana de conhecimento terá limites kantianos, os da imaginação não parece possível demarcá-los “a priori”. Veja-se este contra-teste com que o filósofo italiano Georgio Agamben pretendeu responder ao teste de Nietzsche:

« Vamos imaginar que repetimos a experiência que Niezsche propôs, sob o título “O Peso Mais Pesado”, em A Gaia Ciência. Um dia ou uma noite, um demónio desliza para junto de um sobrevivente e pergunta-lhe: - “Queres que Auschwitz volte a acontecer repetidamente, vezes sem conta, queres que cada instante se repita pela eternidade, regressando-se eternamente à exacta sequência em que tudo aconteceu ? Queres que isto aconteça repetidamente por toda a eternidade ?” Esta simples reformulação da experiência é quanto basta para a sua refutação sem qualquer dúvida, excluindo-se a possibilidade de vir sequer a ser proposta. »

Antes de mais comentário, uma palavra é devida ao leitor que não tem de conhecer uma teoria que Nietzsche retomou e retocou da filosofia pré-cristã nestes termos: para uma Natureza eterna, espacialmente finita e temporalmente infinita, constantes os mesmos elementos fundamentais, as forças e leis que sobre eles actuam – então tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá nesta Terra ( e no restante universo) com todos os seres que a ela vêm, já aconteceu e acontecerá infinitas vezes, com exactamente os mesmos seres e acontecimentos, numericamente iguais entre si e pela mesma sequência, incluindo o esquecimento disso. Mas ao filósofo alemão interessava mais o aspecto existencial e ético da questão: só uma vontade capaz de aceitar e querer um tal cenário é que passaria o teste duma genuína “fidelidade à Terra” e total aceitação dos “valores da vida” (com seus bens e seus males).

A proposta de Agamben-Nietzsche pode ter consequências inesperadas. – Suponha-se que o “eterno retorno do mesmo” é a verdade, e há uma casta de “sobrehomens” dignos da revelação de “Zaratustra” que o sabem, e sabem-no de tal modo que não estão afectados pelo esquecimento. Tais seres sabem que Auschwitz aconteceu e voltará a contecer infinitas vezes... - no seu passado; e podem determinar-se a que isso não aconteça para si e seus descendentes. Nesse caso, Auschwitz nunca mais aconteceria para eles e seus descendentes (sempre e só para os seus ascendentes de memória curta).

- Eis a importância de preservar a memória de Auschwitz. -

Infelizmente há outra alternativa, mais congruente com o teste demoníaco proposto a Agamben. Um Mega Zaratustra viria anunciar que tais “sobrehomens”, ao permitirem-se seleccionar e excluir no passado coisas tidas como males “insuportáveis”, provavam com essa tentativa de fuga que ainda não tinham uma inteira “fidelidade à terra” e que,“demasiado humanos”, não estavam ainda completamente “para além do bem e do mal”. (Implícita, uma vez mais, a atracção da soberana equanimidade estóica diante do bem e do mal...) Os novos “hiper-sobrehomens” não só não deveriam recear como deveriam querer um Auschwitz ainda maior, para limpar esse pecado de ressentimento e fraqueza...

Assim, como é patente, também as consequências da famosa doutrina do filósofo que se queria “para além do bem e do mal” são trivialmente boas e más, como as de qualquer doutrina “demasiado humana”, com esta diferença a desfavor: não se vê o que esteja nela a fazer uma “vontade de poder” que é só servil duma Necessidade cósmica inexorável. Menos ainda: não se vê para que existe uma qualquer “vontade”, postulada a aceitação incondicional de tudo, incluindo todo o bem e todo o mal. E ainda menos, nada : nenhuma vontade; nenhuma diferença substantiva entre o bem e o mal, ambos constituintes essenciais da vida; e, se igualmente necessários, nenhuma possibilidade de um “para além” do bem e do mal que não seja afinal redutível à sobredita impassibilidade estóica, que o jovem Sade admirava.

Por seu lado, comenta Susan Neiman: « A experiência mental de Agamben é decisiva. Uma vez formulada, não pode imaginar-se ninguém suficientemente grotesco para a levar a cabo. » Não suficientemente “grotesco”, mas alguém suficientemente sádico: um torcionário nazi escapado impune aos campos de morte. Como vê, leitor, não nos livramos facilmente do senhor de Sade. A ver se no próximo postal.



[ Apesar de neste ponto se ter esquecido dele, o capítulo dedicado ao marquês pela autora no seu livro ( citei a trad. port. de Vítor Matos, 2005) é notabilíssimo, até pelo correctivo de razoabilidade que dá às fantasias dalguns maitres à penser franceses em moda de mancomunar Sade com Kant (!). ]

sexta-feira, julho 16, 2010

O DIÁRIO DE NOAGA



16 de Julho

« Gostava tanto de saber o que fazem as crianças nos outros países do mundo. Será que um dia poderei vir a sabê-lo? »


[ Última entrada do diário começado aqui. ]

terça-feira, julho 13, 2010

SADE CONTRA KANT

« Não nos prova a Natureza até que ponto a nossa multiplicação a incomoda? .... Não nos põe ela à prova pelos flagelos com que nos atormenta sem cessar, pelas divisões, pelas discórdias que semeia entre nós .... por essa inclinação para o assassínio que a todo o momento nos inspira? .... Assim as mortes que as nossas leis punem com tanto rigor, as mortes que nós julgamos ser o maior ultrage que é possível infligir-lhe, não só, como vedes, não lhe causam nem podem causar dano algum, como são mesmo, de algum modo, úteis a seus olhos, pois que a vemos imitá-las tão frequentemente; e é bem certo que ela o faz só porque desejaria o aniquilamento total das criaturas lançadas em jogo, a fim de gozar da faculdade que tem de lançar em jogo outras criaturas. O maior celerado da terra, o criminoso mais abominável, o mais feroz, o mais bárbaro, não é senão um instrumento das suas leis .... senão o móbil da sua vontade e o mais seguro agente dos seus caprichos .... Nunca se cometerão suficientes crimes à face da terra perante a sede ardente que a Natureza tem deles. »

Alinha por este teor o Système de la Nature que numa obra da maturidade literária (La Nouvelle Justine) o marquês de Sade põe na boca... de um Papa. Acha o marquês na “Natureza” o vazadouro conveniente das “paixões fortíssimas” e o meio de alijar a responsabilidade delas, que afinal fazia cobrar na pele dos seus semelhantes. (Mas, para o grand seigneur do Ancient Régime, podiam lá ser as prostitutas de Marselha pessoas humanas suas “semelhantes”!...)

Não interessa aqui tanto o caso particular do indivíduo Donato de Sade, aliás não sem interesse: vinte e sete anos preso sob os diferentes regimes políticos que se foram sucedendo na sua coetânea França, parecem configurar o perfil dum citoyen intratável e irredutível à sociabilidade normal do homem “por natureza” político, de que nos falava Aristóteles; sem que sequer possamos falar da associabilidade de um therion, um ser monstruoso, porque o sádico precisa de sociabilizar e insinuar-se junto das vítimas que quer maltratar. Aqui temos já um ponto interessante, a sublinhar e endossar aos defensores duma teoria naturalista do fenómeno político. Mas não é isso que me traz hoje aqui.

Vimos no postal anterior que, para o philosophe scélérat, a existência ou não existência da liberdade era, no fim de de conta, irrelevante; nem há contas finais nenhumas: as mais unânimes ou discordes decisões dos vivos têm as mesmas terminais consequências para todos – o nada da morte aniquiladora. Mas... não sabemos. E se também de apodíptica e irrefutável verdade se não sabe se há realmente liberdade, - sabe-se ao menos isto: temos duas crenças radicalmente contrárias em confronto e, portanto (livre ou não livre) a possibilidade de uma alternativa. – Uma alternativa existencialmente actualizada em pelo menos dois casos conhecidos e parentes de Sade - Gilles de Rais, no séc. XIV, e Ted Bundy, no XX -, indiciando que a pretensa “fatalidade” ou não existe ou pode ser superada. É que não se entende que a mesma necessidade (a existir) gere resultados contraditórios : o remorso e arrependimento; ou a obstinação incontrita. E fiquem desde já claros os termos da alternativa: uma decisão (mais ou menos consciente) a favor da transmissão e protecção da vida, seja esta meramente biológica, meramente restante, residual e ferida de morte neste mundo; em contra a indiferença ou a apologia da aniquilação de qualquer forma de vida.

Quanto à lei moral, é esta, kantianamente, a lei da própria razão prática e, por isso, Imanuel Kant não concebe como propriamente humana – sim diabólica – uma razão de tal maneira independente da lei moral que pudesse agir de contínuo e sustentado ânimo contra a lei moral, como se fosse um “dever”. Concedo não haver aqui por que falar em razão, mas de aí não segue a impossibilidade da intenção enquanto mera disposição: esta, por um lado, não tem de ser racional (e sucede-lhe abominar qualquer razão); depois, é tanto mais poderosamente motivado quanto, no sadismo, a violação da lei moral é imediatamente compensada com um prazer que, na conduta moral, o simples cumprimento do dever não garante à pessoa virtuosa (antes muitas vezes paga com penoso sofrimento e até o sacrifício da própria vida). Uma motivação poderosa e tanto mais facilmente acessível porque facilmente associada à “natural” agressividade do animal predador que tem de recorrer à violência para “sobreviver”. Eis o bastante para entendermos o facto da “natural” propensão humana para fazermos mais facilmente o mal do que o bem. Eis como, neste mundo, a vantagem está à partida do lado do sádico. E o terrível paradoxo da perversão é este: convém-lhe a existência de uma lei moral, o que lhe assegura o máximo de prazer na violação dela. Onde é que então o sádico (se) perde ? Julgo que em duas afirmações sem caução racional nenhuma, porém congruentes com a desresponsabilização das “paixões fortíssimas”, que sente em si próprio, e com a “sede ardente” da erupção vulcânica delas, que imputa à “Natureza”. Tais são : - que a lei moral existe e deve existir (para ser pervertida), mas apartada de qualquer justiça; e que não há nenhuma justiça triunfante neste ou nalgum outro mundo.

Compreende-se, deste ponto de vista, que Sade nunca tenha reconhecido sua a autoria da sua primeira Justine ou les Malheurs de la Vertu, cujo final viria anos depois a corrigir na Nouvelle Justine, associada a Juliette ou les Prosperités du Vice : na primeira, a vida longamente seviciada de Justine (a Justa) acaba fulminada por um raio do céu, mas cujo relâmpago ilumina a conversão subsequente da viciosa irmã Juliette, que enfim arrependida procura remissão na vida religiosa; na segunda, Justine acaba da mesma maneira, mas o raio é entendido como a cúmplice participação final duma “Natureza” maléfica, que incita a comparsaria dos torcionários a levarem o sadismo até à necrofilia. (Vemos, pois, que aquela alternativa existencial atrás referida não deixou de ser literariamente contemplada na obra de Sade.)

Que não há nenhuma justiça triunfante em nenhum mundo possível, é uma crença que nos confronta com o outro postulado essencial à razão prática kantiana: o da imortalidade da alma humana. O ódio à vida levou o marquês a imaginar-se uma final auto-destruição total da “Natureza”, menos congruente com a sua apologia do “amor” pela crueldade, mais com algum fundo desejo duma final absolução de tudo no “nada”. Mas, também aqui, há outras alternativas. A kantiana parece a mais digna de ser crida por um ser racional; porém, é precisamente aqui que a objecção sadeana cobra toda a sua dura pertinência: como dar conta, num ser “racional”, não somente duma inclinação “natural” para um “amor de si” (já incapaz de compreender um indivíduo que assume o desejo da auto-extinção de si e de tudo o mais), mas a vontade feita e satisfeita de fazer sofrer todos os seres vivos o mais possível, por todos os meios? Julgo que fica neste ponto transparente a insuficiência duma ética cuja “lei moral” se deixou ficar “nos limites da simples razão” humana, limites que só na especulação abstracta se pode pretender fixar, mas que na concreta existência das pessoas são limites muito mais difusos do que o grande filósofo alemão gostaria. Ora, neste campo, a insuficiência não é nenhum defeito apenas conceptual, corrigível com aprofundamentos ou correcções da teoria : significa uma incapacidade prática para a afirmação existencial do valor. E é por isso que não vejo nenhuma vantagem, mas perigo mortal, na substituta versão que para consumo filosófico deu Kant da Lei das leis, como ele próprio lhe chamava: - Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Nestes termos, sim, temos clara a razão maior humana e única suficiente.

Há um traço comum à primeira e segunda versões da história de Justine, que não é demasia sublinhar e decisivamente importa não esquecer: apesar de submetida a todos os sofrimentos e maus tratos imagináveis pela imaginação sádica, a Justa, embora sofrendo também essa tentação, nunca jamais é levada a fazer o mal ou a comprazer-se com ele de qualquer modo, e permanece até ao fim “escrava da Divindade no coração”. Isto quando outras personagens de boa índole são levadas a fazê-lo, o que é o cúmulo do prazer para esse prototípico ministro do mal que Sade personificou na figura a que chamou Saint Fond (que soa: Sem Fundo). Como se houvesse no fundo um limite irredutível, intratável, invencível: e há, de facto, na maravilhosa e terrível experiência humana neste mundo, casos de pessoas que, submetidas aos maiores suplícios da tirania sádica, não se submeteram nem traíram. Como se, mesmo neste mundo, fosse possível uma Justiça invicta, que obrigasse o sadismo desesperado a jogar na morte – e a acabar na necrofilia amarrado a um cadáver. Mas, nestes casos, não sa dará e dirá então que a simples lei moral kantiana é afinal suficiente contra Sade e o sadismo? Parece-me clara a resposta: - Sim, se a imortalidade da alma é mais que um “postulado”, e Deus mais que uma ideia da “simples razão”.

quinta-feira, julho 08, 2010

O SISTEMA DO NADA

« MORIBUNDO: - Escuta... Criado pela natureza com gostos ardentes, com paixões fortíssimas, unicamente colocado neste mundo para a elas me entregar, para lhes dar satisfação, e sendo estes efeitos da minha criação meras necessidades relacionadas com os grandes objectivos da natureza ou, se preferires derivações essenciais dos seus prejectos a meu respeito, em total acordo com as suas leis, de uma só coisa eu estou arrependido: o não ter reconhecido devidamente o seu poder soberano (...).

PADRE: - Mas por certo haveis de admitir que existe alguma coisa depois desta vida, é impossível que o vosso espírito não se tenha alguma vez comprazido a penetrar na espessura das trevas da sorte que nos espera... E que sistema pode satisfazê-lo melhor do que um sem número de penas para aquele que vive mal e uma eternidade de recompensas para o que vive bem?

MORIBUNDO: - Qual, meu amigo? O do nada! Nunca me assustou, considero-o consolador e simples; todos os outro são obra do orgulho, só este é obra da razão. Além disso, não é repugnante nem absoluto, o nada. Não tenho eu diante dos olhos o exemplo da natureza que constantemente se vai gerando e regenerando ? Nada perece, meu amigo, nada neste mundo se destrói; homem hoje, amanhã verme, depois de amanhã mosca, não será tudo isso existir? Por que haverias tu de querer que eu receba recompensa por virtudes de que não tenho mérito algum ou castigo por crimes que não pude dominar? Poderás pôr de acordo a bondade do teu pretenso deus com este sistema, poderá ele ter desejado criar-me para ter o prazer de me punir, em consequência de uma opção que eu não sou senhor de tomar?

PADRE: És, sim.

MORIBUNDO: - De acordo com os teus preconceitos, sim; mas a razão derruba-os e o sistema da liberdade do homem foi por vós inventado somente para forjar o da graça, que tão favorável era aos vossos devaneios. Qual é o homem que, vendo a forca ao lado do crime, cometeria este se fosse livre de não o cometer? Somos arrastados por uma força irresistível, e nem por um instante somos senhores de escolher outra coisa senão aquela para a qual estamos inclinados. Não há uma só virtude que não seja necessária à natureza e, reversivelmente, não há crime de que ela não tenha necessidade, e é no perfeito equilíbrio por ela mantido entre uma coisa e outra que consiste toda a ciência; mas poderemos nós ser responsabilizados pelas inclinações que ela nos dá? Não mais do que a vespa que te espeta na pele o ferrão. (...) »

Aqui ficam alguns trechos do Diálogo Entre um Padre e um Moribundo, obra da primeira fase literária de Sade, ainda muito influenciada pelo naturalismo materialista de Helvetius, d’Holbach e La Mettrie (o título mais famoso deste último é todo um programa: L’Homme Machine...). Posteriormente, a Natureza deixa de aparecer-lhe dotada de uma espécie de Razão auto-regulada e providencial (à maneira do Logos estóico), para a qual concorrem tanto o bem como o mal, e o marquês parece mais inclinado a outra perspectiva: a Natureza cósmica como criação monstruosa de um Deus monstruoso, legitimando todo o mal que o homem é capaz de sentir e de fazer. Sem alternativa nem esperança de nenhum Deus bom, que não existe. (Rejeita-se, pois, a alternativa maniqueia.) É a apoteose do mal, e qualquer aparente bem concebível não passa de um mal insciente ou impotente. Mas, neste opúsculo juvenil, o autor ainda alega respeitos à “razão” e a uma lei moral, mesmo se é incongruente e, afinal, impotente diante as “paixões fortíssimas”. Temos, assim, as premissas existenciais suficientes para uma posição radicalmente contrária à de Kant.

Repare-se naquele “nada” oposto ao “sistema” de que fala o padre. Pretensamente referido a um pós-vida, afinal reverte e nadifica toda a existência vivida ante mortem, a começar pela liberdade. – Suponha o leitor que aceitamos a necessidade ou fatalidade com uma espécie de amor fati nietzscheano: não só aceitar o mal, como também querê-lo. Mas, se é uma fatalidade, por que deve ser querido o que de facto e de qualquer modo se tem? E porquê o que, querido ou não querido, de facto e de qualquer modo concluiria no “nada”? Nenhuma razão e nenhum motivo: nada. Mas suponhamos então que haveria alguma genuína liberdade de escolha. - O mesmo resultado: se, no fim, nada, porquê antes o mal do que o bem, ou o inverso ? Apenas meras conveniências tácticas de interesse pessoal, meu ou dos meus. Mas, neste caso, bem ou mal são apenas sinais do que favorece ou prejudica o interesse; e concluímos no mesmo nada: existiriam apenas interesses em concorrência. Aliás provisórios e sem mérito ou valor relativos nenhuns, porque tudo no final terminaria para todos no “nada”. Portanto, ou com a fatalidade ou com a liberdade, tudo remonta ao mesmo e tudo é no fim indiferente.

Foi por isso que o último Sade (ao que parece) e o alemão Nietzsche viram que, se há uma vontade que vale, o valor de o que quer não pode ficar totalmente confinado e esgotado na mera (e única) existência espacio-temporal do indivíduo. – A teoria do “eterno retorno”é consistente com uma vontade que “quer para a eternidade” o que quer. Neste caso, não se conclui no nada. Haveria então outra existência? Não exactamente outra. A “fidelidade à terra” do filósofo alemão (e a sua vontade de preservar os valores da “vida” incontaminados de qualquer vírus cristão), levá-lo-ia, como se sabe, a falar dum eterno retorno do mesmo : num tempo infinito, o conjunto de elementos finitos que forma (por acaso) um mundo, voltarão, com o tempo, a formar (por acaso) um mesmo mundo, com as mesmas leis e os mesmos acontecimentos e seres a elas submetidos. E assim eternamente. Portanto, não o “nada”, mas sempre mais do mesmo. Eis a prova suprema do amor fati por este mundo e esta vida. Mas, como é evidente, a mesma total indiferença perante o bem ou o mal (ambos retornam igualmente, de igual forma). Deste ponto de vista, Nietzsche colocava-se efectivamente “para além do bem e do mal”. Contudo, para o efeito, não era preciso tanta repetição de mundos: bastava, num único mundo, a repetição das gerações à lei do interesse amoral protagonista da história que contámos aqui, enquanto há combustível para alimentar a chama da “vida”.

Combustível é o que não falta no texto de Sade para alimentarmos outros postais.


[ Os trechos citados, com outras obras menores de Sade, encontram-se num livrinho titulado A Verdade (título de um poema de 1787), trad. port. de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes, Lisboa, 1989. ]

terça-feira, julho 06, 2010

GUERRA JUNQUEIRO


No dia 7 de Outubro de 1910, Raul Brandão registava a publicação deste telegrama enviado pelo seu amigo Guerra Junqueiro, que começava e terminava assim:
« Ao Governo Provisório da República Portuguesa – Lisboa –. Saúdo na República a libertação magnânima e sublime do grande povo português. (...) Esperemos agora que a República seja sinónimo de ordem e de harmonia, de inteligência e de trabalho, de amor e de justiça, de liberdade e beleza, para que a história de Portugal esplenda no mundo novamente. Viva a pátria republicana! Viva Lisboa, a cidade heróica! »
A 17 de Maio de 1911, cerca de um mês após aprovação da Lei da Separação Estado-Igrejas, que o poeta classifica de uma “lei estúpida” que “só o mau padre ou o bandalho podem aceitar”, pronuncia-se assim sobre o ambiente político: « A república ou se modifica ou morre. Isto não resiste a quarenta tumultos por esse país fora. Junte ao movimento religioso os ódios, as paixões, a gente que conspira na fronteira. E ainda por cima não há maneira de formar um ministério homogéneo: o Afonso [Costa] e o Almeida [António José de] não se podem ver; o Camacho não esconde o seu desprezo pelo António José.... »
Meses depois, a 31 de Dezembro, Brandão regista estas palavras : « Mas Junqueiro, como sempre, sintetiza muito melhor a situação nestas palavras: - Já hoje, se fosse possível fazer um plebiscito ao país, não com papéis, mas dentro da consciência de cada um, na escuridão do seu quarto, a maioria monárquica era esmagadora. Havia menos republicanos do que antes do 5 de Outubro. »
O poeta foi, entre 1911-1914, o embaixador de Portugal na Suíça. Alguns anos depois, no último capítulo do 2º volume das suas Memórias, um registo intitulado “Os últimos anos de Junqueiro”, sem data:
« Fala sempre dos homens da república com grande amargura e desprezo: - Todos se anicham nos melhores lugares, eles e as famílias. Fora o Almeida [António José de] e mais dois ou três, o resto devora. »
E, com data de 9 de Julho de 1921, faz acta do seguinte:
« Ontem fui ao Porto, chamado por Junqueiro. Conheci o grande poeta em diferentes épocas da vida, mas nunca me fez tanta impressão como agora, posto diante de mim, magro e doente, com os braços estendidos e as mãos abertas: - Pesei o bem que fiz e o mal que fiz... (...) Toda a minha obra fica por fazer – exclama. O que publiquei é nada. Tenho dosi poemas, um e outro concluídos, perfeitos, admiráveis desde a primeira à última palavra, aqui... – aponta a cabeça – e não os posso escrever! A minha filosofia, em que trabalho há anos, aí fica fragmentária... Venha ver. Está no meu cofre.
Levanta-se, leva-me ao quarto. Mostra-me maços de manuscritos. [ Eram mais de quatro mil páginas de anotações, em que o poeta, que se dedicou também a vasto e longo estudo das ciências naturais, trabalhava há cerca de trinta anos e que projectava publicar com o título A Unidade do Ser. ] - Está aí tudo. Em seis meses concluía-a – mas não posso, não posso!... Tenho-a pronta, o problema da vida resolvido, desde o átomo ao santo, desde o santo a Deus. E não posso!... O que aí está são tentativas que fui escrevendo pela vida fora até descobrir a verdade. (...) Durante oito anos deixei de trabalhar por causa dessa [sic] miserável república – e agora não posso, não posso! E eu nunca fui republicano. O que disse numa nota da Pátria [1896] foi que tudo dependia do rei... O rei foi D. Carlos – e então a república impôs-se. Mas o mal não é do regímen, o mal é da nação E agora vamos acabar... »
Num registo de Maio de 1923, Brandão fala-nos de um segundo telegrama:
« Desde que adoeceu, isto é, pelo menos desde 1921, Junqueiro não cessa de debater com a sua consciência o mesmo problema. Arreda tudo. Quando em 1922 pensaram em lhe fazer uma grande manifestação nacional, Junqueiro respondeu a António José de Almeida num telegrama, pouco mais ou menos nos seguintes termos: - Paz – silêncio – morte. »
Guerra Junqueiro faleceu no dia 7 de Julho de 1923. São estas as últimas linhas que Raul Brandão dedica ao amigo, e fecham também o seu livro:
« Morreu naquela cama de ferro hoje de manhã, às cinco horas menos dezassete minutos, depois duma breve agonia. Não soube que morria. No caixão com o fatinho preto e coçado, espiritualizou-se ainda mais. Barba em bico, testa enorme, duas farripas aos lados e mãos esguias e brancas: parecia a figura de Nun’Álvares. Nem um livor cadavérico. A sala da frente está escura. À cabeceira brilha a chama de duas velas dum e doutro lado dum crucifixo com violetas. Sombras amarfanhadas ao fundo, e ao lado do caixão uma figura imóvel, com a manta pela cabeça, a velha Ana, que parece uma imagem de retábulo ou um daqueles humildes de que tanto falava e que lhe chamavam Senhor Poeta.
Olho-o e não me atrevo a julgá-lo. Nem por sombras! É exactamente o mesmo que me acontece com o atormentado Camilo. Se estes homens praticaram alguns erros, pagaram-nos bem caros, com dias de tortura e e de sensibilidade exasperada, dando-nos em espectáculo as suas dúvidas e a sua dor, em consciências que a sensibilidade é tão grande que até pesa fantasmas – enquanto os outros comem e digerem, digerem e comem, morrendo com a serenidade dos animais e dos justos. Sofrer é talvez um sinal da misericórdia de Deus. A vida eterna não se fez para as bestas!»

[ Citações tiradas do vol. II (1925) das Memórias de Raul Brandão, ed. 1999 por José Carlos Seabra Pereira. Não é costume citar-se esta extraordiária confissão de Junqueiro: “Nunca fui republicano”!... Mas, o mais importante parece-me : O “mal” não era do regime... Quanto ao “vamos acabar”, já temos visto aqui no Tonel que nunca mais acabamos... de acabar. É um velho temor do muito amor. ]