sábado, março 04, 2006

'As velas ardem até ao fim', de Sándor Márai


Comprei e li em versão inglesa o romance Embers, do autor húngaro Sándor Márai, quando estive em Budapeste. Em 2001 saiu, com a chancela da Dom Quixote, uma tradução portuguesa com um título mais fiel ao título original: As Velas ardem até ao fim. (Não sei se existe outra tradução portuguesa da obra.)

A acção do romance (tratar-se-á de uma novela?) inicia-se com o reencontro de dois amigos de juventude, que se haviam afastado quarenta e um anos antes em circunstâncias trágicas. A cena desenrola-se numa só noite, num velho castelo localizado no sopé dos Montes Cárpatos que pertence a Henrik, antigo general do Império Austro-Húngaro, que recebe o seu antigo companheiro de armas, Konrad. A secreta relação amorosa que Krisztina, mulher de Henrik, manteve com o sensível Konrad termina quando este subitamente abandona Viena e ela se suicida. Henrik descobre, com surpresa, a dupla traição de que fora vítima e daí em diante a sua vida perde a sua raison d’être e torna-se um deserto existencial.

A reconstituição, ou a interpretação, que Henrik consegue fazer da relação assolapada (a palavra “assolapada” significa escondida e não inflamada) entre Konrad e Krisztina é fragmentária e insatisfatória – em caso algum é possível reconstituir a “verdade” dos factos. Mas o que mais angustiara Henriki foi não compreender os incompreensíveis sentimentos que moveram os dois amantes e os levou à traição. A mestria da técnica narrativa de Marai não reside no facto de os acontecimentos do passado serem narrados em analepse quarenta e um anos depois, mas antes no facto de, no reencontro dos dois homens, a reconstituição ser feita por aquele que dos três menos sabia do que se havia passado e que desconhecia os motivos e os sentimentos que levaram os outros dois à traição – como se tais motivos e sentimentos fossem verbalizáveis. Quando o previsível seria que Konrad preenchesse, durante a conversa, os vazios do passado e avançasse explicações, Márai opta por limitar a personagem a curtíssimas (e nada esclarecedoras) falas ao mesmo tempo que decide que a recriação fragmentária de Henrik esteja despida de uma curiosidade tensa e de perguntas insistentes – há muito que este havia deixado de querer ver esclarecidas as suas dúvidas, porque as respostas já não o fariam recuperar o sentido que a sua vida tinha perdido.
Um outro aspecto central da narrativa, menos tocante mas não menos interessante, encontra-se no paralelo que é traçado entre a decadência do Império Austro-Húngaro e o percurso trágico das três personagens, que representam metonimicamente aquela nação. A pátria prestes a desabar assiste à perda de influência da nobreza e do exército, ao carácter obsoleto dos valores da nobreza (hierarquia, honra, patriotismo, etc.) num mundo em mudança (início do séc. XX), à emancipação da mulher – questões subterrâneas mas marcantes na relação das três personagens. Sendo homens do seu tempo, Henrik e Konrad não conseguem sobreviver ao colapso desse mundo. Por isso, quando se reencontram, em 1941, são já dois anacronismos, dois simulacros (para usar o termo de Baudrillard) num mundo que está numa nova transição – note-se que a Grande Guerra que então se trava nunca irrompe na conversa dos dois antigos soldados. Para além de estarem interiormente mortos também o estão ontologicamente, porque a realidade em que vivem deixou há muito de ser a sua.

2 Comments:

Blogger Ricardo António Alves said...

Caro Amigo: excelente este «Tonel». Já tem resposta no «Abencerragem»: força com o Nobre. Um abraço e até breve.

5:53 da tarde  
Blogger as velas ardem ate ao fim said...

foi dos livros mais belos que li, e leio muito por que me dá um prazer enorme, igual prazer só obtenho quando viajo.Para mim este livro é "apenas" um tratado à amizade, a formula mais sublime de amor.
acho que pelo titulo devem pensar que estamos perante um sem número de folhas que nunca mais acaba( tipo o Hemingway nos Por quem os sinos dobram) mas não é pequeno lê se de um rajada mas não pela sua pequenês mas sim pela forma sublime como está escrito.

Amei todos aqueles amores, sofridos onde cabe a desilusão, traição, mas também o perdão numa so noite...numa so vida...não sei o que te diga amei!

Bjos e obrigada por quereres saber a minha opinião.

dsc se não concordares mas é assim que o leio.

11:14 da tarde  

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