Desafios à interpretação #1
Tenho uma proposta para os leitores deste blogue que resulta de uma conversa que em tempos tive com dois amigos (um dos quais tem comentado regularmente os posts do Tonel). Aqui há um par de anos não concordávamos na interpretação que fazíamos da peça que se encontra epígrafe, intitulada Menino Imperativo (1951, FCG), composta pelo surrealista português Marcelino Vespeira. Lembro-me que, na altura, me agradou muito ouvir leituras da peça quase oposta à minha. Foram uns minutos estimulantes de conversa.
Assim, porque os escribas deste blogue e os seus leitores acreditam que a Arte se produz para provocar reacções e interpretações diferentes, deixo um desafio. Convidam-se os leitores do Tonel a avançarem significados para o Menino Imperativo. Deixo algumas linhas de leitura problemáticas (entre outras a explorar) que necessitam de esclarecimento:
.O que significa o título?
.Como se relaciona o título com a peça?
.Porque está o “Menino” aparentemente fardado?
.Como explicar a posição "firme e hirta" da figura?
.Como interpretar o facto de a sua cabeça ser um búzio?
.O que podem representar as velas acesas sobre as dragonas?
.Como interpretar o facto de a sua cabeça ser um búzio?
.O que podem representar as velas acesas sobre as dragonas?
.Como interpretar a cera das velas derretida sobre o tronco da figura?
Claro que uma interpretação não tem de responder a todas estas questões: encorajam-se também as achegas, os comentários e as explicações parciais. Apresentarei daqui a uns dias a minha leitura, que será apenas mais uma.
Claro que uma interpretação não tem de responder a todas estas questões: encorajam-se também as achegas, os comentários e as explicações parciais. Apresentarei daqui a uns dias a minha leitura, que será apenas mais uma.
Para os iconoclastas, deixa-se a pergunta: mas isto é arte?
30 Comments:
Bem... confesso que estou sem palavras. A minha miopia artística é enorme.Para começar, nem sequer vejo um menino, vejo uma gaja com umas boas ancas, em fato de banho e com um carrapito no cimo da cabeça.As velas devem ser de certeza para quem quiser usar a escultura como candeeeiro de pé. Ficaria bem num canto da sala, tipo criado mudo.O título é o mais interessante, quem tem meninos em casa sabe perfeitamente o que é um menino imperativo...
Apreciei o seu contributo. Está excelente. Continue a brindar-nos com os seus comentários.
Admiro a sua perspicácia, cara flor das montanhas, e se não fosse um iconoclasta diria exactamente o mesmo.
Será D. Sebastião (o encoberto)?!
búzio- o chamamento... batalha...
sem membros- derrota, Alcácer Quibir, 1578.
Velas- esperança, em tempos de crise é uma muito invocada...
figura androgina...
Menino imperativo: rei-menino!
Gosto muito da escultura! Associa-a a esta figura da nossa História!
Sim, julgo que é arte!
Muito interessante a sua interpretação. Não me tinha ocorrido a associação entre D. Sebastião e a figura. E, agora que mo diz, parece que faz todo o sentido. Por esta análise já valeu a pena o meu desafio. Mas como se chama (ou que pseudónimo tem) o caro(a) analista?
Chamo-me Helena... (é mesmo o meu nome!)
Caro Alexandre, uma Helena (troiana) a quebrar muros de interpretação. Curioso, não é?
Ora, aproveitando a embalagem que apanhei com o Fernando Lemos... A cabeça em forma de búzio pode querer apontar para um povo com os olhos postos no porto marítimo, um povo com olhos que espelham as águas que lhes servem de horizonte.
A farda que o menino aparentemente enverga pode remeter para a tal "ditadura de sacristia", o que justifica a impressão de atadura (os braços inexistentes quase parecem estar circunscritos à força no corpo, numa espécie de colete de forças), que culmina com as velas típicas de sacristia. Assim, a leitura que faço é a de que o trabalho remete para o povo português... menino porque em tempos difíceis e de menoridade mental, mas com os olhos ainda postos nesse mar que lhe acalenta o futuro. ;)
Ando para aqui a remoer isto há uma data de tempo.
Incomoda-me particularmente a última pergunta. A não ser arte, então, estamos perante o quê? E porque é ainda objecto de discussão? Afinal de contas, já estamos com mais de meio século de distância do seu surgimento.
Em relação às possibilidades interpretativas da obra... porque tem o título que se relacionar com a peça? Afinal de contas, estamos perante uma peça de um surrealista; e a partir deste pressuposto, a intenção escapa, desde logo, ao próprio artista. E assim sendo, e roubando as palavras a Duchamp, cada espectador oferece à obra "a sua nota particular, que não é necessariamente falsa nem verdadeira, é interessante;"
BEM! Eu nunca imaginei que os resultados do meu desafio dessem frutos tão sumarentos! Poucos em quantidade, mas interessantíssimos em qualidade... e estão a mostrar-me uma nova faceta da peça, que eu desconhecia.
Respondo à WOaB: muito interessante. Muito interessante mesmo. As duas últimas interpretações da peça remetem para a leitura do 'Menino imperativo' de algum modo como uma representação de Portugal. Agora que mo dizem, parece-me óbvio. (Mesmo assim, não abdico da minha!)
Cara WOaB, eu nunca duvidei que esta peça fosse uma obra de arte. A pergunta provocatória era para causar discussão.
Discordo do que diz em relação aos títulos. Acho que os títulos estabelecem sempre uma relação com os quadros (explicativa, metafórica, etc.). No caso dos quadros surrealistas (por ex., em Magritte) essa relação não é LÓGICA mas sim ANALÓGICA. Não sei se concorda que há sempre uma relação entre os dois elementos, WOaB.
olá a todos no Tonel!
...porque estou bastante cansado e quase não dormi, não me responsabilizo pelas associações de ideias ou iterpretação disparatadas... conto voltar mais tarde pra dizer o que vejo nesta obra... até lá, não resisto a dizer que o buzio é como uma "caixa"/objecto de ressonância... onde podemos ouvir o barulho que vem de um interior inacessível, sem verso completamente visivel; barulho que soa a uma coisa grande e imensuravel que surge do nada... (no buzio é o mar)
nesta obra não consigo deixar de pensar no buzio como porta sonora para a música interior do ser ou para os ruídos estranhos do ser, acesso aparentemente impossivel ao ser e ao mesmo tempo porta de "saída" da sua identidade/alma/pensamentos/sons/mundos/ideias/ecos... ou apenas vazio, que a massa do corpo esconde e ilude...
além disso é como se em vez de cérebro houvesse vazio... e o conteudo/massa dá lugar "apenas" a forma, oco, via, canal... como se a cabeça fosse apenas a boca e os ouvidos... vias de "comunicacar"... "apenas" expressão (como se ela fosse o proprio "conteudo"/sentido)
o búzio tb é a impossibilidade de ver tudo e conhecer mais... apenas ecos.
tou a divagar...
volto mais tarde
:)
...mas não gosto de tentar falar de obras de arte... apesar de pensar que isso é legitimo e importante...
gostei deste post (que é ao mesmo tempo um desafio, uma interpelação...)
voltarei, com mais tempo e "cabeça"
:)
...agora que vejo melhor... parece-me uma figura feminina, grávida (o buzio uma referência sexual ou de maternidade...)
(virá daí o título "menino imprevisto"?)
..."imperativo"
A sua divagação abriu linhas de interpretação que me parecem válidas e interessantes. Foi, a meu ver, um contributo produtivo e estimlante, que ganha valor porque surge numa linha diferente das anteriores. O Sr. Intruso moveu-se simbólica com laivos psicanalíticos.
Obrigado pela sua colaboração.
Há um post relacionado com este em: http://umblogquesejaseu.blogspot.com/
Ainda não nos esclareceu quanto à sua interpretação... É que estou muito curiosa.
Cara WoaB:
Tem razão. Ainda não apresentei a minha interpretação. Vou escrever amanhã um post (hoje tenho de acabar trabalho) em que resumo as leituras que foram apresentadas e escreverei também a minha, que, como lhe disse, me parece consistente mas menos ambiciosa e ousada do que a sua e a da Helena.
Bem...agradeço o convite,sabendo bem que daqui poderão sair divagações...talvez até ridículas.
Na realidade não me agrada esta estranha figura.Incomoda e não me inspira.Mas...
...Reparo numa imagem de um corpo,
criança,adulto,figura humana...
incapaz,limitada.Sem gestos,não fala,muda.Sem rosto,sem identificação,cidadão do mundo
...atento á escuridão desfocada do universo,aos sons,ás conquistas e
guerras.Um mar presente...o seu mergulho num universo onírco.
Ou talvez,e fugindo a esse universo,podemos também ver por aqui...Freud com as sua teorias do recalque,castração e Édipo.
Mostrando como a criança(tenta traduzir as mensagens enigmáticas que lhe vêm do mundo adulto...
tentativas de tradução,dos enigmas que lhe são colocados pelos adultos.Da ameaça da voracidade do desejo materno ao imperativo hipotético da lei do pai.)
E já me estou a rir de tanto disparate que por aqui estou a deixar Alexandre.
Dê-me um desconto a febre faz-me delirar um pouco!
Um imenso abraço
agradecendo sempre o seu carinho,a sua atenção.Tenho tanto gosto de o ver por lá.Obrigada.
ana.
Bem, eu vejo uma mulher grávida. Mas ela está de costas, sendo que a barriga se encontra de frente. Assim, o menino que se encontra no ventre da mulher impõem-se, contra vontade da mãe, porque a barriga está de frente. E porque o menino é imperativo. As velas não percebo, devem ser um mero adorno surrealista.
(não li os comentários com as análises - por isso a minha observação pode ser completamente desprovida de sentido. curiosamente, ando para colocar no meu blogue já há algum tempo, um post sobre o Fernando Lemos - mas ainda não encontrei nenhuma boa imagem que o ilustrasse).
Seja bem aparecida, D. Rita! Muito interessante a sua ideia de que o menino do título não é a figura que vemos mas o ser que essa figura traz no ventre.
Este desafio à interpretação está mesmo a valer a pena.
Apresento aqui a interpretação que há muito tempo tenho do ‘Menino Imperativo’. Reconheço que as leituras da Helena e da Woman once a Bird (que se encontram nesta caixa de comentários), que vêem a figura como uma interpretação de D. Sebastião ou de Portugal, me parecem mais estimulantes do que a minha, a qual é certamente condicionada pelas minhas obsessões sociais e pedagógicas.
Serei sucinto, quase esquemático. Vejo a figura (o menino imperativo) como uma representação do jovem burguês do antigo regime (a peça é de 1951), um repositório dos valores, das ideias, das expectativas da classe dominante daquele tempo. O búzio, em lugar da cabeça, representa o vazio mental desse jovem: em lugar de ter um “cérebro pensante”, tem uma cavidade oca que reproduz as ideias que ouve (como o búzio “reproduz” o som do mar). A postura hirta, as calças e as botas de uniforme aludem à disciplina, ao cumprimento de regras, a que este jovem “amestrado” se submete. (Mais tarde, quando burguês adulto, continuará a escravizar-se a essas regras sociais provincianas.) Daí o título da peça: o menino é “imperativo” porque tornar-se-á aquilo que a sociedade e a sua família determinarem – ele funcionará às suas ordens. A sua liberdade é, portanto, reduzida. A ausência dos membros superiores pode ser uma referência à sua limitada liberdade mas também à sua impotência para criar, para realizar algo que seja válido, para transformar o mundo – e liberdade e criação são ideias bem surrealistas! Por fim, as velas encontram-se no lugar dos galões militares, sendo estes supostamente a forma de reconhecimento do mérito de um guerreiro. Ora, a esse reconhecimento social se circunscreve o “mérito” deste estéril burguesinho; essa vela acesa (o mérito social) é a luz que ilumina (que dá sentido) às suas vidas. E a cera que elas queimam, e que cobre o corpo do menino, forma a carapaça incrustada das ideias e valores fossilizados (valores míopes e fúteis da classe média) que o revestem.
Alexandre, muito gira a tua interpretação. No entanto, a ideia de cérebro pensante é mesmo muito relativa. Afinal o que é transformar o mundo, realizar algo que seja válido? Não se pode simplesmente ir vivendo? Para se ser um cérebro pensante tem que se pôr constantemente tudo em causa? E o facto de eu estar a pôr em causa a tua interpretação de cérebro pensante faz de mim um cérebro pensante? E uma pessoa que esteja simplesmente a pensar o que vai fazer para o jantar é um cérebro pensante?
E já agora, a tua luta contra a burguesia não será paradoxal? Tens casa própria? Carro? Telemóvel? Computador? Ordenado ao fim do mês? Vais jantar fora? Ao cinema? Ao teatro? À praia? Gostas de comprar roupinhas novas? De viajar? Tens mulher a dias? Tv Cabo? Então és igual ao comum dos mortais: o burguês.
A sua interpretação é muito interessante. Gostei principalmente da sua leitura em relação à cera que escorre - carapaça incrustada de ideias e valores fossilizados. Os 50 anos esbatem-se quando conseguimos conferir-lhe sentido ainda hoje.
Cara Srª Flor dos Alpes:
Tenho de começar por explicar a diferença (aceite consensualmente) entre ser classe média e ser burguês. Sou, de facto, um cidadão da classe-média porque o meu rendimento mensal está bem acima do salário mínimo. Mas isso todos os cibernautas somos.
Mas ser burguês é diferente: é uma atitude perante o mundo. O resumo que faço é redutor e generalista. O burguês liga aos bens materiais e mais ainda à exibição do que possui e é e, mais ainda, do que não possui e do que não é. O burguês é um contentinho da vida (para usar a expressão do Joel Costa), que se satisfaz na folia do consumo e cuja vida se esgota nas coisas que compra e faz e na exibição do que compra e do que faz. O burguês é impotente e estéril nos seus actos. É, sobretudo, PROVINCIANO e pimba! O burguês é medíocre e sofre de miopia mental.
Talvez a Srª Flor dos Alpes ache pateta, mas há quem tente ser mais que isto. Há quem tente contribuir para a construção de um mundo melhor. Há quem queira compreender o mundo porque esta é uma forma de o poder melhorar. Há quem valorize as coisas que de facto valem alguma coisa: os homens, os valores construtivos, os sentimentos verdadeiros. Estas coisas não colhem na nossa sociedade, eu sei.
Sobre mim de novo. Tenho casa, carro, computador. Janto pouco fora, compro pouca roupa e nunca roupa de marca (não preciso que o meu prestígio social dependa disso), viajo pouco (e não alardo aos meus amigos os sítios que visitei), não tenho tv cabo e só comprei um aparelho de televisão há dois anos.
A sua argumentação é do tipo de ataque cínico a quem acredita em causas: ou se é radical ou então estamos a ser incongruentes. (Por essa ordem de ideias, um religiosos tinha de ser um hermita no deserto, um ambientalista tinha de andar nu e sempre a pé.) Mas acredite que virar as costas ao mundo e assobiar para o lado com tanta gente a passar mal e a sofrer não é uma atitude construtiva. Um burguês tem de investir na aparência e noutras prioridades fúteis e não tem tempo para isso, nem se preocupa com o outro. Não me parece que essa atitude seja admirável.
Não fui eloquente na minha distinção. Escrevi num jacto e a argumentação está fraquinha. Mas as ideias de fundo estão lá. Só um cínico não as entenderá.
Mas, sobretudo, não tome esta minha "defesa da honra" como um ataque pessoal. Lamento informá-la mas, pelo que conheço de si, a minha amiga não é burguesa e não se encaixa na definição que atrás fiz.
LOL! Está bem, então é apenas uma questão de estado de espírito e não de vida prática. Se o Sr. Alexandre o diz, eu acredito. E se o Sr. Alexandre diz que eu não sou burguesa, é porque realmente não o sou (olha que boa notícia).
Como já aqui foi notado, o significado da arte surrealista escapa ao próprio artista. Cada observador dará à obra um significado que achar mais apropriado. Por outras palavras, e partindo do principio que o Sr. Marcelino Vespeira tinha consciência deste facto, parece-me mais provável que não se tenha preocupado muito com significados complexos. O que pode ter acontecido é que as estranhas características da obra tenham servido propósitos mais práticos.
É muito mais fácil espetar um búzio no topo de uma escultura que trabalhar dias a esculpir uma face. Logo aí poupa-se uma semana de trabalho, e como é surrealista tanto faz.
As velas provavelmente serviram para iluminar a obra enquanto o artista trabalhava. Quando percebeu como seria complicado limpar aquela cera toda da escultura, decidiu deixar lá as velas. Sempre era mais uma coisa para intrigar os entendidos.
O título não tem nada a ver com a obra... Naturalmente! Afinal isto é arte, e quando de arte se trata é natural que assim seja. Ou preferiam que se chamasse "menino transformista sem braços com cabeça de búzio"?
Quanto à última questão. É sem dúvida arte. Isto porque qualquer coisa é arte a partir do momento que está num contexto de uma exposição ou evento artístico e tenha um preço exagerado.
E já agora, para algumas outras consideraçõe sobre arte (ou para me insultarem por andar a espalhar comentários subversivos) visitem o meu blog em www.krippart.blogspot.com :-)
Caro Krippmeister:
Apreciei as suas ideias e o sentido de humor que as reveste. Como não quererá que me desfaça em elogios bacocos, opto por questionar algumas coisas que disse, embora encontre justeza nas demais.
O que diz, acertadamente, sobre a intencionalidade do autor da obra de arte não se aplica só nem especialmente ao Surrealismo, mas a toda a arte. Por outras palavras, como se viu pelas análises do 'Menino imperativo', uma obra de arte potencia um conjunto de significados (uns mais válidos que outros). E o significado mais legítimo não é aquele que corresponde à intenção do autor. Esse quase não interessa. Daí que estejamos nas tintas para o facto de o artista ter pensado significados complexos para a sua obra. O sentido de uma obra de arte ultrapassa a vontade do criador. (Mas lá que ele pensa em possibilidades significativas, isso pensa.)
Discordo da sua ideia de que o título não tem nada a ver com a obra. Essa ideia está errada. (Expliquei isso num comentário anterior dessas lista.) A relação é que pode não ser lógica. Mas o título relaciona-se com a peça e abre uma linha de significados. Tens razão quando dizes que o título podia ser outro. Mas a escolha deste é significativa.
Certíssimo o que diz sobre arte.
Vou com todo o gosto ao seu blogo, que antes já visitei. Obrigado pelo comentário. Volte sempre e deixe as suas interessantes opiniões.
Abraço.
Enviar um comentário
<< Home