24 horas de ideologia americana
Iniciou-se esta semana mais uma edição da série 24, onde se relatam 24 horas de ameaça terrorista, passadas em grande tensão por uma Unidade de Contra-Terrorismo (UCT) dos serviços secretos americanos. A técnica narrativa seguida tem a sua graça: cada conjunto de 24 episódios de aproximadamente uma hora segue os acontecimentos vividos pelo grupo da UCT. Tal significa que o tempo da narrativa aparentemente representa “quase fielmente” (sem saltos ou elipses) o suposto tempo cronológico da acção.
O que me interessa, no entanto, nesta minha brevíssima análise é outra coisa. A situação narrativa, como disse, centra-se numa ameaça terrorista em solo americano, e o esforço sobre-humano de todos os patriotas (agentes do UCT, políticos, etc.) vai no sentido de eliminar o inimigo interno. Assistimos, assim, à ideologia americana a funcionar e a ser difundida da forma mais eficaz. A ameaça que assola a população dos EUA é do tipo das que a aterroriza após o 11 de Setembro: ameaça nuclear, ameaça epidemiológica ou outra nesta linha. Os inimigos são os suspeitos do costume: preferencialmente, os árabes; mas também a máfia russa, os cartéis de droga sul-americanos, etc.
Ainda assim, o mais interessante da série é, a meu ver, a legitimação do vale tudo, do atropelamento dos direitos do cidadão na realidade securitária americana pós-9/11. O protagonista, Jack Bauer, a quem o espectador se cola empaticamente, mata quem tem de matar (americanos, se necessário), tortura quem tem de torturar, para eliminar o perigo terrorista. E a nação fundadora da democracia moderna aceita a suspensão dos direitos e das liberdades individuais, justificada pela noção de necessidade nacional. O que a série acaba por representar é a América como uma espécie de Leviatã pós-moderno.
Depois há um conjunto de outros elementos que veiculam a ideologia americana: a imagem de honradez e de patriotismo do Presidente e dos que o rodeiam; a América a funcionar eficazmente com um todo bem oleado, uma espécie de formigueiro de cidadãos empenhados e mobilizados em torno de uma causa; a visão estereotipada e condescendente do outro (quem não é americano é um ser humano de calibre inferior); o maniqueísmo na avaliação de pessoas, causas e nações (“ou estão connosco ou estão contra nós”); a legitimação do uso da violência, enquanto mal necessário; etc., etc. Muito mais havia para dizer.
12 Comments:
concordo com tudo o que disseste...
(mas não deixa de ser uma excelente série... tecnica/formalmente muito boa)
:)
...não posso deixar de dizer
que,por influência de alguém muito querido,passei a adorar esta série.
o resto...é realmente o resto!
:)
beijos
Todos os outros filmes de acção americanos também são assim, qual é o problema? Se o Jack cumprisse a lei ou tivesse limitações morais morria logo na primeira série.Desliga da crítica político-social e enjoy!
Cara Sr.ª Flor dos Alpes:
Há alguma justeza no que diz (para além da subtileza humorística que já se lhe conhece). De facto, muitas séries e filmes americanos promovem a ideologia dominante dos EUA. Mas nem todos. Segundo me disseram, a série ‘Sr.ª Presidente’ não o procura fazer (não o posso atestar porque não vi). Os filmes de Oliver Stone ou de Michael Moore (entre outros) também não.
Mas, o que eu digo no post é que o ‘24’ reflecte a ideologia americana pós-9/11: legitimação do Estado securitário, da violência, da suspensão dos direitos individuais. (E a suspensão dos direitos individuais só não nos custa quando toca aos outros.) Tem toda a razão numa coisa: se não fosse assim, o ‘24’ seria uma série igual às outras. Concordo. Esta é mais ‘Realpolitik’.
Já não estou nada de acordo (nadinha mesmo!) é com o seu apelo: “Desliga da crítica político-social e enjoy!” Eu “enjóio” (e não enjoo ao) ver o ‘24’; mas não sinto que tenha que desligar os meus mecanismos crítico-analíticos. Não tenho de comer que nem ameba o que me dão. É necessário desmontar as armadilhas ideológicas, activar o nosso sentido crítico. De outro modo, seremos uns carneiros hipnotizados, umas amebas ingénuas incapazes de perceber que estão a manipular a nossa cabeça.
Termino, no entanto, assumindo que sou um “papa-histórias” compulsivo. A minha voragem de histórias é muito transversal: vai desde Tolstói, Proust e Kafka ao 007 e ao ‘24’. Adoro que me contem histórias!
Obrigado pela sua colaboração “thought provoking”. Os blogues servem mesmo para isto: debater ideias.
Talvez aí, quero dizer, no post, falte dizer que a política norte-americana sempre foi assim, embora se note mais, porque mais ostensiva, após o 11 do 9. Aliás, eles não são mais do que o melhor aluno da britânica mestra, agora mais refinada porque com maior alcance tecnológico.
> De facto, muitas séries e filmes americanos promovem a ideologia dominante dos EUA.
O caso é que a indústria de Holywood está completamente empenhada no aparelho ideológico imperial, se não é mesmo componente funcional desse aparelho -- eu, pelo menos, estou convicto desta última hipótese.
Quanto à série, teve a sua piada ao início... mas qualquer revisão em compacto evidencia a sua profunda abjecção ideológica, sustentada por uma cadeia ininterrupta de "plot devices" que, com a artificiosa gestão do tempo narrativo (ponham a coisa em perspectiva e verão que é um análogo do que fazem todas as telenovelas...), rapidamente a tornam insuportável.
De resto estou de acordo com a análise do Alexandre e aproveito para deixar dois links oportunos:
http://www.adbusters.org/metas/psycho/tvturnoff/
http://adbusters.org/the_magazine/60/Toxic_Culture_The_Great_21stCentury_Tradeoff.html
Chau,
Miguel A.
O melhor é ficar caladinho, não vá ser multado:
http://www.boingboing.net/2006/07/09/criticize_antiterror.html
Miguel A.
E já que tou com as mãos na massa, aqui ficam os links activados que postei no penúltimo comment, a ver se a cotação deles no Google sobe mais um bocado:
http://www.adbusters.org/metas/psycho/tvturnoff/
http://adbusters.org/the_magazine/60/Toxic_Culture_The_Great_21stCentury_Tradeoff.html
Bear with me,
Miguel A.
Ainda outro artiguito a propósito:
What Went Wrong with America
[http://www.project-syndicate.org/commentary/moisi7/English]
Dominique MOISI
The latest edition of the Pew Global Attitudes Survey shows that favorable opinions of the United States have fallen again in 12 out of 15 countries polled, a sad reflection of a country’s loss of image. How can America recover international legitimacy?
Miguel A.
Caro Miguel A.:
Muito obrigado pelas suas sugestões. Agradeço-lhe mesmo! (Isto é, não apenas protocolarmente.) Vou já ler o texto sobre esfera pública habermasiana e estudos literários, um cruzamento que me interessa de sobremaneira para o meu trabalho. As outras páginas são também bastante interessantes.
Já agora pergunto-lhe, conhecemo-nos? Pela inicial do seu apelido, eu até adivinharia quem o Miguel é; mas não arrisco. Se quiser revelar-me a sua identidade, mande-me um mail para o correio do Tonel (toneldiogenes@hotmail.com).
Um abraço.
> Já agora pergunto-lhe, conhecemo-nos? Pela inicial do seu apelido, eu até adivinharia quem o Miguel é; mas não arrisco.
Tou a ver que tás a ter um momento sénior, "derivado" ao meu mal escolhido nom de plume aqui no teu blogue, meu caro Alex...
É claro que nos conhecemos, mas não me parece que devas deitar-te a adivinhar: sou de facto o cônjuge da tua homónima, genitor babado duma Leonor que tu bem conheces e fellow da tua academia de Mons Solis...
Quanto a famigerada inicial, tá visto que era um pífio pun, pois já não te deves lembrar que também eu sou teu homónimo. Siga a Marinha...
Miguel A.
Tudo está esclarecido.
Abraço, Miguel.
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