A morte de Cesariny
Acabo de ouvir na rádio que morreu o poeta e pintor... não digo bem, acabo de ouvir que morreu o artista total surrealista Mário Cesariny de Vasconcelos. Com ele morre definitivamente o Surrealismo em Portugal; não o Surrealismo apenas como arte mas como filosofia de vida e atitude perante sociedade. Perde também a nossa sociedade alguém que nos ensinou a dizer não a esta vidinha burguesinha e asquerosamente patetinha que investe no efeito e na convenção em lugar de valorizar as coisas que realmente importam. Cresci muito com o seu exemplo.
Centro-me agora na obra poética de Cesariny: é que nele morre um dos poetas do século XX cuja poesia mais me fascina. A sua lírica tinha uma força que nem a de O'Neill nem a de nenhum outro da sua geração tinha - temos que abrir apenas uma excepção para a obra de Herberto Helder.
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Deixo um excerto de um poema sobre a vidinha em Lisboa há sessenta anos atrás... mudaram as moscas, mas sempre a mesma é a...
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Há uma hora, há uma hora certa
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Há uma hora, desde as sete e meia horas da manhã
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Estamos no ano da graça de 1946
em Lisboa, a sair para, o meio da rua.
Saímos? Mas sim, saímos!
Saímos: seres usuais, gente
gente! olhos, narinas,
bocas,
gente feliz, gente infeliz, um banqueiro, alfaiates,
telefonistas, varinas, caixeiros desempregados
uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo
aos mictórios para apanhar eléctricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, normalmente silenciosa
mas obrigada a falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz do eléctrico, em marcha,
gente jovial a acompanhar enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua
menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.
Humanidade cordial, em suma,
com todas as consequências disso mesmo
e a sair a sair para o meio da rua.
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Há uma hora, desde as sete e meia horas da manhã
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Estamos no ano da graça de 1946
em Lisboa, a sair para, o meio da rua.
Saímos? Mas sim, saímos!
Saímos: seres usuais, gente
gente! olhos, narinas,
bocas,
gente feliz, gente infeliz, um banqueiro, alfaiates,
telefonistas, varinas, caixeiros desempregados
uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo
aos mictórios para apanhar eléctricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, normalmente silenciosa
mas obrigada a falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz do eléctrico, em marcha,
gente jovial a acompanhar enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua
menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.
Humanidade cordial, em suma,
com todas as consequências disso mesmo
e a sair a sair para o meio da rua.
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Tenho uma interpretação para a expressão "descendo / aos mictórios para apanhar eléctricos" (versos 14-15), mas não estou seguro sobre o seu significado. Poderá o amigo leitor ajudar-me com a sua interpretação?
Ler o poema na sua forma integral aqui.
4 Comments:
Que saudades, caramba!!!!!!!!!!!
Até sempre
"O que fazia era em segredo, sempre. Tem a ver com a Lisboa dessa época. Havia urinóis espantosos, que eram sítios de encontro. Estavam sempre cheios. Muitas vezes, quem queria mesmo mijar, ficava aflitíssimo, porque as pessoas não saíam de lá."
http://sol.sapo.pt/PaginaInicial/Cultura/
Interior.aspx?content_id=11190
Interessante, muito interessante. Obrigado pela pista, Purpurina.
E o que significará apanhar eléctricos?
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