sexta-feira, agosto 24, 2007

"A indiferença", de Brecht



Ainda de férias, mas sem deixar de contemplar o egoísmo, a ignorância e o obscurantismo (esses cavaleiros do Apocalipse desta era pós-moderna), reencontro um poema de Brecht que tem um valor icónico (perdoem-me o paradoxo verbo-visual):



A indiferença

Primeiro levaram os comunistas,
Mas eu não me importei
Porque não era nada comigo.

Em seguida levaram alguns operários,
Mas a mim não me afectou
Porque eu não sou operário.

Depois prenderam os sindicalistas,
Mas eu não me incomodei
Porque nunca fui sindicalista.

Logo a seguir chegou a vez
De alguns padres, mas como
Nunca fui religioso, também não liguei.

Agora levaram-me a mim
E quando percebi,
Já era tarde.


O poema é muito simples; não é belo nem subtil. Mas tem uma força inquestionável.

Na mensagem que veicula, desagrada-me um aspecto de fundo. Se o que aqui se problematiza é a necessidade de simpatizarmos (sympathos) com o sofrimento humano e de intervir, discordo dos termos em que a ideia é equacionada. Claro que é urgente que nos sensibilizemos com os problemas dos outros e que actuemos da melhor forma para mitigar ou acabar com as dificuldades com que os outros se debatem. Mas não pela razão que o poema de Brecht aponta: não porque um mal semelhante se pode também abater sobre nós. O que nos faz sermos melhores pessoas é procurarmos ajudar os que são vítimas da injustiça, da miséria e da opressão (que la hay y fuerte) não porque essas situações também se podem cruzar diante de nós mas por reconhecermos que elas são contrárias à dignidade humana e por termos em conta que sermos Humanos é batermo-nos pelo bem-estar e pelos direitos de todos. Assim, simplesmente e de forma altruísta.

A reflexão saiu ingénua, simplista e até desagradavelmente professoral. Mas serve também de machadada para alguém que por vezes lê este blogue e com quem falei sobre solidariedade e de intervenção social.


(Fotografia dos deslocados do Darfur.)

8 Comments:

Blogger Edelweiss said...

Camarada Alexandre, vejo que voltou inspirado das suas férias na Quinta da Atalaia. Muito bonita, a sua preocupação pelo sofrimento humano, mas infelizmente as pessoas hoje em dia estão mais preocupadas com outros assuntos, que também requerem alguma solidariedade, como este:

A gula

Primeiro comi um gelado
Mas não me importei
Porque achei que não fazia mal.

Em seguida degluti chocolates
Mas não me preocupei
Porque adoro chocolates.

Depois atirei-me a um bolo
Mas não me incomodei
Porque sabia bem.

Logo a seguir chegou a vez
De alguns biscoitos, mas como eram poucos
Também não liguei.

Agora estou uma bola
E quando percebi,
já era tarde.

8:03 da manhã  
Blogger Alexandre Dias Pinto said...

Brilhante, amiga Edelweiss, simplesmente brilhante. Ao pé desta pérola de virtuosismo humorístico e lírico, que dizer do fosco e cinzentão poema de Brecht? Prefiro inquivocamente o seu.

10:38 da tarde  
Blogger Alexandre Dias Pinto said...

Onde escrevi "iniquivoco", leia-se inequívoco, claro está. Foi um "lapsus calami".

11:37 da manhã  
Blogger Edelweiss said...

Isto está a correr-lhe mal, caro amigo. Se reparar bem, não foi "iniquivoco" que escreveu...
Já vai em dois lapsus calamares - nunca pensou em abrir um restaurante?

6:07 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Em rigor, seria um lapsus clavis... Dá para formar uma banda. ;)

7:18 da tarde  
Blogger Edelweiss said...

Sendo assim, pode tocar pratos: dá para a banda e para o restaurante...

8:57 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Na caixa de comentários de um post sobre o sofrimento humano, a bater no ceguinho... :(

9:26 da manhã  
Blogger Xor Z said...

Caro Alexandre
Permita-me discordar da hermenêutica que arruma para o poema de Brecht. Na minha opinião, o que está em causa não é o facto de me vir a acontecer um mal semelhante, pois ao intitulá-lo indiferença ele aponta para o seu contrário: a diferença. Fazer-me diferença é sentir que o comunista, operário ou padre (gelado, bolo ou chocolate, na versão da flor alpina que, diga-se de passagem, está muito bem achada) ao ser preso sou eu também preso, é a liberdade que se sente presa (tal como nós no dizer de Lúlio neste país socrático). Por esse motivo, é a solidariedade que aqui está em jogo e não o temor dum mal semelhante.
Um abraço virtual porque em carne e osso não o vejo faz muito tempo.

11:04 da tarde  

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