quinta-feira, abril 17, 2008

TRÊS LUGARES MÍSTICOS




Estes lugares, elíseos só na altitude e beleza natural, têm precisas coordenadas de latitude e longitude terrenas. Se ao leitor já sucedeu compulsar alguma documentação das nossas antigas chancelarias, terá reparado numa expressão recorrente: “mero e misto império”. Neste caso, “misto/mixto” tinha como equivalente semântico - “místico” -, um arcaico adjectivo corruptamente derivado daquele. E é assim que uns seis dos sessenta admiráveis livros da chamada Leitura Nova, que o nosso “Rex Magnificus” D. Manuel I mandou compilar, copiar, iluminar e arquivar na Torre do Tombo, têm o nome de Livros dos Místicos. Eram estes uma miscelânea de documentos legislativos de diversa natureza, que envolviam diversas comarcas conjuntamente. E aquela expressão “mero e misto império” significava um direito ou poder absoluto, não dividido ou partilhado, legalmente detido por alguma entidade sobre alguma coisa. Não chegava a mais o misticismo dos nossos bacharéis legistas. E não me chega a mais o despudor de soprar poeira de arquivos sobre o leitor, que vinha convidar a sítios arejados.

A estes lugares benditos que há na nossa terra portuguesa quero crer (não me desmintam) que não chegou aquela pestilência de que falámos no postal anterior, parece que a mais mortífera que assolou a humanidade em toda a História, e que matou gente desde a Lapónia à Papuásia: a “gripe espanhola”, como também ficou conhecida. E é curioso, até parecia ser labéu aplicado de justiça à mortandade que o imperialismo colonialista castelhano fez por essas Américas. Mas, se o leitor amigo é um rábido crítico anti-colonialista, não se precipite; também aqui os micróbios aproveitaram a oportunidade para a sua estratégia de letal de colonização: a varíola, o tifo e o sarampo mataram muitíssimo mais ameríndios que as armas de Cortez e de Pizarro.

Afinal, o nome “gripe espanhola” é muito injusto para a Espanha, que não foi o foco inicial nem transmissor da peste, e deve-se apenas ao facto de ter sido durante a 1ª Guerra um país neutral com a liberdade de expressão e comunicação que não existia nos países beligerantes, afectados pela censura. Foi através dos noticiários espanhóis que os europeus ficaram a saber melhor do que se passava, e o nome que lhe pregaram foi o prémio de ter garantido um elementar direito de cidadania…

Tivemos, portanto, no século XX as maiores guerras e a maior epidemia de todos os tempos. Parece que a Grande Mãe Gaia tomava as suas precauções para poder suportar os seis mil e quinhentos milhões que tem de sustentar agora. Imagine o leitor que não tinham existido tantas e tais guerras e pestilências… - Estávamos condenados hoje à leitura obrigatória do sr. Ricardo Malthus desde os bancos da escola, e a nossa Terra em risco de saltar da órbita, com o peso de tanta gente…

Com estes rodeios vamos rodeando o caminho, em boa paz e sossego, que o viajante maravilhado com as vistas da entrada pelo Alto do Fontão, no Leiranco, não há mister de atalhar com pressa automóvel. Eis-nos chegando às Terras do Barroso, em pleno maciço central galaico-duriense, cuja capital se ufana de exibir um dos nossos mais belos castelos dionisinos: Montalegre. Dominando o vale do Alto-Cávado, temos uma corda de serras em redor. Se escolher a mais alta, tente chegar ao “Grande Corno” do Larouco, às nascentes do rio na Fonte da Pipa. Tem aos pés a fronteira galega. Olhe na direcção noroeste: diante si estão cerca de dois mil e setecentos hectares da terra onde ficavam os “três lugares místicos”, como assim os chama e escreve no séc. XVIII o escrivão do juiz Custódio Machado, ao serviço da ducal Casa de Bragança: eram Rubiás e Santiago, a sul do rio Salas; Meãos (ou Meaus, em galaico), a norte desse rio. O termo destes três lugares formava o antiquíssimo Couto de Rubiás, cuja origem se perde na “bruma do tempo”. Cada homem destes lugares tinha o privilégio de escolher, na boda do seu casamento, qual a nacionalidade que queria para si e para os seus: se levantava o copo em honra do rei de Portugal, ficava português e gravava um “P” no lintel de pedra da porta de sua casa; mas, se brindava ao monarca espanhol, era um “G” que punha sobre a porta. Assim, presume-se, um nascido galego podia tornar-se português quando do casamento, e vice-versa. Portugueses e galegos governavam-se por um juiz, eleito entre eles e confirmado pelo juiz de Montalegre, de que dependiam na vara do crime, em nome do Duque de Bragança, senhorio da maior parte deste Barroso desde o séc.XV; para efeitos religiosos, dependiam da diocese galaica de Orense. Além de um tributo anual simbólico que cada um pagava à respectiva Coroa da sua nacionalidade, estavam os habitantes do Couto isentos de mais impostos ou contribuições de qualquer género; e, entre outros privilégios, estavam isentos de todo o serviço militar, de licença de uso e porte de armas de caça ou defesa e podiam asilar foragidos às justiças dos dois países. A jurisdição mista destes lugares místicos terminou com a integração total em Espanha, pelo Tratado dos Limites de fronteira, de 1864, que redefinia este e outros casos de marcação duvidosa ao longo da raia luso-espanhola, até à embocadura do Caia com a Guadiana (e só até aí, por causa de Olivença). Mas nenhum outro caso havia com população mista e com tais e tantos privilégios. Era uma espécie de Andorra encravada entre Portugal e a Galiza.

Se o leitor acordou naturalmente alegre e bem disposto em Montalegre, e olhando a ocidente lhe riram convidativos os dentes rochosos do Gerês reluzindo ao sol da manhã, eu lhe direi para a semana que havia um outro caminho – um “caminho privilegiado” – para chegar ao velho Couto de Rubiás. E se acordou feliz por estar asilado das pestilências das tumultuárias urbes, deliciado com os aromas das urzes e giestas floridas esparsos no ar diáfano destas altitudes, eu lhe contarei como os problemas luso-espanhóis com os místicos lugares foram possivelmente muito agravados por causa… do tabaco.