“S. Martinho de Anta, 14 de Abril de 1965”
« A aldeia, o campo, a primavera. Três faces da mesma evidência. A colmeia inamovível de gerações sucessivas, a extensão quinhoada; a vez da sazão das seivas. O estável no instável, o estremado no desmedido, a permutação circular. A lei sem a letra. A ordem natural, visível. O equilíbrio do universo físico, a harmonia do real. O homem, em vez de escravizado ao futuro e sem pé no presente, integrado no tempo cíclico das estações, entanguido ou abrasado como elas, periódico também nos gestos essenciais, a semear em Maio e a colher em Setembro. A constância das forças elementares, a fonte a jorrar do Inverno e a secar do verão, o pássaro a fazer ritualmente o seu ninho. É neste ritmo de vida que no íntimo acredito, só nele encontro paz e tenho esperança. O dia de trabalho e a noite de sono, o domingo de repouso no fim da semana afadigada, a morte a alimentar a certeza da ressurreição, a luz do sol a ofuscar todas as candeias. Sei o que a técnica e a antropotécnica querem e conseguem, compreendo as violências que o progresso exige, e há trinta e tantos anos que profissionalmente pasmo de ver até onde a biologia pode ir e a fisiologia se acomoda. Seres criados por inseminação artificial, horas trocadas, pílulas alimentícias. Mas não me reconheço inteiramente nessas sábias e desembaraçadas manipulações. O pensamento entra na retorta e deixa de fora o instinto, fiel ao chouto da terra. Por mais cera científica que meta nos ouvidos, continuo a ouvir os protestos conservadores da espécie, que teme no meu corpo uma aventura em que vislumbra, aterrada, a sombra do seu aniquilamento.»
Miguel Torga, Diário, vol. IX.
Miguel Torga, Diário, vol. IX.
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