sexta-feira, abril 04, 2008

SIDÓNIO MIGUEL: DO ELO MANTIDO NA NOITE ( 4 SONETOS )



António Ribeiro da Silva e Sousa não é lá muito poético nome de poeta!… Nasceu em Leiria, 1886, quem foi de Lisboa olissipógrafo erudito; o jornalista, dramaturgo, romancista, crítico musical e melómano tradutor duma colecção de biografias de grandes compositores; quem foi também um importante doutrinador do regime corporativo, - o poeta que se deu o nome Sidónio Miguel e nos deixou, entre 1929 e 1943, uma série de volumes de poesia, entre os quais seis só de sonetos. Para além dos títulos das obras, pouco mais consta da notícia biográfica da Grande Enciclopédia, redigida quando o poeta ainda era vivo. Pelo Dicionário Cronológico de Autores Portugueses ficamos a saber que faleceu em 1957. E nada mais se encontra nas Histórias da Literatura (Lopes & Saraiva; Lopes & Marinho; António Barreiros) e na enciclopédia Biblos, - porque todas o ignoram. Injustamente, como o leitor apreciador reconhecerá logo à primeira leitura. Reconheceram-no os poetas coetâneos José Régio e Alberto de Serpa, quando o incluíram na Antologia de Poesia Religiosa Portuguesa que organizaram. É, de facto, com aqueloutro que aqui já homenageámos, um dos poucos que no nosso século XX cultivaram a difícil forma do soneto como meio de expressão preferida e habitual; e este Miguel conseguiu refiná-la a níveis que por certo farão a delícia do analista sintáctico e estilístico. (Baste citar a pluralidade de leituras que este mestre da elipse e do hipérbato consegue sugerir nos dois últimos versos do terceto que fecha com áurea chave o primeiro soneto dos apresentados infra.)

Não é por termos tido uma maré-cheia de muitos muito bons poetas no nosso século de ouro literário - que foi o XX português (o canto do cisne?...) -, que hoje na podrida vasa em que nos atolamos podemos dar-nos o luxo de esquecer os esquecidos. Esquecido, Sidónio Miguel? Apenas nós dele; que ele, com “ força e punhos da mão que as mãos estreita” as deu a “meus vindouros que num mundo irmão / do meu que cessa me esperam…” Aqui fica pois um aceno de lembrança e comovido reconhecimento ao discreto que “na voz sumida em todas que domina / um alargar do coração vidente”, previu e soube levantar um grito: “… o grito me levanta / dos temporais na súplice cadeia / de elo perdido em noite que vem perto…” A noite chegou e é onde estamos. Quem o ouviu, e não soçobre de assombrado em abatimento mudo, responda, e retome o elo: “ o pequenino laço / do que me é sonho e dói na claridade ”…

Sendo assim, “a voz não cessa” – e a dura vigília pode vir a ganhar a manhã… a “outra idade”…
*
HORA COM DEUS

Luz se me apaga de intelecto vivo,
Duma razão que os mundos compreenda,
Quando dos céus um suplicar me prenda
Ao seu azul, perpétuo e fugitivo?...

Verbo de Amor, da Fé, apenas venda
De olhos que fecha o tributar passivo
A uma saudade, longo e pungitivo
Cismar o meu sem termo e sem emenda?...

-Orgulho cale. Engenho não persista
Duma ignorância que se desconhece,
Real e triste, que um dizer ilude…

Cale e mais longe veja em quanto exista,
Verdade minha onde ilumina a prece
De hora com Deus humana a plenitude…


*


MOMENTO

Fechada natureza sobre si,
dum Céu que meus desígnios acompanha,
me surpreende o jeito que de estranha
a vida torna em minha, a que sorri…

De estrelas é o momento, onde tamanha
de mundos tais e tantos que não vi,
verei jamais a conta onde me li,
me leio em profundeza da montanha;

me escuto a sós e grito dum viver,
cá dentro as infusões da viva graça,
duma harmonia oculta do meu fim…

Destino que me envolve num crescer
- ao ritmo dum segundo que me passa –
da Eternidade aberta sobre mim…


*

MEU UNIVERSO

Meu universo doutros que pressinto…
De meu lhe quero, o meu querer lhe vota,
uno e concorde de expirante nota,
dos corações meu coração retinto…

Meu na grandeza viva, donde brota
uma unidade, o meu dizer de instinto,
verbo afogado dum rezar distinto
numa harmonia súplice e remota…

Verbo de calma envolta o meu sentir,
suspende os mundos todos de imperfeita
endeixa minha, gemebunda e vaga…

Eco teimoso, glória do porvir,
força e punhos da mão que as mãos estreita,
vidas me aperta a vida em que me apaga…



*


O CANTO DA CRIAÇÃO


A voz não cessa. Eterno, o Anjo ardente
das asas longas tem descido o beijo.
Escuta, envolve em matutino adejo
rumo das cousas, uno e persistente…

…Rumo das almas, uno e largamente
nos céus, na terra, o eco dum harpejo;
sorriso e coro aberto e benfazejo
às gerações que nutre ao sol vivente…

…Irradiado a coro que suscita
hoje, amanhã, mais longe, a outra idade,
da Criação o canto e a humana grita

da terra aos céus, da terra quanta invade,
cobre e domina de almas de infinita
onda e sussurro o mar da Eternidade…








1 Comments:

Blogger Alexandre Dias Pinto said...

Nunca tinha ouvido falar de Sidónio Migual. Agradeço-lhe por me ter dado a conhecer o nome e os quatro sonetos.
O Pedro refere o facto de este (e outros) poetas terem sido esquecidos pelo devir do tempo. Pois é, como sabe, por incrível que pareça, os factores ideológicos e sociais podem ser mais decisivos que o factor estético na formação do cânone literário.

6:51 da tarde  

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