terça-feira, junho 10, 2008

DIA DE CAMÕES


“Ponta Delgada, 10 de Junho de 1989”

[ Ao receber o Prémio Camões, na primeira vez que foi atribuído. ]

« Uma vida longa dá para tudo. Para se nascer obscuramente em Trás-os-Montes, para mourejar, adolescente, em terras de Santa Cruz, percorrer, solidário, na idade adulta, os actuais países africanos lusófonos em luta pela independência, visitar, alanceado, na velhice, o que resta do Oriente português, e receber agora, nestes patrícios e paradisíacos Açores, um prémio sob a égide de Camões. Nos intervalos, ser cidadão a tempo inteiro, com profissão tributada e deveres cívicos assumidos, e poeta rebelde, cioso da sua liberdade de criador, numa época atribulada, de guerras, tiranias políticas, campos de concentração, terrorismo, bombas atómicas e outros flagelos. Época cruel e paradoxal, em que se vai à Lua e se fomenta o ódio nos cinco continentes, se queimam os produtos excedentários e se deixa morrer de fome populações inteiras, se oprimem, directa ou indirectamente, estados que se promete ajudar, se negam as divindades que se cultuam, se faz da moral um disfarce e do cinismo virtude. Mas ninguém escolhe a ocasião da sua existência, e todos temos que nos cumprir na que nos coube em sorte, que, seja qual for, é sempre um desafio, no bom e no mau, às forças e fraquezas de cada um. E eu procurei cumprir-me na minha, lutando, trabalhando, porfiando. Não foi tarefa fácil. Os dons eram escassos, a saúde traiçoeira, o ambiente irrespirável, e os meus propósitos temerários. Só que morava dentro de mim uma vontade férrea, e o instinto e a razão mandavam-me seguir. Queria ser no mundo, como em letra redonda o declarei, um homem, um artista e um revolucionário. E tentei sê-lo, contra todos e contra tudo. (…)

« Amar Portugal, amei-o eu sempre, e procurei compreendê-lo de todas as maneiras, inventariando-lhe incansavelmente o corpo e a alma, devoto e defensor da sua identidade. Amar o Brasil, amei-o eu sempre, foi o meu segundo berço, sinto-o na memória, trago-o no pensamento, e orgulho-me dele como qualquer dos seus filhos. Amar Camões, amei-o eu sempre, e é ele o meu paradigma do intelectual apegado ao ninho e solto, desassossegado, errante, aventureiro daquém e dalém mar, ávido de ver e de saber, figuração perfeita da universalidade mental enraizada. Mas era preciso mais. Há horas em que só a desmesura é legítima e solvente. Sem asas para atingir esses cumes, e obrigado por uma decisão inânime e generosa, limito-me a receber a distinção com que fui honrado em nome de todos os meus companheiros de pena e de penas, que acreditam no milagre duma portugalidade viva e promissora, com expressão lusíada, brasileira, angolana, moçambicana, timorense, macaense, goesa, e se obstinam, como escritores, em afirmá-la e prestigiá-la. Convencido e possuído dessa verdade estimulante e responsabilizadora, de que muito cedo tive a percepção, nunca escrevi um texto que me não sentisse ao mesmo tempo dentro e fora do torrão nativo. É que sabia, por experiência de antigo emigrante, que manejava uma língua dúctil, maleável, de virtualidades infindas, que em todas as latitudes e longitudes se dá bem, que logo nos primórdios foi capaz de dizer o que disse na Carta de Pêro Vaz de caminha, e que mais tarde, a pintar a mesma realidade tropical, serviu igualmente o barroquismo iluminado do Padre António Vieira e o sertanejo de Guimarães Rosa. Moldável, proteica, subtil, nenhuma clausura gramatical a detém, nenhum purismo lhe tolhe a aptidão planetária. E é esse polimorfismo, que reflecte o próprio povo que a segregou, que faz dela um dos grandes instrumentos de comunicação do mundo. Quem conhecer o dia de amanhã, há-de presenciar o prodígio dum imenso espaço humano multirracial, a entender-se nas mesmas palavras de Gil Vicente e de Machado de Assis, e a produzir com elas obras imprevisíveis e certamente imorredouras, numa fecunda congregação de diversidades. Realizações que serão uma afirmação cultural já não injustamente marginalizada, mas acolhida e admirada no seio das maiores. O coro polifónico das nações terá mais uma voz singular e poderosa a enriquecê-lo, na evidência das múltiplas facetas da sua inventiva e originalidade. Modulações até agora apenas condescendentemente referidas, serão consideradas de presença obrigatória na harmonia da partitura. (…)»

Miguel Torga, Diário, vol. XV.

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“Amar Camões, amei-o eu…” E outro que o amou, e tanto que se lhe pôde comparar, ao menos no “cotejo dos Fados” adversos, - foi Bocage. O poema que este escolheu do Épico para recitar certa vez ao viajante William Beckford é, segundo afirmou ao inglês, “este soneto que fez de mim o que eu sou”:

A fermosura desta fresca serra
E a sombra dos castanheiros;
O manso caminhar destes ribeiros
Donde toda a tristeza se desterra;

O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra;

Enfim, tudo o que a rara Natureza
Com tanta variedade nos oferece
Me está, se não te vejo, magoando.

Sem ti, tudo me enoja e aborrece;
Sem ti, perpetuamente estou passando
Nas mores alegrias mor tristeza.


[ Este soneto é dos poucos em que Camões se dirige à mulher amada na segunda pessoa do singular. Apetece associá-lo àquele, mais conhecido, em que evoca essa “alma minha gentil, que te partiste”: “ Não te esqueças daquele amor ardente / Que já nos olhos meus tão puro viste.” Ou essoutro em que fala da “cara minha inimiga” cuja “peregrina fermosura” “sempre viva em minha alma te acharão”. Ou seja a “fresca serra” a do Buçaco ou a de Sintra, por mim me praz associá-los todos a sua prima Isabel Tavares, filha de Pedro Vaz de Vila Franca… ]