sábado, agosto 02, 2008

QUINADO EM QUIBIR



Já as Cortes de 1562-63 tinham reconhecido a necessidade estratégica da guerra no norte de África (“mais justa e conveniente que a Índia”) para segurar o avanço dos turcos, há pouco entrados em Argel, que assolavam o nosso litoral algarvio a ponto de, nesse ano de 1562, subirem a atacar Sines. Corsários cometimentos que mauritanos e turcos vão prosseguir e aumentar na década seguinte. Mas perspectiva-se também por esses anos uma alteração do vector estratégico da nossa expansão ultramarina, que se pretendia deslocar do Índico – económica e militarmente insustentável – para o Atlântico, estribado no domínio do litoral africano e brasílico.

Em Julho de 1574, D. António, prior do Crato, é nomeado para governar a capitania de Tânger, reforçada com gente de cavalo, lanceiros e infantaria. No mês seguinte, é o próprio D. Sebastião que desembarca em Ceuta e passa em Tânger, “para entender melhor e de mais perto o como poderia mandar fazer guerra ao Xarife, e com maior poder, como tenho ordenado que se lhe faça”. Voltou em Novembro, dizendo que “vinha de África, para tornar a África” contra o Xarife Almalique, aliado dos turcos. O projecto africano foi facilitado com o desvalimento político dos irmãos jesuítas Gonçalves da Câmara, que se lhe opunham; e sustentado com o pecúlio de donativos e medidas financeiras e fiscais que, sobretudo às custas do alto clero e da nobreza, sem gravame para o povo miúdo, renderam para cima de 1 milhão de cruzados. Na entrevista de Guadalupe com Filipe II, em 1576, este parece compreender a necessidade da jornada magrebina, face ao avanço do turco sobre Gibraltar, prometendo ajuda militar. Diga-se de passagem que neste encontro ficou aprazado o casamento do nosso D. Sebastião com a filha mais velha de Filipe, a infanta D. Isabel, enlace que se combinou seria publicitado só quando da tornada de África. O nosso não duvidava tornar… A ajuda do espanhol, que tinha bons negócios como os marroquinos, cifrou-se em estorvar o mais possível a recruta de voluntários em Espanha e depois mandar 2 dos prometidos 5 mil soldados.

Em 1577, Mulei Alquerim, deposto em Fez por Almalique (o “Maluco”, na linguagem dos nossos cronistas), entrega Arzila aos portugueses e põe-se debaixo da protecção do nosso rei para recuperar Fez. A conjuntura, além de premente, torna-se assim extremamente favorável a uma intervenção desejada e adiada desde os tempos de D. João III, que lá queria ir com o infante D. Duarte, depois do abandono táctico e provisório dalgumas praças africanas.

Os preparativos militares, iniciados em 1574, põem no mar, em Junho de 1578, para além da galé real com sua escolta própria, 60 galeões e naus, e mais de 100 outros navios de menor porte; transportavam uma força de cerca de 25 mil homens, cavaleiros e peonagem, entre os quais 3 mil alemães, 600 italianos e os sobreditos espanhóis. Não falando no erro capital de se aventurar sem filho herdeiro fiador da independência do trono,  é então que o bem preparado e competente regedor do Reino, que D. Sebastião tinha mostrado ser até essa altura, vai dar lugar ao deficiente estratego militar, demasiado presumido do valor próprio e mal atinado com os conselheiros que decidia ouvir e seguir. Demora tempo em Cádis, com festas e folganças e, em vez de ir direito a Larache, ainda passa por Tânger e demora-se em Arzila (32 dias ao todo!) com prejuízo dos mantimentos que já escasseavam e dando tempo a que o Malique juntasse cerca de 50 mil cavaleiros e 30 mil peões; dá proeminência no comando militar ao capitão Aldana, com ofendida contrariedade doutros mais graduados espanhóis; tarda muito na 1ª ordem de carregar e esquece depois outras, em resposta às sucessivas e devastadoras descargas de artilharia com que os mouros, pelas 9 horas da manhã do dia 4 de Agosto, iniciaram a batalha no sítio de Alcácer-Quibir. Uma batalha que, apesar de tudo, estivemos quase a ganhar. Um jovem estudante da Universidade de Coimbra tinha vindo com colegas seus a correr para Lisboa, para acompanhar el-rei integrado no famoso e desventurado terço dos Ventureiros, que lá deixou enterradas nas areias de Alcácer centenas de guitarras… guitarras de Coimbra. Eis o que diz o jovem Miguel Leitão de Andrada: « Se prosseguíramos acabando de ganhar a artilharia e com ela a liteira do Maluco, onde já estava morto, perto dela, e cortando-lhe a cabeça e com ela levantada num pique aclamando a vitória com que ali nos vimos, cousas eram para se poder conseguir, com tão belo sucesso, a maior vitória que nunca no mundo se viu ». De nada valeu a espantosa energia e bravura de que el-rei deu mostras, como tantos outros, que lá ficaram enterrados ou cativos. O “belo sucesso” redundou no trivial espectáculo das ressacas bélicas: «E tudo gritos e lamentos, mortos em cima de vivos, e vivos de mortos, todos feitos pedaços, cristãos e mouros abraçados, chorando e morrendo, uns sobre a artilharia, outros braços a tripas arrastando, debaixo de cavalos, em cima espedaçados, e tudo muito mais do que já vos posso dizer, porque aperta comigo a dor na lembrança do que passei. »

Outro, um anónimo autor e testemunha presencial da Jornada Del-Rei D. Sebastião às Partes de África, terá assistido aos últimos momentos. Cercado, e acompanhado de uns poucos fidalgos, é intimado pelos mouros a desarmar e render-se: para eles “era de maior proveito e mais honroso tomá-lo vivo”. O mesmo lhe implora o valido dilecto, D. Cristóvão de Távora, com lágrimas nos olhos. Mas el-rei responde que “a liberdade real com a vida se havia de perder”… A estas palavras, o conde de Vimioso acomete a chusma dos mouros num derradeiro arranco de fúria suicida, e é então que surge um certo mouro a oferecer ao rei e ao Távora um corredor de saída. Morto o Vimioso, lançam-se em perseguição do rei, que resiste e, já mal ferido, teriam acabado por matar. “Mas o certo é que achando-se depois da batalha milhares de cousas que nela se perderam, e resgatando-se tudo a dinheiro a quem o queria comprar, das armas reais não apareceu uma só peça, nem houve quem a visse e desse fé dela, sendo todas as fivelas cheias das mesmas armas esculpidas”… Por isso, logo após a batalha, começou a levantar-se com o vento do deserto um certo rumor… Reforçado nessa mesma noite quando um pequeno grupo de cavaleiros entra as portas de Arzila levando com eles um embuçado que, no dia seguinte, na mesma embuçado recolhe a um navio da nossa armada…

Daquele rei, que foi um dos mais populares e amigos do povo que tínhamos tido desde D. Pedro I, daquele cujo aparecimento tinha sido tão ansiado e querido como “o Desejado”, desapareceu naquele dia o corpo que tinha de desaparecer um dia, esse que “com a vida se havia de perder”… O outro, da matéria daqueles “que se vão da lei da morte libertando”, haveria de subsistir, embuçado ou encoberto, sempre pelos séculos adiante… Desejado. –

Era um domingo de Maio de 1962, na povoação de Pinhas, a sul de Fortaleza, no Nordeste brasileiro. Uma longa fila de carroções carregados de cereais, víveres e ferramentas abre caminho por entre os magotes de gente que estão no largo da povoação, em frente da igreja, depois da missa. Essa gente vai atrás dos carros e engrossa mais e mais: é a multidão dos esfomeados, dos sem terra e sem trabalho. Quando começou a descarga para os armazéns bem abastecidos dos fazendeiros açambarcadores e exploradores, tentam o assalto e o saque, enfrentam as balas de jagunços e carabineiros. Há dezenas de mortos e feridos. Antes, pelo caminho, alguém ouviu e guardou estas vozes que gritavam: - « Estamos sendo enterrados vivos!... D. Sebastião voltará!... Nos dará o que nos é devido!... Os fazendeiros o têm preso e encantado!... D. Sebastião nos livrará!... Nós o livraremos!... Liberdade! Liberdade! »



[ Na imagem, um dos “retratos ignorados” de D. Sebastião que há poucos meses atrás o dr. Bernardo da Gama Lobo Xavier trouxe Regressado a este nosso deserto português de “morrer devagar”...]