sexta-feira, maio 14, 2010

O MENINO D’ OLHOS DE GIGANTE



O LIVRO
Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria.
Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, se não estou perdido.
No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito bem vestidas de quem precisa de salvar-se.
(...)
Na montra estava um livro chamado “ O Leal Conselheiro”. Escrito antigamente por um Rei dos Portugueses! Escrito de uma só maneira para todas as espécies dos seus vassalos!
Bendito homem que foi na verdade Rei! O Mestre que quer que eu seja mestre!
Eu acho que todos os livros deviam chamar-se assim: “O Leal Conselheiro”! Não achas, Mãe?
O Mestre escreveu o que sabia – por isso ele foi Mestre. As palavras tornaram presentes como o Mestre fazia atenção, Estas palavras ficaram escritas por causa dos outros também. Os outros aprendiam a ler para chegarem a Mestres - era com esta intenção que se aprendia a ler antigamente.
***
Sonhei com um país onde todos chegavam a Mestres. Começava cada qual por fazer a caneta e o aparo com que se punha à escuta do universo; em seguida, fabricava desde a matéria prima o papel onde ia assentando as confidências que recebia directamente do universo; depois, descia até aos fundo dos rochedos por causa da tinta negra dos chocos; gravava letra por letra o tipo com que compunha as suas palavras; e arrancava da árvore a prensa onde apertava com segurança as descobertas para irem ter com os outros. Era assim que neste país todos chegavam a Mestres. Era assim que os Mestres iam escrevendo as frases que hão-de salvar a humanidade.
***
Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade.

[ No livro Conversas com Sarah Affonso, a autora, Maria José de Almada Negreiros, pergunta a sua mãe: «- Qual era o livro preferido dele? – Era A Invenção do Dia Claro. » Citei trechos da introdução às três partes desse livro de José de Almada Negreiros, saído em Lisboa, no ano de 1921. Foi escrito com mão de Mestre. O desenho em baixo é o rosto do rosto da obra, que pode ser lida na íntegra aqui. O título do postal é o de um poema do mesmo Autor, saído na revista Contemporânea, no ano seguinte de 22.]