DIFERENÇAS DE CLASSES
Houve e ainda há quem pense ser uma diferença essencial entre as pessoas humanas o pertencerem a uma ou outra classe social; a ponto de tal diferença explicar a parte existencialmente mais relevante do devir histórico da humanidade. E seria aliás uma diferença correlativa destoutra: pessoas que teriam uma “consciência de classe” e as que a não teriam. Ou, ainda outra: uma consciência de classe “revolucionária” ou “reaccionária”, relativamente ao sentido daquele acreditado devir histórico da humanidade.
Mas, suponha-se que os genes dos indivíduos, para além do fenótipo biológico característico da espécie, são a causa de alguns indivíduos manifestarem desde cedo certas notáveis (e notadas) disposições e capacidades (ou “talentos”) dirigidos para qualquer actividade (e. g., actividade artística), que outros não manifestam para nada em especial. Isto é de universal e sempre reiterado senso comum. Ora, terem uns desde cedo manifesta aptidão ou inclinação para isto ou aquilo, e outros nenhuma em especial, - parece que nos dá outra e não menos relevante diferença entre as pessoas. E eis uma terceiro tipo de diferença que, essencial ou não, tenho para mim como muito significativa: entre os que acreditam numa (qualquer) forma de existência depois da morte, e os que não crêem tal. Permita-me o caro leitor umas poucas palavras sobre o quanto me parece significativa.
Suponhamos que – na verdade – não haveria nenhuma espécie de sobrevivência pessoal, sob qualquer forma concebível ou não por nós: nenhuma consciência, nenhuma experiência possíveis. Portanto, ficaríamos apenas com uma existência, ante mortem, esta vida, a única. Pensemos agora em um indivíduo que nasceu com especiais predisposição, talento ou vocação para a criação artística; e tão fortes que esse tal abdicou de viver para os outros valores (casar, ter filhos, uma carreira profissional, etc.) a que se dedicam e bastam aos normais indivíduos sem nenhuma especial vocação. Pensemos, por exemplo, no caso do nosso Fernando Pessoa. Ponho agora a questão: que objectiva e suficiente razão teria Pessoa para considerar os valores da Arte – os seus -, preferíveis ou superiores ou melhores que quaisquer outros, nomeadamente os preferidos e cultivados pelos indivíduos comuns, os "Esteves da Tabacaria"? Eu não vejo uma única. E porquê? Porque, no fim (no “fim de contas”), para Pessoa os papéis que deixou no baú, para as outras pessoas os papéis que deixaram no banco... – têm para todos o mesmo igual, terminante e definitivo fim (termo temporal). E, deste ponto de vista objectivo e universal – independente dos variáveis fins que se ficcionam para si os vários indivíduos ou grupos –, também parece claro que teriam o mesmo fim (finalidade última) – o mesmo igual valor. (O argumento é, evidentemente, extensível aos herdeiros hábeis e pressurosos nas herdanças: neste caso, o mesmo fim coincidiria com a última geração de herdeiros e da espécie humana. Mas o certo é que, para todos os testamenteiros, isto é irrelevante: a “fama” das suas obras e feitos, se a conheceram, ou o anonimato, tudo desaparece com a extinção definitiva desses doadores.)
Portanto, o valor da dedicação exclusiva e sacrificada à sua obra seria precisamente equivalente ao valor da dedicação dos outros ao seu dinheiro ou a qualquer outra coisa. Mais ainda, e este ponto é de importância decisiva: não se vê razão nenhuma para sequer falar em valores. Onde as mais díspares coisas valessem todas o mesmo, ou todas valessem nada... – qual a diferença? Sucederia apenas que cada um teria os seus motivos e preferências, mais ou menos geneticamente, mais ou menos socialmente condicionados (ou determinados) pelos padrões de cultura vigentes e pelas circunstâncias da existência de cada qual.
O leitor já previu aonde chegamos. – Se não há uma razão objectiva, universal, absoluta (incondicionada) e final para o que é bom, que sentido para X em vez de Y ? A resposta ficou lapidada com lapidar sucintez e secura na inscrição dum sarcófago velho romano: In nihil ac nihilo quam cito recidimus. Do nada no nada quão cedo recaímos.
Dois pensadores e pensamentos tão diferentes entre si, que pensaram a fundo esta questão – um Sócrates e um Nietzsche –, contrapuseram e compartilharam ambos neste ponto uma e a mesma solução alternativa. Neste sentido: - os actos que dão valor (e sentido) à vida devem ter uma valiosidade não finita: a morte não lhes pode pôr um termo absoluto, para além do qual... nada. Mas, como esta morte é uma possibilidade iminente a qualquer momento neste mundo, - que diferença faz o prazer ou o sofrer, que diferença dedicar-se um Pessoa a encher o baú de textos maravilhosos, ou dedicarem-se outras pessoas a encherem os cofres de dinheiro, sujo ou limpo? - Para além das óbvias e imediatas, sempre muito relativas e subjectivas... nenhuma. Para além dos finitos, variáveis e transitórios motivos de conveniência pessoal ou social, - nenhuma razão ou critério objectivo nem universal para preferir como “boa” a actividade criadora de Pessoa, como para cominar de “má” a actividade traficante do mafioso... ou o contrário. Tão indiferente gozar ou sofrer como ter morrido sem chegar à consciência disso. Teria razão o céptico romano que só via nada. Em contrapartida, vê-se muito bem que, nesta perspectiva de fundo niilista, os indivíduos podem ficar muito ansiosos com a possibilidade de, enquanto há tempo, perder os "bons bocados", não gozar mais do que sofrer e muito preocupados com planos e balancetes deste tipo; é a vidinha hiperactiva deste nosso canto rico e enfartado do mundo, sôfrego das hiperabundâncias de hipermercados.
Bem, não era minha intenção hoje ir com o leitor ao hipermercado, mas convidá-lo antes a medirmos as consequências práticas para a vida individual, pessoal e cívica, colectiva e civilizacional de duas atitudes existenciais as mais díspares entre si: a de crer forte e firme na continuidade de alguma forma de existência e consciência além de o que chamamos “morte”, ou a de crer em nada disso. Por mim acho que temos aqui duas classes de pessoas e dois géneros de vida mais irredutivelmente apartadas entre si do que pela mera distribuição da riqueza ou dos genes.
[ O leitor que prejulgue impossível haver algum filósofo capaz de tratar estas magnas questões em poucas e simples palavras, enganou-se. Traduzido e arranjado pelo nosso jovem filósofo Pedro Galvão, tem aqui a prova no austríaco Moritz Schlick (1882-1936):
http://intelectu.com/intelectu_archive_win_05_07.html
É um texto duma cristalina clareza e (vergonha minha!) mais breve do que a maior parte dos postais que aqui tenho posto. Apenas um ligeiro senão: julgo que a leitura ficará ainda mais clara se lermos sempre finalidade onde repetidamente está “propósito”, no contexto tradução menos conveniente do inglês “purpose”. Recomendo-o vivamente como exemplo duma posição contraposta à que deixei implícita supra, embora o meu propósito não fosse senão o de apontar que há certas diferenças de classes de pessoas que são existencialmente mais irredutíveis e relevantes que as classes de que tratam os sociólogos e politólogos. ]
Mas, suponha-se que os genes dos indivíduos, para além do fenótipo biológico característico da espécie, são a causa de alguns indivíduos manifestarem desde cedo certas notáveis (e notadas) disposições e capacidades (ou “talentos”) dirigidos para qualquer actividade (e. g., actividade artística), que outros não manifestam para nada em especial. Isto é de universal e sempre reiterado senso comum. Ora, terem uns desde cedo manifesta aptidão ou inclinação para isto ou aquilo, e outros nenhuma em especial, - parece que nos dá outra e não menos relevante diferença entre as pessoas. E eis uma terceiro tipo de diferença que, essencial ou não, tenho para mim como muito significativa: entre os que acreditam numa (qualquer) forma de existência depois da morte, e os que não crêem tal. Permita-me o caro leitor umas poucas palavras sobre o quanto me parece significativa.
Suponhamos que – na verdade – não haveria nenhuma espécie de sobrevivência pessoal, sob qualquer forma concebível ou não por nós: nenhuma consciência, nenhuma experiência possíveis. Portanto, ficaríamos apenas com uma existência, ante mortem, esta vida, a única. Pensemos agora em um indivíduo que nasceu com especiais predisposição, talento ou vocação para a criação artística; e tão fortes que esse tal abdicou de viver para os outros valores (casar, ter filhos, uma carreira profissional, etc.) a que se dedicam e bastam aos normais indivíduos sem nenhuma especial vocação. Pensemos, por exemplo, no caso do nosso Fernando Pessoa. Ponho agora a questão: que objectiva e suficiente razão teria Pessoa para considerar os valores da Arte – os seus -, preferíveis ou superiores ou melhores que quaisquer outros, nomeadamente os preferidos e cultivados pelos indivíduos comuns, os "Esteves da Tabacaria"? Eu não vejo uma única. E porquê? Porque, no fim (no “fim de contas”), para Pessoa os papéis que deixou no baú, para as outras pessoas os papéis que deixaram no banco... – têm para todos o mesmo igual, terminante e definitivo fim (termo temporal). E, deste ponto de vista objectivo e universal – independente dos variáveis fins que se ficcionam para si os vários indivíduos ou grupos –, também parece claro que teriam o mesmo fim (finalidade última) – o mesmo igual valor. (O argumento é, evidentemente, extensível aos herdeiros hábeis e pressurosos nas herdanças: neste caso, o mesmo fim coincidiria com a última geração de herdeiros e da espécie humana. Mas o certo é que, para todos os testamenteiros, isto é irrelevante: a “fama” das suas obras e feitos, se a conheceram, ou o anonimato, tudo desaparece com a extinção definitiva desses doadores.)
Portanto, o valor da dedicação exclusiva e sacrificada à sua obra seria precisamente equivalente ao valor da dedicação dos outros ao seu dinheiro ou a qualquer outra coisa. Mais ainda, e este ponto é de importância decisiva: não se vê razão nenhuma para sequer falar em valores. Onde as mais díspares coisas valessem todas o mesmo, ou todas valessem nada... – qual a diferença? Sucederia apenas que cada um teria os seus motivos e preferências, mais ou menos geneticamente, mais ou menos socialmente condicionados (ou determinados) pelos padrões de cultura vigentes e pelas circunstâncias da existência de cada qual.
O leitor já previu aonde chegamos. – Se não há uma razão objectiva, universal, absoluta (incondicionada) e final para o que é bom, que sentido para X em vez de Y ? A resposta ficou lapidada com lapidar sucintez e secura na inscrição dum sarcófago velho romano: In nihil ac nihilo quam cito recidimus. Do nada no nada quão cedo recaímos.
Dois pensadores e pensamentos tão diferentes entre si, que pensaram a fundo esta questão – um Sócrates e um Nietzsche –, contrapuseram e compartilharam ambos neste ponto uma e a mesma solução alternativa. Neste sentido: - os actos que dão valor (e sentido) à vida devem ter uma valiosidade não finita: a morte não lhes pode pôr um termo absoluto, para além do qual... nada. Mas, como esta morte é uma possibilidade iminente a qualquer momento neste mundo, - que diferença faz o prazer ou o sofrer, que diferença dedicar-se um Pessoa a encher o baú de textos maravilhosos, ou dedicarem-se outras pessoas a encherem os cofres de dinheiro, sujo ou limpo? - Para além das óbvias e imediatas, sempre muito relativas e subjectivas... nenhuma. Para além dos finitos, variáveis e transitórios motivos de conveniência pessoal ou social, - nenhuma razão ou critério objectivo nem universal para preferir como “boa” a actividade criadora de Pessoa, como para cominar de “má” a actividade traficante do mafioso... ou o contrário. Tão indiferente gozar ou sofrer como ter morrido sem chegar à consciência disso. Teria razão o céptico romano que só via nada. Em contrapartida, vê-se muito bem que, nesta perspectiva de fundo niilista, os indivíduos podem ficar muito ansiosos com a possibilidade de, enquanto há tempo, perder os "bons bocados", não gozar mais do que sofrer e muito preocupados com planos e balancetes deste tipo; é a vidinha hiperactiva deste nosso canto rico e enfartado do mundo, sôfrego das hiperabundâncias de hipermercados.
Bem, não era minha intenção hoje ir com o leitor ao hipermercado, mas convidá-lo antes a medirmos as consequências práticas para a vida individual, pessoal e cívica, colectiva e civilizacional de duas atitudes existenciais as mais díspares entre si: a de crer forte e firme na continuidade de alguma forma de existência e consciência além de o que chamamos “morte”, ou a de crer em nada disso. Por mim acho que temos aqui duas classes de pessoas e dois géneros de vida mais irredutivelmente apartadas entre si do que pela mera distribuição da riqueza ou dos genes.
[ O leitor que prejulgue impossível haver algum filósofo capaz de tratar estas magnas questões em poucas e simples palavras, enganou-se. Traduzido e arranjado pelo nosso jovem filósofo Pedro Galvão, tem aqui a prova no austríaco Moritz Schlick (1882-1936):
http://intelectu.com/intelectu_archive_win_05_07.html
É um texto duma cristalina clareza e (vergonha minha!) mais breve do que a maior parte dos postais que aqui tenho posto. Apenas um ligeiro senão: julgo que a leitura ficará ainda mais clara se lermos sempre finalidade onde repetidamente está “propósito”, no contexto tradução menos conveniente do inglês “purpose”. Recomendo-o vivamente como exemplo duma posição contraposta à que deixei implícita supra, embora o meu propósito não fosse senão o de apontar que há certas diferenças de classes de pessoas que são existencialmente mais irredutíveis e relevantes que as classes de que tratam os sociólogos e politólogos. ]
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