quinta-feira, abril 15, 2010

CENTENÁRIO DA REPÚBICA: DA RUA DA ESPERANÇA AO LARGO DO DESENGANO


No dia 3 de Outubro, pelas 20.30 horas reuniam-se num 2º andar do nº 106 da Rua da Esperança, Lisboa, meia centena de pessoas, civis e militares, para decidir sobre começar imediatamente ou adiar mais uma revolução política :
« Só Afonso Costa se sentara numa poltrona a um canto da casa. Todos estavam de pé, projectando-se os primeiros cículos de luz mais intensa do candeeiro de suspensão em Cândido dos Reis e nos oficiais, que tinham nessa hora trágica o papel supremo. O Directório, que estava representado por mim e Inocêncio Camacho, José Barbosa, Cupertino Ribeiro e Eusébio Leão, aguardava silencioso as palavras decisivas dos oficiais revolucionários, sobretudo as palavras finais de Cândido dos Reis, a figura que tudo dominava com a grandeza da sua fé e com a energia das suas resoluções. »
Quem isto conta, estava 24 horas depois na varanda dos Paços do Concelho de Lisboa a anunciar a vitória do movimento reolucinário. Hora “trágica” é como José Relvas qualifica a hora das decisões irrevogáveis, neste trecho do 1º volume das suas Memórias Políticas (1977), que teve ocasião de redigir depois “com a serenidade de quem está já isento de paixões, alheio às lutas”. Triunfou a decisão expressa nas “palavras finais” do almirante Cândido dos Reis: - « A Revolução não será adiada. Sigam-me, se quiserem. Havendo um só que cumpra o seu dever, esse único serei eu. Para a vitória ou para a morte! »
A “hora” não demorou tempo a desenganar as alternativas categóricas dos humanos, que o tempo gosta de converter às vezes em inesperadas conjuntivas: a revolução saiu vitoriosa e o “chefe supremo da revolução” viria a ser a primeira vítima mortal dela... às suas próprias mãos. Mas o suicídio do impenitente anti-clerical na solidão da Travessa das Freiras foi negado pela imprensa republicana que, em sucessivas tiragens saídas sem incómodo nenhum da polícia, dava o famoso e popular almirante como vivo e a comandar energicamente as forças da marinha nos barcos sublevados e surtos no Tejo...
Na redacção de um destes jornais, A Luta, improvisava-se uma Junta Revolucionária, que foi o posto de comando, informação e coordenação das diversas e dispersas iniciativas de militares e paisanos que se foram desenrolando desde o Poço do Bispo a Alcântara. José Relvas, que esteve na Junta e depois foi instalar-se com os companheiros num hotel ao Chiado, conta-nos do desfecho na manhã de 5 de Outubro:
« E quando o grupo do Hotel d’Europe, que representava o Directório (o directório que recebera o encargo de fazer a revolução) e a Junta revolucionária de A Luta entrou no Rossio o povo levou reunidos nas mesmas aclamações e no mesmo triunfo esses homens e o coronel de Caçadores 5 [ José Joaquim Peixoto, monárquico]. Naqueles estava a síntese da revolução; neste o símbolo da realeza vencida, mas já cercada da generosidade dos vencedores. Começava a epopeia dos inolvidáveis dias de Outubro, em que a vitória e o perdão se confundiam num impulso de nobreza patriótica, que desde logo conquistou para a República a simpatia e a admiração da Europa. »
Às 9 da manhã José Relvas anunciava a instauração do novo regime e os o nomes do seu 1º governo (provisório). Mas só cerca do meio-dia o homem “sentado na poltrona” se dignou sair da sombra e aparecer na Câmara, onde começou logo a redigir proclamações e decretos. –
« O Governo Provisório foi constituído à la diable e as ideias governativas da Revolução foram entregues ao arbítrio dos ministros, donde resultou a obra desconexa do Governo provisório e a inconcebível situação dum Ministério acéfalo (que o mesmo era ser presidido por Teófilo Braga), com acção independente em cada pasta! Não faltavam entre os homens da Revolução capacidades suficientes, e algumas especializadas, para fixar os princípios de direito, de administração civil e política, de regime financeiro, de organização colonial, de defesa nacional, pela reforma do exército e pela orientação da política externa das novas Instituições. Mas faltava a sequência de esforço, e os paladinos da República julgavam cumprir suficientemente a sua missão numa actividade de comícios e conferências, sem dúvida admirável para despertar as energias da reacção popular, mas estéril para com ela se formar um corpo de doutrina, e dirigir um Estado. Deste imenso erro veio a enfermar a vida da República. »
A opinião depreciativa de José Relvas relativamente a Braga era extensiva à figura de Bernardino Machado e à obra de Afonso Costa. –
« São bastante severas as apreciações que tenho feito de Bernardino Machado. Mas são merecidas pelo mal que este homem funesto causou ao País e à República. Associado a Afonso Costa, ligando-os um pacto que começa no Governo Provisório e vai até à imposição da sua [de Machado] eleição de Presidente da República a uma Câmara reconhecidamente hostil a essa chefatura, apoiado nos elementos mais perturbadores dos centros republicanos de Lisboa, ele é, com Afonso Costa, o grande responsável do descalabro nacional, pelo predomínio de factores anárquicos, que divorciaram a maioria da opinião portuguesa das novas Instituições. A Revolução fora uma esperança entusiástica, abraçada simultaneamente pelo povo e pelas classes cultas. (... ) Havia a impressão de que se preparava uma obra eminentemente nacional, aberta ao triunfo das maiores capacidades e das mais altas virtudes. O desengano foi cruel para os velhos e sinceros republicanos (...). Aqueles dois homens fizeram uma obra de divisão, atacaram crenças, costumes e tradições, que eram e são inseparáveis do sentimento nacional; radicaram um regime faccioso, proclamando uma República privativa duma parte da nação e foram assim os maiores agentes da obra liberticida que veio a ser a característica da República na sua pior fase! »
Uma das cinco figuras que, com José Relvas, o historiador Carlos Ferrão considerou terem tido “o principal papel na preparação ” do 5 de Outubro (além de Miguel Bombarda, Cândido dos Reis e Machado Santos), foi o publicista João Chagas, que chefiou o primeiro governo constitucional da República; cinco anos depois, numa entrada de Janeiro do seu Diário, sintetizava assim o “descalabro nacional” : « Estamos num estado que perdeu toda a autoridade e todo o prestígio, dirigido por insensatos, anarquizado por doidos e abandonado ao seu destino por egoístas pusilânimes. »

[ Imagem da Marianne portuguesa, a jovem alentejana Ilda Pulga, que deu o busto ao brônzeo busto da nossa República , com a arte do escultor Francisco Santos. ]