segunda-feira, maio 31, 2010

RENASCENÇA PORTUGUESA


« Abro hoje a República, passeio os olhos enjoados por aquela prosa de meia-tijela e, de súbito, qundo em repulsas do estômago ia arrojar de mim o estupor da gazeta, dou com esta coisa sublime: o Sr. Raul Sangreman Proença foi nomeado 2º conservador da Biblioteca... Foi uma grande alegria, palavra. Dê cá um abraço, Homem! »
Era o dia 6 de Fevereiro de 1911, e Jaime Cortesão projectava assim na insípida prosa dum jornal emblemático do novo regime a preocupação de que a República não trouxesse as soluções novas que pediam velhos problemas portugueses. Noutra carta ao amigo Raul Proença, a 26 do seguinte mês de Julho, Cortesão fala da « necessidade de fundar uma Associação dos artistas e dos intelectuais portugueses com o fim de exercer a sua acção, isenta de facciosismos políticos, dentro da actual sociedade. Acção social orientadora e educativa num meio como o nosso, onde não há grandes ideias, nem grandes homens que se imponham. Você sabe: são os burros que triunfam e portanto a burrice também. » Ora, terminava por esse altura a 1ª série do quinzenário cultural portuense A Águia, cujo primeiro número saíra no dia 1º de Dezembro de 1910, dirigida por Álvaro Pinto, e de que Jaime Cortesão fora um dos principais colaboradores. E o director manifestava-se aberto a que a revista continuasse, agora como órgão literário duma dessa Associação que se propunha « dar um contéudo renovador e fecundo à revolução republicana ». É o que se diz na mesma carta, onde parece que temos o primeiro testemunho histórico da origem desse importante movimento cultural, pedagógico e cívico que teve o nome de Renascença Portuguesa.
« O que existe incontestavelmente é uma aspiração esparsa, latente, em nebulosa – uma atmosfera, como dissemos -, um sentimento de mal-estar que é a primeira condição de movimento, e um desejo de alguma coisa – não se sabe bem o quê -, que nos incite, que nos impulsione, que nos una, que nos salve. » As ênfases são do autor – Raul Proença -, e o trecho é do manifesto do grupo de Lisboa (a que pertenciam António Sérgio e Jaime da Câmara Reys) que ele redigiu, em 1911, para o lançamento da Renascença. Aqui temos o mesmo “mal-estar” de que falava Manuel Laranjeira em 1897, na sua primeira série de artigos sobre O Pessimismo Nacional. Não é a única semelhança. Quer na etiologia, quer na terapêutica, o cotejo de ambos os textos revelaria mais que semelhanças: identidades de pontos de vista.
“Alguma coisa” e “não se sabe o quê”. Quem o deveria saber parece que seriam as elites, e este movimento propunha-se precisamente « criar em Portugal estas duas coisas absolutamente novas: uma elite consciente, uma opinião pública esclarecida.» E com que meios ? Com « a escola, o livro, a revista, o panfleto, o manifesto, a conferência, a exposição, o inquérito, a viagem de informação e de estudo. » E de tudo isto teve e com tudo isto cumpriu a Renascença Portuguesa. Até mesmo a “viagem de estudo e de informação”, cumpriu-a Raul Proença (que temos vindo a citar) na extraordinária iniciativa que dirigiu, já nos anos 20, em colaboração com tantos dos melhores escritores e especialistas da época, que foi o magnífico Guia de Portugal.
Relativamente à escola, cumpre lembrar a iniciativa da fundação de várias Universidades Populares que, entre 1912 e 1928, abriram e funcionaram no Porto, Coimbra, Póvoa do varzim, Vila Real e Lisboa. Desde a Filosofia à História da Arte até à Higiene Infantil e Escrituração Comercial, passando pela História Social e Política, a Botânica, o Magnetismo e a Electricidade, foi um muito meritório esforço de muitos professores com formação especializada de nível médio e superior para levar a cultura letrada ao “povo”. Parece, todavia, que pelo menos no Porto a receptividade não teria correspondido completamente ao «entusiasmo e dedicação dos seus organizadores». Num balanço de actividades, o já citado Álvaro Pinto, então secretário da revista A Águia, comparava com a experiência passada já feita na extinta Universidade Livre - muito apoiada pela imprensa republicana, sustentada com “os contributos pecuniários das associações operárias” e que tinha sido um baluarte de oposição à Monarquia; e constatava agora a « indiferença com que muitos vêem a Universidade Popular, à qual muitos trabalhadores não ocorrem porque, sem mancha alguma política nem comités, esta [Universidade] não manejava uma bandeira de oposição à República ou às instituições políticas que lhe são afectas. » Era um sintoma claro do divórcio social entre as classes operárias e o regime da pequena e média burguesia triunfante no 5 de Outubro.
Não era o único divórcio. O “manifesto” citado de Raul Proença não chegou a valer como tal e como tal nunca foi publicado. Era ele já uma alternativa a um primeiro manifesto, redigido anteriormente por Teixeira de Pascoaes, em nome do grupo do Porto, que suscitara reservas nos de Lisboa. E assim o movimento lançou-se sem manifesto, ficando a valer por ele o editorial da 2º série da Águia, reaparecida em Novembro de 1911 como órgão principal da Renascença Portuguesa. Foi nas suas páginas que, em 1913, viria a surgir a célebre (e rude) polémica entre Pascoaes e António Sérgio sobre as teorias do Saudosismo, a qual consumaria o afastamento do grupo de Lisboa –esse que, uma década depois, estará na na origem da Seara Nova.

[ A Águia parece que é antes Fénix. Ei-la renascida mais uma vez, aqui: http://novaaguia.blogspot.com/ ]