LEIS NATURAIS E LEIS MORAIS
“A atmosfera terrestre exerce nos corpos mergulhados nela uma pressão cujo valor varia na razão inversa da altitude a que se encontram.” Qualquer indivíduo medianamente instruído naquela parte da cultura do Ocidente a que modernamente chamamos “ciência”, dirá que a citação exprime uma “lei da natureza”. E reconhecerá sem dificuldade que tal “lei” é completamente estranha à sua pessoa neste sentido: não foi ele que a descobriu, e mesmo que alguns filósofos e curiosos do séc. XVII não tivessem reparado nisso, tais fenómenos existiriam na “Natureza”, assim mesmo sujeitos a tal “lei", que é, por isso, inteiramente objectiva, inteiramente indiferente à existência de curiosos que a descobrem ou não. E já não encontramos nada de “divino” nessa “Natureza”.
Nas regras ou regularidades constantes que percebiam na “Natureza”, encontravam os estóicos sinais de um Logos ordenador cósmico, de que falei no postal anterior. Também lhe chamavam “Deus”, e acreditavam que era feito de uma espécie de matéria ígnea, a que chamavam “fogo”, como já antes o velho Heraclito de Éfeso. Mas os antigos estóicos e nós outros ocidentais de hoje, estamos na mesma: tenha ou não tenha alguma qualidade que mereça chamar-se “divina”, tal “Natureza” parece-nos estritamente e absolutamente impessoal. E surge o problema. – Quando um Cícero, no trecho que citei no postal anterior, fala numa “verdadeira lei, a da recta razão conforme com a natureza, difundida entre todos, constante, eterna, que com o seu mandado convida ao dever....” – de que “lei” e de que “natureza” está a falar? Não parece que sejam impessoais... Então como é que o que parecia impessoal aparece agora pessoal, ou não será apenas delusiva personificação por mor de residuais crenças animistas?
Não conheço resposta do estoicismo. No fim de contas, se esse Logos regula de tal maneira o Cosmos que, a cada momento, há globalmente um sábio e nececessário equilíbrio de males e de bens (não há mal sem bem e vice-versa), de sorte que o mundo é o melhor (o mais racional) dos mundos concebíveis - tanto vale eu fazer o que devo como o que não devo, e aparentemente fico livre para julgar para mim só o que mais me convém.
Aplicando. – Um Logos cósmico impessoal parece um fundamento metafísico suficiente e consistente com uma ética da impassibilidade (apatheia) e dum soberano desprendimento (ataraxia) de toda a ganga das convenções sociais e padrões culturais que impedem os homens de “seguir a Natureza”, de acolher com equânime serenidade o que de “bens” ou de “males” a Natureza lhes dá. De aqui parece que deveriam passar por cima dos prémios e honrarias como das injúrias e afrontas dos homens; dos prazeres da saúde vigorosa como das dores da doença e da senescente velhice, abstendo-se de intervir o mais possível no curso da Natureza até ao seu natural fim: é o célebre adágio estóico Sustine et abstine. Acontece que não poucos dos principais mestres dessa escola decidiram pôr termo à sua própria vida. Mas outros não. Ora, se tanto vale uma coisa como a sua contraditória, parece que temos uma ética assente no arbítrio subjectivo da pessoa individual ou na força de ocasionais e sobrevenientes circunstâncias: no primeiro caso, não se vê como seja coerente com um Logos objectivo, imutável e impessoal; no segundo, não se vê como não seja condicionada e não livre. Em última instância, se a ética se reduz ao que o sujeito pode, de facto, querer ou não querer fazer não se vê por que haja de falar-se em dever e em ética. E isto também porque um sujeito poder fazer isto ou aquilo não garante por si só que tal poder é o de uma vontade livre ou libertadora dos determinismos psíquicos, sociais ou biológicos configuráveis em termos de “leis da Natureza”. Aliás, mesmo com tal garantia, só entramos no domínio da Ética quando o sujeito é consciente de o que deve querer, e capaz de decidir-se (livremente) a agir por motivos ou fins que julga suficientemente valiosos.
Fica, pois, claro que as leis naturais são impessoais, e prescindem de qualquer consciência nos sujeitos; enquanto as leis morais implicam necessariamente a existência de uma consciência pessoal capaz de discernir, julgar, e propor-se realizar actos que se deve a si e aos outros, em função de certos “ideais” e “valores”: - uma consciência moral.
As leis morais são, pois, leis de uma natureza que, no humano, não pode confundir-se com a física e biológica: a natureza racional e moral de pessoas. ( O não serem idênticas não implica sejam separáveis: são faces da mesma natureza humana no devir espacio-temporal de todos os indivíduos da espécie. Por outro lado, como o conceito de pessoa é necessariamente relacional e os indivíduos surgem normalmente associados a outros em grupos, tem parecido a muitos que as leis morais seriam redutíveis às normas sociais e à tendência espontânea à sociabilidade. As sociedades animais dos mamíferos que nos são mais próximos sugerem, no entanto, que seriam antes tais normas as redutíveis a leis naturais. Mas seria talvez um efeito da presença nos animais humanos duma consciência moral, que nos faz parecer tais normas sociais como podendo não ser leis naturais, e derivadas então da “cultura”.)
Eis porque ainda hoje, a propósito das relações pessoais, jurídicas e políticas dos homens em sociedade, há filósofos e juristas que falam de “Direito Natural” e de “Lei Natural” : trata-se aqui sempre da natureza moral própria de pessoas racionais. E convém muito não deixarem de falar assim, para que os humanos, sob a sedutora influência dos prestígios tecnológicos das “ciências da natureza”, se não convençam de que apenas conta a natureza física e biológica – impessoal -, para mais facilmente abdicarem ou renunciarem à condição de pessoas – àquela humanitas ou humanidade da pessoa de que já falavam os velhos estóicos latinos. Mas, como a suposta renúncia equivaleria a pretender uma impossibilidade ontológica, as consequências inevitáveis, dramáticas e dolorosas, são a degradação e a vulnerabilidade existenciais, à mercê de poderes fácticos e fatais determinismos. Como vamos experimentando...
As considerações precedentes impõem outras clarificações que importam ao nosso assunto dos Direitos Humanos ( se inamissíveis, ou se renunciáveis ) e à sumária resposta que sobre isto apresentei no postal anterior. Mas, sobretudo, implicam com a mais fundamental e decisiva questão que nos podemos – e devemos – pôr a respeito deste assunto: mesmo inalienáveis, - o que faz com que essa natureza humana seja assim tão valiosa que a torne digna de tais Direitos, e do dever de os respeitar absolutamente? Suspeito que é por não se considerar bem este ponto que, entre outras consequências, se chega a acolher a ideia e a alimentar o propósito da “renúncia”, e assim também o dever apenas condicionado de os respeitar.
[ Neste e nos sequentes usei e usarei os termos “moral” e “ética” como sinónimos. Disse que o conceito de pessoa é um conceito relacional porque assim se nos apresenta a consciência: percepção de si como relação do sujeito consigo próprio, unificada num “eu” identificador; e coexistente, concomitante e correlativa relação a um outro. Esta dúplice relação de si a si e de si a outro, estrutural na consciência humana individual, ressalta empiricamente mais transparente nos casos psicológicos de dissociação da personalidade. A transcendência desta consciência relativamente ao seu suporte biofísico natural é legível nos casos daquelas pessoas que desde que deram acordo de si nunca se concordaram com o seu sexo biológico; como também nos casos de experiências “fora do corpo” em estados de “quase morte”, ou nos casos (muito mais raros) de recuperação das funções vitais após morte clinicamente atestada sem interrupção da consciência. ]
Nas regras ou regularidades constantes que percebiam na “Natureza”, encontravam os estóicos sinais de um Logos ordenador cósmico, de que falei no postal anterior. Também lhe chamavam “Deus”, e acreditavam que era feito de uma espécie de matéria ígnea, a que chamavam “fogo”, como já antes o velho Heraclito de Éfeso. Mas os antigos estóicos e nós outros ocidentais de hoje, estamos na mesma: tenha ou não tenha alguma qualidade que mereça chamar-se “divina”, tal “Natureza” parece-nos estritamente e absolutamente impessoal. E surge o problema. – Quando um Cícero, no trecho que citei no postal anterior, fala numa “verdadeira lei, a da recta razão conforme com a natureza, difundida entre todos, constante, eterna, que com o seu mandado convida ao dever....” – de que “lei” e de que “natureza” está a falar? Não parece que sejam impessoais... Então como é que o que parecia impessoal aparece agora pessoal, ou não será apenas delusiva personificação por mor de residuais crenças animistas?
Não conheço resposta do estoicismo. No fim de contas, se esse Logos regula de tal maneira o Cosmos que, a cada momento, há globalmente um sábio e nececessário equilíbrio de males e de bens (não há mal sem bem e vice-versa), de sorte que o mundo é o melhor (o mais racional) dos mundos concebíveis - tanto vale eu fazer o que devo como o que não devo, e aparentemente fico livre para julgar para mim só o que mais me convém.
Aplicando. – Um Logos cósmico impessoal parece um fundamento metafísico suficiente e consistente com uma ética da impassibilidade (apatheia) e dum soberano desprendimento (ataraxia) de toda a ganga das convenções sociais e padrões culturais que impedem os homens de “seguir a Natureza”, de acolher com equânime serenidade o que de “bens” ou de “males” a Natureza lhes dá. De aqui parece que deveriam passar por cima dos prémios e honrarias como das injúrias e afrontas dos homens; dos prazeres da saúde vigorosa como das dores da doença e da senescente velhice, abstendo-se de intervir o mais possível no curso da Natureza até ao seu natural fim: é o célebre adágio estóico Sustine et abstine. Acontece que não poucos dos principais mestres dessa escola decidiram pôr termo à sua própria vida. Mas outros não. Ora, se tanto vale uma coisa como a sua contraditória, parece que temos uma ética assente no arbítrio subjectivo da pessoa individual ou na força de ocasionais e sobrevenientes circunstâncias: no primeiro caso, não se vê como seja coerente com um Logos objectivo, imutável e impessoal; no segundo, não se vê como não seja condicionada e não livre. Em última instância, se a ética se reduz ao que o sujeito pode, de facto, querer ou não querer fazer não se vê por que haja de falar-se em dever e em ética. E isto também porque um sujeito poder fazer isto ou aquilo não garante por si só que tal poder é o de uma vontade livre ou libertadora dos determinismos psíquicos, sociais ou biológicos configuráveis em termos de “leis da Natureza”. Aliás, mesmo com tal garantia, só entramos no domínio da Ética quando o sujeito é consciente de o que deve querer, e capaz de decidir-se (livremente) a agir por motivos ou fins que julga suficientemente valiosos.
Fica, pois, claro que as leis naturais são impessoais, e prescindem de qualquer consciência nos sujeitos; enquanto as leis morais implicam necessariamente a existência de uma consciência pessoal capaz de discernir, julgar, e propor-se realizar actos que se deve a si e aos outros, em função de certos “ideais” e “valores”: - uma consciência moral.
As leis morais são, pois, leis de uma natureza que, no humano, não pode confundir-se com a física e biológica: a natureza racional e moral de pessoas. ( O não serem idênticas não implica sejam separáveis: são faces da mesma natureza humana no devir espacio-temporal de todos os indivíduos da espécie. Por outro lado, como o conceito de pessoa é necessariamente relacional e os indivíduos surgem normalmente associados a outros em grupos, tem parecido a muitos que as leis morais seriam redutíveis às normas sociais e à tendência espontânea à sociabilidade. As sociedades animais dos mamíferos que nos são mais próximos sugerem, no entanto, que seriam antes tais normas as redutíveis a leis naturais. Mas seria talvez um efeito da presença nos animais humanos duma consciência moral, que nos faz parecer tais normas sociais como podendo não ser leis naturais, e derivadas então da “cultura”.)
Eis porque ainda hoje, a propósito das relações pessoais, jurídicas e políticas dos homens em sociedade, há filósofos e juristas que falam de “Direito Natural” e de “Lei Natural” : trata-se aqui sempre da natureza moral própria de pessoas racionais. E convém muito não deixarem de falar assim, para que os humanos, sob a sedutora influência dos prestígios tecnológicos das “ciências da natureza”, se não convençam de que apenas conta a natureza física e biológica – impessoal -, para mais facilmente abdicarem ou renunciarem à condição de pessoas – àquela humanitas ou humanidade da pessoa de que já falavam os velhos estóicos latinos. Mas, como a suposta renúncia equivaleria a pretender uma impossibilidade ontológica, as consequências inevitáveis, dramáticas e dolorosas, são a degradação e a vulnerabilidade existenciais, à mercê de poderes fácticos e fatais determinismos. Como vamos experimentando...
As considerações precedentes impõem outras clarificações que importam ao nosso assunto dos Direitos Humanos ( se inamissíveis, ou se renunciáveis ) e à sumária resposta que sobre isto apresentei no postal anterior. Mas, sobretudo, implicam com a mais fundamental e decisiva questão que nos podemos – e devemos – pôr a respeito deste assunto: mesmo inalienáveis, - o que faz com que essa natureza humana seja assim tão valiosa que a torne digna de tais Direitos, e do dever de os respeitar absolutamente? Suspeito que é por não se considerar bem este ponto que, entre outras consequências, se chega a acolher a ideia e a alimentar o propósito da “renúncia”, e assim também o dever apenas condicionado de os respeitar.
[ Neste e nos sequentes usei e usarei os termos “moral” e “ética” como sinónimos. Disse que o conceito de pessoa é um conceito relacional porque assim se nos apresenta a consciência: percepção de si como relação do sujeito consigo próprio, unificada num “eu” identificador; e coexistente, concomitante e correlativa relação a um outro. Esta dúplice relação de si a si e de si a outro, estrutural na consciência humana individual, ressalta empiricamente mais transparente nos casos psicológicos de dissociação da personalidade. A transcendência desta consciência relativamente ao seu suporte biofísico natural é legível nos casos daquelas pessoas que desde que deram acordo de si nunca se concordaram com o seu sexo biológico; como também nos casos de experiências “fora do corpo” em estados de “quase morte”, ou nos casos (muito mais raros) de recuperação das funções vitais após morte clinicamente atestada sem interrupção da consciência. ]
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