quarta-feira, janeiro 23, 2008

Afinal o mundo é uma grande ópera!

Desta vez, remetendo-me ao silêncio dos culpados, apenas assevero: isto é um roubo.
"Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prémios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu génio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de ópera, do qual abrira mão, por entender que tal género de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros – e acaso para reconciliar-se com o céu –, compôs a partitura, e logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
- Senhor, não desaprendi as lições recebidas – disse-lhe –. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e, se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés…
- Não – retorquiu o Senhor –, não quero ouvir nada.
- Mas, Senhor…
- Nada! Nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
- Ouvi agora alguns ensaios!
- Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto, estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa, dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muitas vezes o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.
Os amigos do maestro querem que dificilmente se possa achar obra tão bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contrária ao drama."

5 Comments:

Blogger Edelweiss said...

Xor Z, Xor Z, até a roubar é o maior...

11:30 da manhã  
Blogger Pedro Isidoro said...

Excelente escolha. Venham mais virtuosos roubos como este.

11:13 da tarde  
Blogger Edelweiss said...

Xor Z, porque é que não partilha com os leitores a origem de um texto tão belo? Está armado em Dom Casmurro? ;)

11:11 da manhã  
Blogger Xor Z said...

Pois estava, cara edelweiss, e também à espera que o Pedro, que tem sido o especialista, denunciasse a sua origem. No entanto, você fez-nos esse favor e não sei se casmurre mais ou lhe agradeça. Vistas bem as coisas vou-lhe agradecer, pois, agradecer é como perguntar, não ofende.
Quanto tempo vou mais visitar o seu blog na esperança de ver algo novo?

11:12 da tarde  
Blogger Edelweiss said...

Não perca tempo a ir lá, aquele já não mexe mais. Tive uma ideia luminosa e talvez abra outra coisa daqui a uns meses, eu depois aviso.

9:05 da manhã  

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