quarta-feira, março 26, 2008

O "PAIAÇU"



Tal o nome tupi que deram os índios brasileiros ao nosso padre António Vieira: o “pai grande”; e não apenas pela elevada estatura física senão pelo grande amigo e protector que nele tinham.

Regressara em 1653 às terras do Brasil, onde se tinha criado desde os seis anos de idade, e que não via há doze. Quem fora em Lisboa o pregador famoso e protegido do rei D. João IV, que o enviara pela Europa em missão diplomática ao serviço da Restauração portuguesa, chega agora com provisão real de superior das missões jesuítas no Brasil. E o que fora antes defensor da repatriação do cristãos-novos portugueses contra os interesses e mentalidade instalados na Inquisição, chega agora a S. Luís do Maranhão com uma ordem do rei para se libertarem todos os índios cativos dos colonos. Ora estes dependiam absolutamente desta mão-de-obra para as plantações da cana do açúcar e do tabaco… Aos colonos, no sermão da Quaresma desse ano de 53, o pregador prega-lhes a consciência sem meias-medidas:

« Sabeis, cristãos, sabeis, nobreza e povo do Maranhão, qual o jejum que quer Deus de vós esta Quaresma? Que solteis a atadura da injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos. Estes são os pecados do Maranhão; estes são os que Deus me manda que vos anuncie. Deus me manda desenganar-vos e eu vos mando desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal; todos viveis e morreis em estado de condenação; e todos vos ides direito ao inferno. Já lá estão muitos, e vós também estareis cedo com eles, senão mudardes de vida. »

Mudar de vida! Bem ciente da dificuldade do ponto, o pregador antecipa objecções:

«Pois quem nos há-de ir buscar um pote de água ou fazer duas covas de mandioca? Teriam de ser as nossas mulheres, os nossos filhos?...
Primeiramente, não são estes os apertos em que vos hei-de pôr… Mas quando a necessidade e a consciência obriguem a tanto, digo que sim, e torno a dizer que sim: que vós, que vossas mulheres, que vossos filhos e que todos nós nos sustentássemos de nossos braços; porque melhor é sustentar-se do suor próprio que do sangue alheio. Ah, fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram, haviam de lançar sangue! »

As consequências práticas foram os “cristãos” desacatarem a ordem do rei e impedirem por todos os modos que os jesuítas tratassem com os índios senão para, como diziam, “ensinar-lhes a doutrina”. Aos colonos, ensinou-lhes a doutrina de Santo António aos peixes: fizeram-se desatendidos, encavaram-se na mandioca, encapados em ressentimento pouco cristão, e o resultado foi oito anos depois lançarem os jesuítas fora das terras do Maranhão e de Belém do Pará, obrigando Vieira a regressar a Portugal. Era o prelúdio do que viria a suceder no século seguinte, com o ditador Pombal. De novo aqui deste lado do Atlântico, falecido o protector e amigo D. João IV, a Inquisição ficava livre para deitar a mão a quem há muito desejava agarrar.

2 Comments:

Blogger Bloquinho de Sonhos said...

obrigado. Aprendi mais um pouquinho.

10:39 da manhã  
Blogger Pedro Isidoro said...


As "covas de mandioca" lembraram-me as frugais refeições do nosso patrono Diógenes, a que o mesmo Vieira se refere no Sermão da 1ª Sexta-Feira da Quaresma, de 1651 (VIII):

« Entre os gentios também, por seu modo, havia santos, os quais eram os filósofos, principalmente estóicos e cínicos. Diógenes, filósofo cínico, queria tão pouco das coisas deste mundo, que nem uma choupana tinha em que viver; e morava dentro em uma cuba. Foi-o ver por maravilha Alexandre Magno, e, dizendo-lhe com sua natural magnificência que pedisse quanto quisesse, que responderia Diógenes? — Peço-te que não tires o que me não podes dar. — E disse isto porque era inverno, e Alexandre, com a sombra do corpo, lhe tirava o sol. Parece-vos que adularia aos reis um homem que tão pouco queria deles? Bem o mostrou em uma famosa resposta sua, que refere Valério Máximo. No tempo em que reinava Dionísio em Sicília, estava Diógenes à porta ou à boca da sua cuba, lavando umas ervas para comer, e disse-lhe um dos que passavam: — Se tu adularas a Dionísio, não comeras ervas. — E ele respondeu: — E se tu te contentaras com comer ervas, não adularas a Dionísio: Si tu Dionysio adulati velles, isto non ederes. Cui respondit: Si tu ista edere velles, Dionysio adulari nolles. Porque os reis se não servem de homens que se contentem com comer ervas, por isso estão comidos de aduladores, e cercados de inimigos: Quoniam defecit sanctus. Para ser santo deste gênero não é necessário que faça milagres o que serve ao rei: basta ser homem que se contente com o seu pouco, e não aspire a ter mais do que tem, nem a ser mais do que é.»

12:15 da tarde  

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