sexta-feira, junho 13, 2008

PORTUGAL EM PESSOA



«Quando ele nasceu, nascemos todos nós.»
“Para a Memória de António Nobre”, in A Galera, 1915.




A “primeira poesia” terá sido esta quadra dedicada “à minha querida mamã”:

Eis-me aqui em Portugal
Nas terras onde eu nasci.
Por muito que goste d’ellas
Ainda gosto mais de ti.


É uma quadra “ao gosto popular” que, no espólio, está assinada e datada de “26-7-95”.

Nos dois primeiros versos, eu sempre ouvi a voz duma Distância, como se o Poeta, então com 7 anos de idade, viesse de torna-viagem e estivesse afastado de sua mãe. Mas, à data, ele estava com a mãe nas terras em que nasceu. Só em Janeiro de 96 partiriam para a África do Sul. A Distância, a viagem de que tornava, podiam ser outras...

Cinco anos depois, em Agosto de 1901, toda a família voltou para uma curta estada em Portugal.Vinha com eles no barco o cadáver da sua irmãzinha, que partira antes dos três anos de idade. Em Maio de 1902, vão aos Açores visitar a família materna e, no mês seguinte, o padrasto e a mãe regressam a Durban. O Poeta, só em Setembro se lhes irá juntar. Julho de 1895 será, pois, Julho de 1902, próximo do Maio anterior em que escrevera o poema Quando Ela Passa ? Este, quase de certeza dedicado à irmã morta, faz parte de um conjunto de quinze poemas, escritos entre Março e Agosto deste ano de 1902, entre os quais a linda paráfrase em verso da “Avè Maria”, que o católico menino das freiras irlandesas de Durban dedicou também a sua mãe. A letra que escreveu e assinou aquela quadra não é a de um menino de 14 anos, e que nesta idade se assinava “F. Nogueira Pessôa” : é a letra de sua mãe, que conservou a quadra entre os seus papéis pessoais, e assinou-a com o nome por que viria a ser conhecido do mundo.
Em 1905, dez anos depois, regressaria definitivamente “às terras onde eu nasci”. Vem sozinho. Tenciona matricular-se no Curso Superior de Letras, em Filosofia. Quem já andava a tentar escrever romances em inglês e se dispunha a continuar a escrever só nessa língua; quem andava já por essa altura embrenhado em estudos filosóficos, multiplicava fragmentos escritos sem data, como este que o compilador Pina Coelho atribui ao ano de “1906”: « My first action was to require of myself whether man’s perpetual failure in the grounds of higher thought was due to want of reasoning power, or to an ill of his reasoning. (…)» Quem, aos 18 anos de idade, anda nestes “grounds of higher thought”, ainda que sozinho, “regressado às terras onde nasci”, decerto não é já o menino autor da quadra “à minha mamã”. E só em 1908 recomeçaria a escrever em português.

Nas notas coligidas por Armando Cortes Rodrigues em 1914 - “baseadas em dados fornecidos pelo próprio poeta” -, lê-se isto:

« Quadra feita por Fernando Pessoa aos 5 anos de idade e dirigida à mãe:
 
Ó terras de Portugal
Ó terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Inda gosto mais de ti.
»

Portanto, em 1914, os 5 anos de idade dão 1893 e dois versos diferentes numa quadra que o modernista não se pejava de recordar ao companheiro de Orpheu. Aliás, nesta versão, uma quadra de maior “sabor popular”: nem o menino de 5/7 anos nem o povo-menino diriam “eis-me”…

Eis-me aqui em Portugal
Nas terras onde eu nasci





- Que voz singular é esta que, estando em Portugal, fala como se tivesse de volta, Regressado?

O leitor está lembrado de que no “horóscopo de Portugal” levantado pelo Poeta ( e onde se encontra escrita a subtracção: “1914-19 = 1895”…), a última data indicada é 1978. É o mesmo ano em que foi registado o “copyright” da obra em que Joel Serrão introduzia e organizava uma colecção de fragmentos Sobre Portugal, saídos da fabulosa arca do nosso tesouro: da fazenda e alimentos que nos têm mantido desde 1935. (E só de pensar que na “certidão de óbito” está escrito que “não deixou bens” e “não fez testamento”… Que grande riso demócrito!...) Impressa e saída em 1979, foi nessa obra que apareceu publicado um fragmento que era o de uma carta para a qual o Poeta pede a uma incógnita “V. Exª a fineza da publicação”. É um fragmento que tem escrito e sublinhado isto:

« No Terceiro Corpo das suas Profecias, o Bandarra anuncia o regresso de D. Sebastião (pouco importa agora o que ele entende por “regresso”) para um dos anos entre 1878 e 1888. Ora neste último ano (1888) deu-se em Portugal o acontecimento mais importante da sua vida nacional desde as Descobertas; contudo, pela própria natureza do acontecimento, ele passou e tinha de passar inteiramente despercebido.»

O que não passou inteiramente despercebido não foi decerto a publicação dos Maias. Terá sido a publicação, por Alberto Pimentel, de um documento “que inculca D. Sebastião como enamorado de D. Juliana de Lancastre, filha do Duque de Aveiro” ?... O Poeta não fazia por menos: “o mais importante desde as Descobertas”…E, por que não?... Nestes oceanos muito mais vastos e perigosos em que navegamos agora à catrina, no meio duma completa Cerração, o leitor é capaz de ver e nos dar a ver bem que não? O que eu vejo é que o mesmo fragmento, datável de 1928, contém ele mesmo uma “profecia”:

« Mas não que antes de uns dez anos, a contar de agora [1928], o povo português venha a perceber do que se trata e da importância do caso.» E vemos bem que, “antes de dez anos”, dar-nos-ia um livro que o Poeta desejou saísse com o seu verdadeiro nome – Portugal.

O leitor dará a importância que entender ao anúncio de um acontecimento que não passou inteiramente despercebido para um dos anos entre 1968 e 1978. Mas há-de lembrar que este último (1978), como aparecia no “Horóscopo de Portugal”, não é a data derradeira. Nas notas manuscritas à margem das « trovas mui inteiras, / Versos bem medidos, / Que hão-de vir a ser cumpridos / Lá nas eras derradeiras » - feitas por um sapateiro-poeta do povo que calçou gente capaz de ir longe como D. João de Castro, António Vieira ou Agostinho da Silva – o Poeta foi até aonde? Pois foi até apor à margem da quadra XI do “Sonho Segundo” do “Corpo Terceiro” das Profecias a seguinte data e parêntese: “2198 [Império]” (sic).

Mas se o leitor amigo, como eu, não tem calçado para correr tais longes, já está confuso com tantas datas e bem entende que anos são desenganos, deixemos tudo isso para numerólogos cabalistas e astrólogos. Vamos com o Poeta por outro caminho. Vimos a intencionada “primeira poesia”. Vamos agora ao (re)verso dos caminhos medidos à luz de estrelas humanamente observáveis. É o último que ele escreveu, numa voz peregrina quem se achou e despede das “terras onde eu nasci”; uma voz de confissão humilde de menino prestes (29-11-1935) a embarcar sozinho para a descomedida Aventura:

« I know not what tomorrow will bring. »



[ Fica uma imagem popular em lugar da de Santo António “que se venera na Egreja de Nª Senhora dos Martyres”, imagem “conservada entre os objectos pessoais” do Poeta. O leitor interessado pode vê-la na p. 41 da Fotobiografia feita por D. Maria José de Lancastre. A propósito, é lembrar duas coisas: a tradição familiar corrente entre os Pessoas de laços genealógicos com a família do Santo; e que o Poeta, nos seus dois últimos anos de vida entre nós como pessoa Fernando António, produziu mais de duas centenas de quadras “ao gosto popular” e, a 9 de Junho de 1935, um poema dedicado ao santo popular (.... Ia eu dizendo, Santo António / Que tu és o meu santo sem o ser .... ), até há pouco inédito. Agora, com licença do leitor, volto-me para a memória doutro António… - aquele “com quem nascemos todos”, porque todos e cada um estamos cada vez mais sós. ]