sexta-feira, dezembro 05, 2008

O CANÁRIO DE OIRO

Se deixo entrar este canário de oiro
Que me espreita e debica
(Eu, que sou ossos, a gaiola,
Débil passarinho loiro!
Eu, professor – como menino de escola!)…
Pois sim: Canta. Fica!

E então, para que tudo em mim se honre e se execute –
(Voz, penas e dejectos
Do canário),
Dou-lhe, seus passeadores, os meus afectos,
As minhas veias duras para grades:
Dentro delas, contrário,
Ele se embeleze e lute.

Ah, que o canário é o meu sangue talvez!

Mas então isto que é? Que violino engoli?
Que frauta rude aveludou a minha noite?
Em que prato de cobre bateu o nó do açoite?
Tão exacto, meu Deus, só vibrado por ti!

Musical, todo fogo, em mim me vou e expando;
Cada lágrima cai de mim como harmonia:
De quatro em quatro, vão a minha dor jogando
Essas lágrimas vãs no tapete do dia.
Que sérias são estas coisinhas de soar,
Poetas que vos is,
Soldados velhos,
Escolhendo na morte uma farda e um lugar!
Somos aqueles imbecis
Desenvolvidos nos espelhos…
Ai, nos espelhos paralelos
Da sala onde um de nós é sozinho a cantar!
Estamos fumados, amarelos,
De tanto ler e delirar!

Inúteis fôssemos, poetas;
Quero dizer: como as casas cor de laranja ou alvas de ovo,
Que não são laranja nem ovo:
Ainda se havia de ver
Se as podridões quietas
Não são o sal e o renovo.




Que águia trouxe do céu meu diapasão de ferro?
Que milhafre criou minha carne em seu bico?
A mão qual foi que me rasgou no erro,
Mulher, o coração que te dedico?

Quem era aquele de quem tirei o sangue forte,
Esta pequena música corrente?
A veia mamou-a a morte,
Que engorda à custa de gente!

Quem era aquela mulher de branco
Que tinha os seios fortificados
E o ventre puro de onde arranco
E os altos olhos separados?
A de fogo e de fel, reclusa e encordoada?
A que nunca toquei porque estava selada?

E o anjo bravo, só lume, o outro sujeito,
Em que chama tocou sua asa desabrida?
Que maçarico foi que lhe platinou o peito
E o deixou em ferida?

Perguntaria,
Se esfinges mais houvesse,
Em que sal se tornou a que se deu por Maria
E me prometeu o que eu fizesse?

Ah, aves de parabólica plumagem,
Anjos de matéria nenhuma e de toda a arrogância,
Mulheres e homens de que sou a última viagem
Começada no mar que me salgou a infância!

Ah, ovo que deixei, bicado e quente,
Vazio de mim, no mar,
E que ainda hoje deve boiar – ardente
Ilha!
E que ainda hoje deve lá estar!


Ah, Sete Espadas, minhas primas,
Estrelas nítidas e diversas,
Piões, pombas, baraças, e até as Sras. Simas
Todas quatro alteando as suas toucas perversas!

Onde? quando? já? outra vez? ou ainda não?
O tempo gasta a minha voz como se fosse o seu pão.




É ele, é ele o que tem tudo escondido!
Ele o que A desviou e A violou no vento!
Ele o que fez de mim o menino perdido
E me deu a navalha com que me fiz violento!

Ele leve para o alto as cordeiras e come-as;
Ele esconde no vale os lobos reduzidos;
Ele pede-nos as coisas emprestadas e some-as;
Ele gasta-nos a voz, os olhos e os ouvidos!

Tempo, ladrão, dá-me conta do fardo:
As saudades práli! As promessas práli!
O que te vale é o escuro… Eu ainda ardo;
Minhas estopas são embebidas por ti.

Ai! A cordeira preta, e do velo maior -
Um palmo de gemido – onde a terias posto?
Tinha os galhinhos entre a lã… é melhor
Desenriçá-los do meu desgosto.

Tempo, molde de todos os lugares,
Pegada de quem desaparece,
Esquema de bocejos e de esgares,
Frio de tudo o que arrefece!

Tempo que me levas meu Pai morto,
Com catorze cavalos, todos de músculo solar;
E, para o ano, quinze! e crescendo! e ele absorto!
E os cavalos cada vez mais empinados! Morto…

Com que jarrete ou asa o hei-de eu alcançar?