sábado, dezembro 13, 2008

SOBRE O ESTUDAR E O ESTUDANTE

« (…) Deixemo-nos de idealizações sobre a rude realidade, de posições beatas que nos conduzem a diminuir, esfumar, adoçar os problemas, a limar as suas mais agudas cruezas [a ponerles bolas en los cuernos ]. O facto é que o estudante-tipo é um homem que não sente necessidade directa da ciência, que não está preocupado com ela e que, no entanto, se sente forçado a ocupar-se dela. Aqui se manifesta desde logo a falsidade geral do estudar. Em seguida, vem a necessidade de uma concretização quase perversa pelo particular: o estudante é obrigado, não a estudar em geral, mas sim a confrontar-se com uma situação em que, quer queira quer não, o estudar lhe aparece dissociado em cursos especiais, cada qual constituído por disciplinas singulares, por esta ou aquela ciência. E quem poderá pretender que um jovem, num certo momento da sua vida, possa sentir efectiva necessidade por uma ciência determinada inventada um belo dia pelos seus antecessores?

Daquilo que, para os criadores da ciência, foi uma necessidade tão autêntica e viva que a ela dedicaram toda a sua vida, faz-se agora uma necessidade morta e um falso saber. Não tenhamos ilusões: com um tal estado de espírito, não se pode chegar a saber o saber humano. Estudar é pois algo constitutivamente contraditório e falso. O estudante é uma falsificação do homem. Ser homem é ser só o que se é autenticamente, por íntima e inexorável necessidade [ el hombre es propiamente sólo lo que es auténticamente, por íntima e inexorable necesidad ]. Ser homem não é ser – ou, o que é o mesmo – fazer qualquer coisa, mas ser o que irremediavelmente se é. Há muitos modos distintos de ser homem. O homem pode ser homem de ciência, homem de negócios, homem político, homem religioso porque todas estas coisas são, como veremos, necessidades constitutivas e imediatas da condição humana. Mas, por si mesmo, o homem nunca seria estudante, da mesma maneira que, por si mesmo, o homem nunca seria contribuinte. Tem que pagar contribuições, tem que estudar, mas não é, nem contribuinte, nem estudante. Ser estudante, tal como ser contribuinte, é algo “artificial” que o homem se vê obrigado a ser.

Estamos perante uma afirmação que, podendo de início ser chocante, consubstancia afinal a tragédia constitutiva da pedagogia. É porém deste paradoxo tão cruel que, em minha opinião, deve partir a reforma da educação.

Tendo em vista que a actividade, o fazer que a pedagogia regula e a que chamamos estudar, é, em si mesma, algo de humanamente falso, nunca será de mais sublinhar que, mais do que em qualquer outra ordem da vida, é no ensino que a falsidade é mais tolerada, constante e habitual. Todos sabemos que também há uma falsa justiça, que se cometem abusos nos julgamentos e audiências. Mas, cada um dos que me escuta poderá perceber pela sua apropria experiência que nos daríamos por muito contentes se, na realidade do ensino, não existissem mais insuficiências, falsidades e abusos do que os que ocorrem na ordem jurídica. Na verdade, o que aí se considera como abuso intolerável – a saber, que não seja feita justiça – é quase a ordem do dia no ensino: o estudante não estuda e, se estuda, pondo nisso toda a sua boa vontade, não aprende. Claro que, se o estudante não aprende, seja por que razão for, o professor não poderá dizer que ensina. No máximo, poderá dizer que tenta ensinar mas que não consegue.


Entretanto, amontoa-se gigantescamente, geração após geração, a mole pavorosa dos saberes humanos que o estudante tem de assimilar, tem que estudar. Quanto mais o saber aumenta, quanto mais se enriquece e especializa, mais longínqua será a possibilidade de que o estudante sinta uma necessidade imediata e autêntica desse saber. Quer isto dizer que cada vez haverá menor congruência entre esse triste fazer humano que é estudar e o admirável fazer humano que é o verdadeiro saber. Trata-se de uma situação que irá aumentar ainda mais a terrível dissociação, iniciada pelo menos há um século entre a cultura viva, o saber autêntico, e o homem médio. Como a cultura, ou o saber, só tem realidade se responde e satisfaz, em qualquer medida, necessidades efectivamente sentidas e, como a forma de transmitir cultura é o estudar, o qual não implica que essas necessidades sejam sentidas, o que acontece é que a cultura, ou o saber, vai ficando a pairar no ar, sem raízes de sinceridade no homem médio, obrigado apenas a ingurgitá-la, a engoli-la. Introduz-se na mente humana um corpo estranho, um reportório de ideias não assimiláveis ou, o que é o mesmo, mortas. Esta cultura sem raízes no homem, que não brota espontaneamente dele, não é autóctone ou indígena; é antes algo de imposto, extrínseco, estranho, estrangeiro, ininteligível, em suma, irreal. Sob a cultura recebida mas não autenticamente assimilada, o homem ficará intacto, quer dizer, ficará inculto, ficará bárbaro. Quando o saber era menor, mais elementar e mais orgânico, era mais fácil poder ser verdadeiramente sentido pelo homem médio, que então o assimilava, o recreava e revitalizava dentro em si. Assim se explica o paradoxo colossal destes últimos decénios: o facto de um gigantesco progresso da cultura ter produzido um tipo de homem como o actual, indiscutivelmente mais bárbaro que o de há cem anos. E que a aculturação ou acumulação da cultura esteja a produzir, de forma paradoxal mas automática, uma rebarbarização da humanidade [que la aculturación o acumulo de cultura produzca paradójica pero automáticamente una rebarbarización de la humanidad ]. (…) »


[ Do pintor basco Ignacio Zuloaga (1870-1945), um retrato de Ortega contemporâneo do texto. ]