sexta-feira, dezembro 05, 2008

VITORINO NEMÉSIO (1901-1978)


A dias de atingir o limite de idade de funções públicas, foi a 9 de Dezembro de 1971 que o professor Vitorino Nemésio deu na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa a sua “última lição”. Mas, prevenia logo de entrada: « Claro que a lei só tira o exercício ao funcionário: o homem exerce enquanto vive. » E, logo a fechar o primeiro parágrafo, o homem deixava transparente a norma que regrou essa “última” e todas as mais lições do professor:

« O ensino não é mera informação do saber mas norma de humanidade, testemunho do autêntico. Uma sociedade que só instituísse informações teóricas aplicáveis ao êxito rentável teria a civilização moribunda. É o grande risco da nossa.»

O homem Vitorino Nemésio demonstrou o que disse: o funcionário “limite de idade” transmutava-se em um livro de poemas (com o mesmo título, 1972); um livro que foi, não apenas mais um testemunho do autêntico, - mas é e será um risco de luz oposto ao traço da barbárie; um farol seguro a quem se achar embarcado e quiser traçar rumo por carta portuguesa nos tormentosos mares da poesia neste século XXI. Assim o poeta exerce mais além de quanto o homem vive.

No dia 28 de Dezembro de 1971, o poeta Vitorino Nemésio abria esta epígrafe no seu Limite de Idade:


EPÍGRAFE

Abro no choupo inciso o meu semblante
(Sou gravador em pedra).
Sossego é todo o Outono terno e imóvel:
Tramas de folha, estâncias altas, cinzas.
Já, de vagar, dos Fiéis avança o dia
Com carroças no Céu, disposições de Outubro.
Minha morte civil, folha de vencimentos,
Cairá também como ao choupo amarelo,
Aposentados nós nos escudos do exílio:
Filhos que tenho, um a cada ombro,
Filhas, cada uma a sua asa,
Do pássaro poeta ampararão o extremo
Com a ajuda de três que me adoptaram
E netas, netos cantando no caminho:
«Ó Senhor Ladrão, ande ligeirinho…»
Fogueteiro maneta, pela mão do velhinha,
Que de pedras me encheu o bolso contra apupos,
Recolho já da tarde o raio ultravioleta,
Aproveito o poente enquanto há sangue lampo
E, ambos surdos à borda da lareira,
Atiço positrões improváveis no campo.
Abro no choupo o que fecho no osso:
Meu nome passageiro
Convocado do chão.
Adeus, árvores novas!
Até logo, ó pessoas efectivas,
Meus amigos formados para o adeus!
As mãos me tremem no vulto,
Minha maneira de folhas,
Que o choupo inciso sou eu:
Espalho as relvas em torno,
Espelho-me nas águas vivas,
Cortam-me na tarde idosa:
Só peço que me levem como ao tronco
Num carro de que os bois tenham fugido
Com as unhas de fogo e os cornos de alma
Metendo-se no mar, de puro espanto,
Comigo em ficta lágrima num pêlo
Que grávida gaivota leve às Ilhas.

Mas escondam, por tudo, peço,
Minhas penas às filhas,
Se o mereço.


Livres do tronco e da canga, os bois ungulados de fogo e de “cornos de alma” transformam-se num cavalo sidério, no penúltimo poema do livro:



CAVALO SIDÉRIO

Assumo a noite e o mal que nela está
Como na rosca estriada o equinoderme.
Tenho a culpa de tudo, a boca de Eu:
Eu, eu, golfado, - e o mais um verme.

Sou investido por mim mesmo no Outro
Ajoelhado na rua a apanhar trapos,
E o que o carrega, e a criança decepada
Encarno em sua mãe e em seus farrapos.

Tiro lama das unhas. Acendo
O cocktail do desespero, a estrela morta
No milhão de anos-luz. E vendo

Que sou assim como a espora no flanco
Do Cavalo fugido, e o casco, e o pó,
Paro à porta de Deus e choro,
Paro à porta de Deus e choro só.




São as últimas metamorfoses do Bicho Harmonioso (1938), que é o poeta: « A esse respeito, creio que o poema central do livro e, em grande parte, do que, não sem tal ou qual ênfase, poderei chamar toda a minha obra poética, é O Canário de Oiro: ainda e sempre bicho harmonioso, bestiola de fábula, como o Licorne ou a Fénix. »

Canta como segue.