sexta-feira, julho 17, 2009

UMA EXPERIÊNCIA MORTAL : REVISITANDO A CAVERNA PLATÓNICA ( IV )

Não é sem fundo motivo que a platónica alegoria da Caverna (eikon, imagem, como o próprio Platão lhe chama) é um dos mais contados e recontados trechos da História da Filosofia. Aceite por isso o caro leitor que eu lá vá buscar esta variante modificada, modernizada e adaptada ao nosso assunto, a lembrar: se quaisquer substâncias psicotrópicas (ou, já agora, qualquer causa “natural”) poderiam dar alguma garantia racional suficiente para ter acontecido a experiência do sagrado na História da humanidade.


Suponha-se uma consciência humana nascida, criada e perpetuamente mantida numa sala de cinema, visionando filmes em projecção contínua, de todos os géneros que nós podemos ver nos cinemas; e que tal consciência nunca tivesse tido assim qualquer contacto com o que chamamos “mundo real”, fora do cinema, de que não seria capaz de fazer nenhuma ideia. Para tal consciência, ainda suposta superiormente inteligente, haveria pelo menos um enigma indecifrável: aquela famosa legenda que aparecia nalguns filmes: “qualquer semelhança entre esta história e a realidade é pura coincidência”. Agora, suponha-se que qualquer poderoso computador de animação gráfica lhe projectava no espaço do proscénio, diante da tela, imagens e narrativas em tudo semelhantes às do cinema, mas de qualidade e nitidez muito melhoradas e a três dimensões. Pergunto: alguma coisa de essencial se alterava na situação? E alguma coisa haveria nova capaz de elucidar o enigma das legendas que falavam em “ficção” e “realidade”? Como?... está o leitor a dizer-me que haveria sim, senhor? - Tal consciência espectadora bem que poderia dizer e pensar que tais imagens de superior qualidade seriam “reais”, e as antigas, da tela, a “ficção”… Pois de facto poderia dizê-lo e pensá-lo, mas o que nos interessa aqui é se tais pensamentos estariam com a verdade.


Suponhamos depois que, com o tempo, tal projecção mais evoluída evoluiria até ao ponto de essa imagens animadas se transformarem em seres em tudo semelhantes aos espectadores, com a única diferença de uns estarem no palco e os outros sentados na plateia; e um destes, que sente um desejozinho de apalpar certa personagem, vê acto contínuo o seu duplo no palco realizar esse desejo. E, é claro, em tempos pouco mais evoluídos, se o duplo no palco é um vivo clone com um radioprocessador implantado capaz de sintonizar à distância com o clonado na plateia, as respostas da outra personagem aos apalpões recebidos serão (com gosto ou desgosto) sentidas ao mesmo tempo na consciência do libidinoso espectador, transformado em espectador-actor. A este tempo, aonde pára a desaparecida legenda dos velhos filmes e, se alguém se lembrasse, o que poderia significar ou de que valeria o assunto “ficção” e “realidade” e suas possíveis coincidência ou diferença? No mundo desta Caverna a resposta parece ser só uma e óbvia: nada.


Embora este divertido mundo pudesse ter evoluções ainda mais curiosas e filosoficamente interessantes, temos já todas as condições para voltar ao nosso tema. Se nos velhos filmes a preto e branco aparecessem certas personagens figurando “deuses” ou “entidades sobrenaturais”, descritas como “mais belas” e mais “mais poderosas” que os humanos, e “imortais”, já está o leitor a adivinhar o que aconteceria quando vissem aquelas primorosas figuras mais nítidas e “vivas”, de formas extraordinárias, a três dimensões. Ora elas representam histórias em contínuo, pegadas umas nas outras, e essas personagens mantêm-se sempre em palco, observamos que têm um nítido ascendente sobre certas outras personagens, que aparecem e desaparecem, as quais têm uma patente atitude de deferência e submissão para com as primeiras. E há então uma consciência espectadora ao nosso lado que nos toca a consciência com a seguinte sugestão: - são aqueles que não desaparecem os “imortais”, os “deuses”, venerados e obedecidos pelos outros… O leitor ponha a sua consciência neste lugar e diga-me se não acolheria tal sugestão como inteiramente crível e fundada na mais directa “evidência”! Mas repare: a representação continuava, os tempos evoluíam, o nosso espectador continua a observar as mesmas atitudes de dominância e submissão, mas agora já não houve falar de “deuses”, mas sim de “reis” e de “súbditos”; e continuando a fita do tempo, nunca mais houve falar de “poderes sobrenaturais”, sim e muito de “poder político”… Até que, na máxima perfeição das tecnologias cavernícolas, quando cada espectador-actor realiza todas as proezas em perfeita harmonia com todos os seus desejos – sem com isso desaparecer do palco ou da plateia -, uma consciência vizinha de nós, no lugar ao lado, nos apalpa com a seguinte sugestão: - Afinal, estamos a ver que os tais “deuses”… somos nós!


Então, onde tínhamos substâncias psicotrópicas pusemos sofisticadas tecnologias de projecção de imagem, de indução de pensamentos e comportamentos. Mas, onde temos estas, nada obsta a pôr-se qualquer elemento que seja parte da arquitectura ou do mobiliário da Caverna. Vejamos brevemente um outro, que também nas últimas décadas tem sido experimentado : a caverna craniana e o mais sofisticado aparelho que se tem descoberto no mundo... - o cérebro. Desde os anos 70 que distúrbios psicológicos como a síndrome de Geschwind, com sintomas de hiper-religiosidade e conversões religiosas súbitas, têm sido associados à epilepsia do lobo temporal e, mais recentemente, há quem tenha pretendido provocar os mesmos sintomas por estimulação electromagnética da mesma área do cérebro. Já a tradição popular denominava este tipo de epilepsia como o “mal sagrado”. Mais investigação laboratorial em sujeitos com experiências de “meditação transcendental”, de “oração” ou de recordação de estados de “união mística” tem mostrado uma correlação entre tais experiências psicológicas e modificações observáveis na actividade eléctrica, química e hematológica no cérebro. E ponhamos mesmo aqui que tal “correlação” seria de facto uma relação causalmente relevante tal que: a actividade neurofisiológica seria a causa eficiente das sobrevenientes vivências pessoais dos sujeitos, subsistindo estas (em memória) também na dependência do cérebro. Relativamente ao nosso conto da Caverna, esta situação traria alguma coisa de mais ou de diferente ? – Nada. (Mas não passe sem dizer que algumas pessoas, dadas como clinicamente “mortas”, sem actividade circulatória ou eléctrica cerebral registada, e que inesperadamente recuperam as funções vitais, têm relatado experiências associáveis e associadas a experiências do sagrado.)


De tudo o que fica dito, alguns leitores poderiam concluir: - a alegoria da Caverna ilustra bem a razão ateísta de considerar que as experiências do “sagrado” não passam de sonhos, cujas causas “naturais” vamos descobrindo, controlando e manipulando, ou seja por drogas ou por estimulação electromagnética do cérebro. – O problema é que a alegoria da Caverna pode ser uma tautegoria da Caverna deste mundo nosso e ilustra bem mais: que tanto os que vêem em cena “deuses” e “poderes sobrenaturais”, como os que vêem “reis” e “poderes políticos”, como os que se julgam eles próprios “deuses” e os controladores e manipuladores… - todos eles sonham.


Agora, o leitor retorna-me que talvez não seja tanto assim, porquanto num mundo alucinogénico de gente alucinada (ou numa cósmica simulação produzida por um hipercomputador Matrix) não haveria nenhuma razão suficiente para a ideia de uma diferença entre simulacro e realidade. E eu concordo, sem deixar de fazer notar ainda que o conto sugeria o ponto duma possível erosão ou gradual extinção dessa ideia (o mesmo quanto à de uma identidade pessoal singular, única, no caso dos espectadores replicados actores). Mas, de facto, há a enigmática legenda e o seu mal resolvido enigma da não coincidência entre a “ficção” e a “realidade”. Talvez tenhamos aqui, caro leitor, uma chave para a difícil saída duma Caverna de onde (como o próprio Platão já advertira) alguns têm pouco ou nenhum desejo de sair. Teremos de a procurar melhor.



[ Entretanto o leitor achará aqui um ponderado e actualizado artigo da neurologista portuguesa Sofia Reimão sobre as pesquisas que no âmbito das neurociências têm vindo a ser feitas com relação ao nosso assunto: http://jcienciascognitivas.home.sapo.pt/09-03_reimao.html. Parece que aos srs. neurocientistas não bastam as maravilhas da fisiologia e bioquímica do cérebro, e com as suas tomografias e ressonâncias magnéticas gostavam de encontrar mais alguma coisa… ]