sábado, julho 25, 2009

UMA EXPERIÊNCIA VITAL ( V ) : ÊXTASE… OU “ECSTASY”?

« Será que há necessidade, e talvez a urgente necessidade, de encontrar algo como os mistérios de Elêusis para sairmos da Caverna de Platão para a luz de dia? »

Huston Smith, Cleansing the Doors of Perception

O título citado é um aceno risonho à célebre obra de Aldous Huxley – The Doors of Perception – que, em 1954, pela categoria intelectual do autor, pela vívida e vivida originalidade do seu conteúdo e pelo extraordinário impacto que teve junto dos leitores – foi a primeira a apontar com clareza para “the religious significance of entheogenic plants and chemicals”. É este o subtítulo do citado livro do professor Huston Smith, uma colectânea revista e um balanço final das pesquisas e trabalhos que durante cerca de 40 anos dedicou ao assunto. Trabalhos académicos e experimentação pessoal com os tais chamados “enteogénicos”. Segundo o autor dá a entender, terá esta começado em 1962, quando se envolveu numa experiência que ficou célebre nos anais da “psicologia da religião”. Não é esta menos digna de ser lembrada que a de Zimbardo, que já referimos aqui: se a de Stanford de certo modo significava a “banalidade do mal”, esta de Harvard poderia fazer pensar numa “banalidade do bem”. Foi com efeito no âmbito de uma tese de doutoramento orientada pelo célebre psicólogo Timothy Leary, e que viria a ser publicada com o título Drugs and Mysticism (1963), que o seu autor – Walter Pahnke – realizou a que ficaria conhecida por “experiência de Sexta-Feira Santa”. Pouco antes do demorado e solene serviço dessa solenidade, numa capela de Boston, foi administrada uma solução de psilocibina (um psicotrópico extraído dos “cogumelos sagrados” que alguns julgam estar na origem da experiência do sagrado na humanidade pré-histórica) a dez estudantes de teologia de Harvard, participantes na cerimónia; a outros dez, que serviam de grupo de controlo, foi dado um placebo (ácido nicotinoso). Os questionários respondidos pelos sujeitos, após o serviço religioso e seis meses depois, evidenciavam que todos os 10 drogados (mas nenhum dos outros) tinham experimentado sensações correspondentes às várias categorias da escala fenomenológica da “experiência mística”, proposta em 1960 no livro Mysticism and Philosophy, de William Stace. O leitor interessado e familiarizado com o inglês tem nesta ligação aqui uma revisão detalhada, com factos inéditos, da célebre experiência, bem como das impressões que 30 anos depois ela deixou em alguns dos que a viveram.

Deve-se a Stace o “princípio da indiferença causal”, que estabelece o seguinte: “Se A tem uma alegada experiência mística E1 e B tem uma E2, e se a fenomenologia da experiência reportada por A inteiramente se assemelha à reportada por B, então E1 e E2 são experiências do mesmo género, quaisquer que sejam as suas causas.” Existe hoje um vasto corpus descritivo de experiências com os “enteogénicos” e existem tecnologias de tratamento da informação que estão a pedir uma análise documental mais lata, se não mais fina e detalhada, que a levada a cabo pela srª Marghanita Laski, já aqui citada. Como vimos, a conclusão desta estudiosa era a de que existiriam diferenças conspícuas entre a experiência extática e a psicotrópica. Mas a análise de Laski referia-se apenas a sete casos (6 com mescalina e 1 com LSD). A impressão pessoal que tenho é que, hoje, tais diferenças – a nível fenomenológico, de descrição dos conteúdos apercebidos da consciência - se atenuariam ou esbateriam de todo. E vou doravante dar como facto averiguado e adquirido que podem ser e, nos casos certos, são de facto indiscerníveis. Mas isto, à luz da história que contámos da Caverna, não é nenhuma razão suficiente para concluir que é a experiência psicadélica que por si dá alguma experiência directa do sagrado, ou algum êxtase capaz de transportar para fora do antro platónico.

Para Stace, que não estudava (mas já previa) a questão das drogas, as “causas” não eram relevantes. Mas, para os que pensam que os “enteogénicos” podem provocar uma experiência do sagrado, a questão não é nada despicienda: “Do Drugs Have Religious Import?” – foi precisamente o título dum famoso artigo, de 1964, de Huston Smith, ainda hoje um dos mais citados do venerável americano The Journal of Philosophy. No ano 2000, no balanço que fazia em Cleansing the Doors of Perception o autor continuava a manter que sim, mas com qualificações e sem automatismos: « the conclusion to which the evidence seems currently to point is that it is indeed possible for chemicals to enhance the religious life, but only when they are set within the context of faith (…) and discipline. » As drogas são, como diz, uma ocasião, não uma causa, e duplamente condicionada: pelas disposições prévias dos indivíduos (condicionante psicológica) e por uma prática ritual socialmente enquadrada (condicionante sociológica). Duas condicionantes, relembremos, aparentemente verificadas na referida experiência com os estudantes de teologia de Harvard. Isto confere completamente com o que diz o autor de Ecstasy and the Dance Culture (1995), Nicholas Saunders. Conta este que se encontrou com um monge beneditino que tinha, com outros, experimentado esta droga, com efeitos positivos sobre os processos de meditação e de oração, a ponto de dizer. “ecstasy opens up a direct link between myself and God”. A mesma impressão muito favorável foi-lhe transmitida por um rabi judeu e por dois mestres do budismo zen. (Nenhuma destas fontes é identificada.) Contudo, a fenomenologia da experiência vivida por todos este religiosos era completamente diferente da vivida pelos “trancers”, “rave dancers” e “party goers on Ecstasy”, assim como a do próprio Saunders: « As I was interviewing the monks I could not help but be impressed how different was their experience of Ecstasy to my own, even though I had gone out to try to explore every aspect of the drug. They were so focused towards the divine as to appear slightly naïve, and indeed the Benedictine simply could not comprehend the mood experienced by party goers on Ecstasy. He could only see it as sacrilegious. My interviews confirmed a quality of Ecstasy that is seldom acknowledged: it enable the user to have deeper and more wholehearted experiences, but the type of experience depends on their underlying concerns. » Com a mescalina, o mesmo: Aldous Huxley traduzia as suas impressões na linguagem dos místicos e considerava ter tido um vislumbre da “visão beatífica”; ao professor Zaehner, o autor de Mysticism Sacred and Profane, deu-lhe para rir a bandeiras despregadas, mesmo quando olhava para solenes obras de arte religiosa. O mesmo com o capacete de “estimulação transcranial electromagnética” de Parsinger: aplicado a uns sujeitos, sentiram a seu lado ou por trás de si presenças de entidades invisíveis, “sobrenaturais”, ou até a “presença de Deus”; enfiado na cabeça do famoso biólogo e militante ateísta Richard Dawkins… não sentiu nada. (Mesmo eléctrico, é difícil enfiar o barrete a mister Dawkins!) E não esqueçamos nunca que tais pretensas experiências extáticas do sagrado podem ser e têm sido ocasionadas por outras e mui diversas condicionantes. Concluamos, pois : não há nenhuma razão nem necessária nem suficiente a garantir que as modificações da consciência produzidas por químicos naturais ou sintéticos e por modificações electroquímicas no cérebro são causas directamente relevantes para o efeito de uma genuína experiência do sagrado.

Implica isto que, de acordo com o princípio da indiferença causal de Stace, as causas são irrelevantes, até porque não existiriam nenhumas directas e necessitantes de tal experiência? A meu ver, não. Tais causas podem existir: devem é ser procuradas noutro lado, aliás o mais óbvio, não fosse tão incómodo aos paradigmas culturais de certos grupos. É o que veremos. E, se tais causas assim são deste jeito, o citado princípio é que deve ser abandonado, tanto mais que (mesmo sem elas) carece de razão suficiente. Com efeito, o que ele nos exige é algo como : se não somos capazes de discernir qualquer diferença entre dois gémeos verdadeiros, eles são pessoas idênticas; se não discernimos nenhuma diferença entre um robô e um humano, então são idênticos, etc. Fica assim à vista a falácia lógica do apelo ad ignorantiam deste truque de espelhismo mágico (se não discernimos nenhuma diferença entre o nosso corpo e a da imagem dele no espelho…), quando é ele próprio a ignorar que uma crença, e uma boa justificação para ela, não são condições por si suficientes para se garantir uma verdade. Ora, no caso, nem sequer a justificação é tão boa quanto poderia ser: a simples inspecção comparativa de traduções em linguagem articulada da fenomenologia de uma experiência (qual a do “sagrado”), que caracteristicamente é havida como “inefável”, ou se expressa em linguagem ininteligível (a glossolalia), por mais completa e precisa que fosse, não poderia isolar-se daqueles dois outros factores que Huston Smith reconhecia imprescindíveis: o perfil psicológico do sujeito e as disposições interiores e anteriores da sua experiência de vida; assim como as repercussões posteriores dessa experiência na existência do sujeito e na interacção deste com os outros – o “sagrado” institucionalizado nas práticas sociais do grupo a que pertence. A documentação etnográfica tem mostrado como este último factor pode ser especialmente poderoso, na quantidade e variedade de cerimónias rituais que, ainda hoje, nas mais diversas latitudes culturais, recorrem a plantas e fungos psicoativos. Sem neurotoxicidade nem ressacas! (Mas não esqueçamos que um especialista como Eliade era da opinião que, pelo menos no xamanismo siberiano, o recurso a tais substâncias era um fenómeno relativamente recente e representava uma degenerescências na qualidade das cerimónias e nas capacidades do xamã moderno. )

Claro que a sensibilidade e sinceridade dos indivíduos, juntamente com a sanção e integração sociais, não seriam razão suficiente para o amigo ateísta (e não precisaria de ser o eminente Dawkins) se convencer da genuinidade duma tal experiência do “sagrado”. E eu dar-lhe-ia toda a razão. – Ou individuais ou colectivas, poderiam não ser mais que sonhos sobre sonhos, dentro da Caverna platónica, aquecidos à fogueira dos piedosos desejos de alguns, dos supersticiosos temores de outros, ou das neuroses não tratadas de todos (como diria o dr. Freud). Lembremos, contudo, que as dimensões fenomenológica e cognitiva – ou, mais amplamente, psicossociológicas –devem ser complementadas com as dimensões existencial e ontológica. Apontaremos algumas sugestões sobre esta última. Para já, permita-se-me exprima esta convicção : o que faz as experiências psicotrópicas tão existencialmente interessantes e justifica a sua perene sedução, - é sugerirem ou simularem uma saída para fora deste mundo, ou potenciarem modalidades alternativas da consciência habitual deste mundo. Uma sedução (quase) irresistível, quando as práticas religiosas tradicionais são percepcionadas como impotentes para proporcionarem aos indivíduos a experiência do sagrado. Neste caso, a substituição é inevitável. Mas inevitabilidade não implica alguma genuína viabilidade.

Não há dúvida, - quão difícil parece sair da Caverna! E não parece que tivéssemos mais êxito com o famoso kykeon dos mistérios de Elêusis, ou não teríamos deixado perder a receita dele, como a do soma hindu, a do ahoma persa ou a do vinho da jurema negra (mimosa hostilis) nalgumas tribos do sertão nordestino brasileiro. E também não será com… o “ecstasy”.


[Os consumidores desta metilanfetamina poderão ter interesse em saber que a mais recente experimentação científica continua a corroborar a nocividade deste químico para o cérebro humano:
http://brain.oxfordjournals.org/cgi/content/abstract/131/11/2936 ]