quarta-feira, junho 17, 2009

UMA EXPERIÊNCIA VITAL ( I )

« Não são nem foram jamais para homem algum razões abstractas de crer em Deus a origem da sua crença. Ideias de Deus, a que se referissem conceitos definidos e pensados a posteriori (…) ideias deste género, decerto que muitas, em quantidade e variedade, serão produzidas pela experiência religiosa, que as precede, mais do que delas depende. (…) A religião é uma questão vital, a mais vital que pode haver para o homem. E isto, decerto, inclui um elemento ou aspecto intelectual, consciente. Mas a suposição idealista de que tal elemento fosse o aspecto primordial, analiticamente isolado como original e originante de tudo o resto, é um erro dos mais perniciosos. Não há religião sem crenças, mas nenhuma crença por si só produziu alguma religião, senão artificial e quase nado-morta. (…) Nada se compreenderá do fenómeno religioso enquanto se não aceitar reconhecer este dado de facto e primordial: a religião pertence à própria vida do homem, é a experiência vital de uma certa forma de vida. »

Na versão que fiz destes trechos do padre e teólogo francês Louis Bouyer (1913-2004), omiti dois aspectos importantes: que tal forma de vida é, para o indivíduo, indissociável da integração pessoal numa comunidade de pertença; e que é uma forma de vida ritual e ou ritualizada. Neste sentido, Bouyer, como outros, adopta a preeminência do rito, em particular o sacrificial, sobre o mito.

Nos anos 90 do passado século, num livro que escreveu sobre As Raízes da Religião, Henri Hatzfeld concorda inteiramente (como seria de esperar dum sociólogo), com a íntima conexão entre a experiência religiosa e a vida social; e vai até ao ponto de sustentar que a religião emergiria do simbolismo ritual que é parte integrante da tradição social, a qual conserva, reinterpreta e renova a experiência religiosa ao longo dos tempos :

« Em todos estes casos, o homem, pelos seus gestos, situa-se a si mesmo num mundo que as suas experiências as suas percepções, já não limitam. Está perante um mundo aberto onde existem forças, desconhecidas ou incertas, mas das quais depende uma parte da sua vida. O mesmo é dizer que se trata de poderes com os quais é preciso estabelecer as melhores relações. A oferenda sacrificial pode ser um exemplo. A ideia de um mundo aberto que transcende aquele que os nossos sentidos e os nossos sentidos nos dão a conhecer, e a ideia do poder, são claras para nós que as herdámos. Não são de modo algum dados primitivos. São o resultado de uma experiência onde o trabalho simbólico tem o seu lugar. Trabalho simbólico, social e sobretudo gestual. Aqui o ritual não exprime uma ideia feita: se a exprime, é porque, ao mesmo tempo, contribui par a formar. Os gestos começam por desenhar esta situação que nos parece “natural” porque a ela estamos habituados, porque ela se cola à nossa concepção de nós mesmos, mas não está de modo algum inscrita na animalidade que foi a nossa. Com os seus gestos, o homem produz tanto as suas ferramentas como essa “situação” onde, num ambiente parcialmente invisível, inaudível, incerto, existem forças que temos de conciliar antes mesmo de conhecer. Descoberta da transcendência e dos deuses como poder, cuja importância sublinharemos. Porque a divindade é, antes de tudo, o poder.
« Paremos um instante neste ponto. Não porque o homem esteja preso pelo sagrado ou pela sacralidade do mundo. Mas porque vemos que os seus gestos tão visíveis como aqueles com que talha as suas armas de pedra lascada, estão em vias de revelar os dados fundamentais de toda a cultura humana: o mundo, como interrogação, como mistério, como desconhecido para além da experiência sensível – o poder como segredo desse mundo ao qual se pode aceder, haja o que houver, por meio de práticas que reforcem as que asseguram a subsistência, a segurança e a sobrevivência da espécie. »

Citação longa, mas merecida, se o leitor a achar comigo uma saborosa peça de antologia, tão característica dos tiques ideológicos vulgares naquela categoria social de pessoas que se identificam como “cientistas sociais”; do mesmo modo que deixa transparente como esse tipo de “explicações” pode ser rápida e facilmente convertível noutras que, nos últimos anos, no contexto anglo-americano, têm vindo a ocupar volume mediático sob o nome de “psicologia evolucionista” (depois de mais conhecida, nos anos 80, por “sociobiologia”). De modo que a citação mereceria comentário não menos longo, a começar nas primeiras linhas (notável a proposta: é pelos seus gestos que…, não pela experiência consciente das suas percepções que os humanos se situam ante um mundo aberto e, consequentemente, se comportam e “gesticulam” distintamente), se o meu propósito aqui fosse o comentário crítico. Não é, e por isso limitei-me a realçar no texto certos termos-chave, inescapáveis, inexplicáveis e inexplicados. Voltamos já a eles na companhia do sociólogo francês, que se deixa agora de retrojecções ideológicas sobre o que teria acontecido nos tempos da pedra lascada e se volta para um acontecimento – uma experiência vital – mais próxima e acessível, de que aliás parece ter sido directa testemunha.

A primeira Grande Guerra custou à França a vida de um milhão e trezentos mil soldados seus. Ficou com setecentos mil mutilados. Contando na altura quarenta milhões de habitantes, o país chegou a mobilizar oito milhões e quinhentos mil soldados: são “números aterradores”, diz Hatzfeld. Pois aconteceu isto, logo após o termo do conflito. – Assiste-se, por toda a França, a um movimento popular espontâneo, apoiado pelos concelhos municipais e ex-combatentes, de construção de monumentos aos mortos na guerra e a todo um conjunto de homenagens que se vão fixar, a partir de 1919, numa cerimónia cívica nacional no dia 11 de Novembro, dia do armistício. Esta cerimónia « resulta provavelmente de dois sentimentos muito fortes, que se contradizem e reforçam com a contradição. Por um lado, não é possível deixar de celebrar uma tal libertação. Por outro lado, qualquer festa é como que abafada pela lembrança dos que não participarão nela. Ora estes sentimentos são suficientemente poderosos para que sejam inúmeros os que os sentem…. ». Alegria pela libertação das trincheiras, que eram como túmulos, e ressurreição para a “vida normal”; luto pelos camaradas mortos, que não regressaram, e que não podem ser esquecidos; perplexidade diante o “destino” ou a “sorte”, que salvou uns e matou outros. Hatzfeld sublinha dois pontos: « em primeiro lugar, que era preciso fazer qualquer coisa, fossem quais fossem os sentimentos e o nome que se lhes desse; em segundo lugar, que a utilização de gestos simbólicos tradicionais era a melhor forma de tratar uma situação difícil, rica em emoção, e sobretudo cheia de coisas a dizer e a calar. Porque os rituais sabem falar, de uma certa maneira, mas também sabem evitar as palavras. »

Eu sublinho três pontos: em primeiro lugar, a enormidade do acontecimento originário e o seu potencial traumático – a Grande guerra; em segundo lugar, os precisos sentimentos “muito fortes”, “poderosos”, que aqui importam e muito, trazidos ao discurso da linguagem… ou do silêncio; enfim, e correlativamente, a abertura e aproximação a uma transcendência, a um para além da experiência sensível, que se implica neste “culto cívico” tanto como no ritual “religioso”.–

« Trata-se seguramente de um culto. Culto que tem no seu centro o simbolismo das bandeiras, para onde toda a gente está voltada: o lugar daqueles que já não estão, o lugar daqueles cujos nomes estão gravados na pedra, o lugar dos mortos. E creio poder dizer que basta ter participado uma única vez, numa manhã fria e ventosa de Novembro, nesta cerimónia numa aldeia francesa para compreender, no minuto de silêncio durante o qual só se ouve o vento nas bandeiras, que esses mortos invocados e aos quais nos dirigimos não estão muito longe de nós. »



[ Os trechos citados, e a citar no próximo postal, são da edição portuguesa com título As Raízes da Religião, de 1997, traduzido por Armando Pereira da Silva. ]