sexta-feira, setembro 25, 2009

DESCENDO O DOURO




Ao longo do tortuoso curso não faltam telúricos miradouros sobre este rio, que tem outros inda mais altos: as vistas dos muitos escritores que por estas margens nasceram, e que beberam das águas do leito com o leite que mamaram das mães.

O pequeno transmontano de oito anos que vamos conhecer veio a formar-se médico, mas sobressaiu como jornalista, dramaturgo e novelista, cujos talentos foram no seu tempo reconhecidos e apreciados. Chamou-se Abílio Adriano de Campos Monteiro (1876-1937). Lembra :

« Tinha eu oito anos quando abandonei pela primeira vez o meu pacato burgo de Moncorvo, demandando as veigas do Minho. O barco de carreira entre a foz do Sabor e a do Tua – ponto terminal, nesse tempo, da linha férrea do Douro – partia do Rego da Barca, pelas duas hortas da madrugada, às terças e sextas-feiras. E foi precisamente numa sexta-feira de Setembro que eu, cavalgando ao lado de meu pai, desci pela estrada da Vilariça, em direitura ao cais de embarque.»

Desçamos com ele o tempo e o rio. No Rego da Barca havia uma hospedaria com uma ampla sala para cada um comer do que trouxesse. Os pesados farnéis, que faziam tropegar machos e jericos, foram abertos à fome comum de conhecidos e desconhecidos. Depois da ceia, eram já todos amigos velhos, polcando ao som das guitarras e harmónios; outros jogando cartas; adormecidos no regaço das mães, os mais pequenos. Até à hora em que ecoou a buzina do arrais a chamar ao embarque…

« Largou carreiro abaixo o grupo dos forasteiros, de essa vez bastante numeroso, em linha como as formigas, malas na mão, sacas ao ombro, atrás do moço da estalagem que marchava na testa erguendo um lampião. Ao fundo do areal, a sombra do comprido rabelo dava a impressão de um animal antediluviano encalhado ali. Saltámos para dentro. Cada qual procurou lugar, ao sabor das suas predilecções, na grande bancada que circundava a metade posterior do barco. A meio, de frente para a proa, ficaram os melómanos que haviam tido a feliz ideia de trazer os seus instrumentos musicais, para aligeirarem a viagem. Apagaram-se as duas luzes de bordo “que cegavam os olhos – explicou o arrais – a quem precisava de ver no escuro”. Os marinheiros tomaram os seus postos. – “Larga!” bradou uma voz. Cravando a ponta do croque na areia, um rapazote da tripulação fez finca-pé, afastando da margem a pesada barcaça. – “Rema p’ra o pego!” – mandou o patrão. Ouviram-se os remos a cair na água. E nada mais se escutou, depois, senão aquele chape-chape e o murmúrio sinistro da corrente.

Quem apurasse o ouvido, mais alguma coisa escutaria: o sussurro das rezas. Ao aventurar-se no dorso da corrente bravia e lodosa, onde os pontos abundavam e as arestas dos rochedos afloravam com frequência, os passageiros, aterrorizados, entregavam-se nas mãos de Deus. E era bem uma sensação de terror a que todos nós sentíamos, dentro da frágil e já carcomida embarcação de madeira, à tona de aquele rio de mau navegar, imersos em profunda escuridão, que uma neblina ténue tornava mais densa.

A princípio, durante poucos minutos, avistaram-se ainda algumas luzes, no Rego da Barca, na Foz do Sabor. Mas logo, dada a volta do Monte Meão, se entrou na treva absoluta. As margens, até então espraiadas, erguiam-se quase a pique, negras, maciças, ameaçadoras, altas de centenas de metros: duas muralhas de crepe forrando um poço. E era no fundo de esse poço que seguíamos navegando, vendo apenas, no cairel altaneiro do abismo, lá muito em cima, um retalho de céu cor de tinta, picado pelo lucilar de algumas estrelas.
Ninguém falava. Todos nos conservávamos mudos, dominados por intransitivo sentimento de angústia. Felizmente, ao cabo de uma hora, as montanhas abriram, o rio dilatou-se, e surgiram aqui e ali as manchas alvacentas de alguns areais.
(…)
Nesta altura notámos que o barco atracava a um areal. As guitarras calaram-se. – “Que temos”? – perguntou-se. E o arrais explicou: estávamos a cem braças do cachão da Valeira. Seria imprudência tentar de noite esse arriscado passo. Ficaríamos ali, portanto, até que o dia rompesse.
-Contanto que não percamos o comboio! – disse uma senhora idosa, de mantilha preta.
- Antes isso que irmos todos ao charco ! – contrapôs outro passageiro.
E foi fatal vir a lume a história do célebre sinistro sucedido naquele sítio havia já bastantes anos, mas ainda bem presente na memória de todos, em que perderam a vida seis pessoas, entre as quais um inglês tido e havido por habilíssimo nadador. Salvara-se apenas uma senhora, que a saia balão fizera flutuar.
(…)
Enfim o firmamento tornou-se menos escuro.
(…)
Já lá no alto, a cavaleiro da montanha em frente, se distinguia a cascata da Olá, saltando de rocha em rocha, num filete de espuma. Os azinheiros das encostas tomavam atitudes hirtas, de galhos abertos como braços de ermitães rezando. Dos casais dependurados pelas escarpas, coroando moitas de verdura, subiam colunas de fumo. Um ou outro rebanho de cabras saía dos currais e descia os atalhos, chocalhando. Vinha de qualquer quebrada distante um toque de sino. E a aragem que entrara de soprar inclinava sobre a água a cabeleira rumorejante dos canaviais.
Mas já o tom índigo dos últimos planos se dissolvia, dando lugar a um cor-de-rosa suave, logo mudado em amarelo retinto. O oiro que tingia os picos veio descendo até se esbater pelas margens do rio. Um pequeno brilhante, que era o sol emergindo, cintilou nas cumeadas do Freixo.
Larga! – mandou de novo o arrais.
Meia dúzia de remadas nervosas, - e o barco abalou. Logo, tomado pela corrente impetuosa, começou de fugir como uma flecha. Entrávamos no ponto da Valeira. A água precipitava-se, escachoando, batendo como um aríete as rochas escaveiradas, refluindo em caprichosas volutas, atirando-se contra o costado da embarcação, que gemia sob o embate. Seguindo a depressão cavada pelo redemoinhos no eixo do rio, o rabelo corria como numa calha. Sobre a ponte, o velho arrais, de semblante adusto, olhos fitos na proa e músculos retesados, movia à direita e à esquerda a pesada espadela, guinando ora para o pego ora para a margem, procurando evitar os parcéis e manter-se no sinuoso canal – na certeza de que o menor desvio seria o irremediável naufrágio. De repente, sentiu-se uma pancada surda na quilha. Batêramos num penedo submerso. Alguns passageiros, violentamente projectados, estatelaram-se no fundo da embarcação. Uma golpe de água entrou, como vaga alterosa, molhando-nos a todos. E um brado uníssono de angústia vibrou no ar, ecoou nos penhascos das arribas, ao mesmo tempo que nos erguíamos dos bancos.
-Má raios! – gritou o arrais.
E logo, imperativamente:
-Tudo sentado já! Rema à esquerda! Cia à direita!
O barco atravessou-se, oscilou, conseguiu libertar-se das garras agudas do granito. Metros abaixo, entrámos no poço do Salvador, tranquilo como um lago. Estávamos salvos. No alto da escarpa., por cima das nossas cabeças, alvejava a ermida do Salvador do Mundo…
Duas horas depois, avistávamos o apeadeiro de S. Mamede do Tua, e a par dele, fumegando, a locomotiva atrelada à longa fila de trens, negros e sujos, que devia conduzir-nos vale do Douro abaixo. »
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[ Ares da Minha Serra. Novelas Transmontanas, Porto, 1956 (2ª ed.). ]