sexta-feira, agosto 14, 2009

ANTÓNIO FERREIRA (1528-1569)



Eu só desta glória me fico contente:
Que a minha terra amei, e a minha gente
.


Já aqui provámos da horaciana cepa de mestre Filinto, e ele me está a pedir que do seu louvado Ferreira eu fale agora. Não é preciso pedir, que os dois versos só da epígrafe gratamente me obrigam. São eles da dedicatória “Aos Bons Engenhos”, dos Poemas Lusitanos (1589).

António Ferreira foi estudante, bacharel e lente de cátedra em Coimbra, onde escreveu a maior parte de sua obra, múltipla de géneros (sonetos, epigramas, odes, elegias, epitalâmios, epitáfios, cartas, éclogas, comédias e uma tragédia), una em inspiração e estilo classicista e humanista da Renascença. A dois anos do fim de sua vida voltou à cidade natal, Lisboa, como juiz do Cível (equivalente a desembargador da Relação). Mas não se deu bem na povoada, cosmopolita e buliçosa capital do Império, de que se queixa ao amigo conimbricense Manuel de Sampaio:

Das brandas Musas dessa doce terra
Para sempre apartado choro, e gemo
Em vãos cuidados posto, em dura guerra
….

E depois diz assim aos obsessos de hoje com a economia e finanças, e, em geral, aos que, forçados ou por gosto, a cidade amarra a si:

Quão triste e dura a vida da cidade
Cheia de povo vão! Quão perigosa
A da Corte a toda alma, a toda idade!
Esta cidade, em que nasci, fermosa,
Esta nobre, esta cheia, esta Lisboa
Em África, Ásia, Europa tão famosa,
Quão diferente em meus ouvidos soa,
Que diferente a vejo, do que a vê
O esprito enganado, que no ar voa!
Este idólatra povo, que só crê
No tesouro seu deus, assim se cega,
Qu’em al não cuida, ou escreve, ou fala, ou lê
….

Em desespero de causa o nosso bom Ferreira, erudito em gregos e latinos, veja-se a quem apela…

Aristipo por mestre aqui desejo,
Que com seu livre desvergonhamento
Soltasse minha língua e inútil pejo.
Tudo se vence cá com atrevimento,
Com língua ousada, e mãos, com não temer
….

Mas aristípicos atrevimentos não quadram com a índole recatada do poeta. Então quem lhe vale, quem lo defende?

Mas eu vou-me com Diógenes meter
Dentro em mim mesmo: e aquele doce espaço
Me não lembra mais mundo, ou mais viver.
Quanto mundo ali rio! Ali desfaço!
Que novos mundos crio! Quantas vezes
Morro comigo ali, quantas renasço!
Ditoso aquele que contando os meses
De sua idade vai alegremente,
Sem ouvir de Espanhóis nem de Franceses.
Ditosa, oh quão ditosa aquela gente
Que em sua simplez, sã rusticidade,
A noite trás o dia vê contente!

Ora com quem ele se foi meter! E, caro leitor, mesmo que seja numa bucólica barrica rural, refugido do “idólatra povo” de que o nosso patrono não fugiu, nós aqui no Tonel também apreciamos do fino e o doce. Tínhamos de provar um Ferreira! E este, que estagiou sem ouvir a espanhóis nem europeses, é retinto lusitano! Como decerto apreciamos, com Bernardo Soares ( aurea ruralitas à parte ) a extemporânea novidade deste português da época da expansão imperial a expandir-se para dentro em mim mesmo.

Com efeito, foi Ferreira dos raros que na época não escreveram uma linha em castelhano, e até reprovou quem o fazia. Como diz a fechar uma célebre carta ao amigo Pêro de Andrade Caminha:

Mostraste-te tégora tão esquecido,
Meu Andrade, da terra em que nasceste,
Como se nela não foras nascido.
Esses tão doces versos, com que ergueste
Teu claro nome tanto, e que inda erguer
Mais se verá, a estranha gente os deste.
Porque o com que podias nobrecer
Tua terra e tua língua, lho roubaste,
Por ires outra língua enriquecer?
Cuida melhor que quanto mais honraste
E em mais tiveste essa língua estrangeira,
Tanto a esta tua ingrato te mostraste.
Volve, pois, volve, Andrade, da carreira
Que errada levas (com tua paz o digo):
Alcançarás tua glória verdadeira.
Té quando contra nós, contra ti imigo
Te mostrarás? Obrigue-te a razão,
Que eu, como posso, a tua sombra sigo.
As mesmas Musas mal te julgarão,
Serás em ódio a nós, teus naturais,
Pois cruel nos roubas o que em ti nos dão.
Sejam à boa tenção obras iguais,
E a boa tenção e obra à pátria sirva:
Demos a quem nos deu e devemos mais.
Floresça, fale, cante, ouça-se e viva
A portuguesa língua, e já onde for
Senhora vá de si soberba, e altiva.
Se téqui esteve baixa, e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram,
Esquecimento nosso e desamor.
Mas tu farás que os que a mal julgaram,
E inda as estranhas línguas mais desejam,
Confessem cedo ant’ela quanto erraram.
E os que depois de nós vierem, vejam
Quanto se trabalhou por seu proveito,
Por que eles para os outros assim sejam.
Se me enganei, se tive mau respeito,
Andrade, tu o julga: mas espero
De te ser este meu desejo aceito.
E enquanto mais não peço, isto só quero
.

Os leitores do Tonel com estômago mais avesso a nacionalismos, descontem-no na originalidade inovadora, que à época deveria parecer esquisita reivindicação. É um nacionalismo ainda meramente linguístico: a minha gente de Ferreira confina-se aos selectos bons espritos dos amigos doutos, de maneira nenhuma é extensível ao idólatra povo. – Logo na abertura da sua primeira ode retoma o horaciano odi profanum vulgus ( Fuja daqui odioso / Profano vulgo, eu canto / As brandas Musas, a uns espritos dados / Dos céus ao novo canto / Heróico, e generoso. ) As belas artes ainda estavam ao tempo ( mas por pouco tempo) descomprometidas de nacionalismo político. Lembra-me o caso do poeta D. Manuel de Portugal (cuja poesia desconheço, mas que me dizem ter sido muito elogiado por Camões), que só escreveu em castelhano, e nem por isso deixou de ser sempre um indefectível partidário do nosso malogrado rei D. António I. Não é que os imperiais feitos da navegação e conquista portuguesa deixassem indiferente o nosso doutor, que bem sabia ser a épica o género mais excelso entre os antigos. Mas ele dedignou-se de a escrever (instando embora os amigos doutos a fazê-lo) e preferiu a tragédia grega, de que terá sido o primeiro introdutor na Península; e logo naquela forma tão inovadora (quase toda em versos brancos), tão perfeitamente concebida e burilada, que a um Garrett e a nós inda hoje maravilha. Enfim, tudo motivos para voltarmos outro dia a Ferreira.

Ele é que não voltou mais a banhos com as ninfas do Mondego. Os ares pestíferos de Lisboa vingaram-se dos seus desamores e passaram-no deste mundo, com apenas 41 anos de idade. Levaram-no aos elísios campos as Musas.