quarta-feira, setembro 02, 2009

DE DIOGO BERNARDES A ANTÓNIO FERREIRA



«…………………………Lê as Cartas
Do grave e douto Sá; torna a Bernardes:
Que grã riqueza neles! Que doutrina!
Que profundo saber do mundo! Quanta
Do coração humano alta ciência!
Quantas regras de bem viver se encerram
Na rica língua, no sisudo metro,
Que a nenhum, já de Lusos, já d’ estranhos,
Antigos ou modernos, dão vantagem!
»

António Ribeiro dos Santos (1745-1818)


Lá iremos ao grave e douto Sá de Miranda. Agora vamos a Diogo Bernardes, membro daquela selecta roda de altos espritos de que falava o seu amigo António Ferreira, e que foi “um dos maiores poetas portugueses do séc. XVI”, no juízo exigente de Dona Carolina Michaelis de Vasconcelos. Baste dizer que não poucos poemas dele foram disputados como sendo de Camões.

Bernardes, que era irmão do não menos grande poeta Frei Agostinho da Cruz (que já aqui homenageámos), nasceu cerca de 1530, em Ponte da Barca, « Num solitário vale, fresco e verde, / Onde com veia doce e vagarosa / O Vez no Lima entrando o nome perde. » Foi moço da câmara e da toalha del-rei D.Sebastião, que acompanhou a Alcácer-Quibir, lá tendo ficado cativo por dois anos, que nos valeram duas sentidas elegias sobre a “infelice jornada”. Restituído à pátria, não se importou de também dobrar a toalha ao cardeal-arquiduque Alberto, representante cá de Filipe II. Não sei se por isso, recebeu deste uma tença anual de 40 mil réis. Também chegou a ser, até 1567, tabelião nas terras da Nóbrega e, depois de tençado em 1593, terá voltado de vez para a sua Barca, a pescar lampreias e versos no brando e claro Lyma. Terá falecido em 1605.

No volume titulado O Lima (1596), composto de éclogas e cartas, duas destas são endereçadas a António Ferreira – “Musa da Lusitânia.... / Das nove do Parnaso a principal ” ; a segunda, tem junto impressa a resposta de Ferreira, que veremos depois. Para já, Bernardes:


Ferreira meu, não meu que foste dado
Do Céu às nove Irmãs, para que sejam
Postas por ti no seu antigo estado:
Ouvir teu doce canto já desejam
Tejo, Mondego, Douro, Neiva e Lima
Por onde o curso seu mais brando rejam
.

(…)

Rompe, pois assim é, o vagaroso
Silêncio, a que sem causa vemos dar-te:
Solta teu verso já, tão amoroso.
Não tenha a vida cousa que t’aparte
Do licor de Castália cristalino,
Que pode o que não pode o mundo dar-te.
Se pudera formar quanto imagino
Quando teus versos leio, quando noto
Neles o teu engenho peregrino,
Sem temerem os meus a mão de Cloto
Ficariam à fama encomendados
No templo de que fui sempre devoto.
Mas não posso negar serem-me dados
Por ti do Céu favores venturosos,
Inda que mal de mim remunerados.
Se me não dera ao mundo em tão ditosos
Anos, de mim que fora? Que por ti
Espero de ter nome entre famosos.
Por mim nunca subira onde subi,
Meu nome c’o a vida s’ acabara,
O mundo não soubera se nasci.
Confesso dever tudo àquela rara
Doutrina tua, que me quis ser guia
Do celebrado monte à fonte clara;
E por te dever mais, se à luz do dia
Te parecer que saiam meus escritos,
Na tua pena está sua valia.
As faltas, os sobejos, duros ditos,
O não guardar decoro em pranto e rogo,
Enfim erros que se vão infinitos.
Emenda, corta, abranda, sintam fogo
Da tua ardente Musa, em que s’apurem,
E sendo dignos doutro, dá-los logo.
Ou acabem por ti, ou por ti durem,
Seu fim ou seu louvor por ti os siga:
De mim mais não esperem nem procurem.
Põem ant’os olhos a sentença antiga
Que não nascemos nós por nós sós:
Isto te mova agora, pois t’ obriga.
Escreve, canta, ensina, por que dos
Altos escritos teus nos ajudemos,
E os mais que virão depois de nós.
Não nos queiras negar, já que te temos
Por mestre desta Musa, o largo canto
Por onde com nossa honra nos guiemos
.

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Ferreira não se negou a ensinar, e a epístola com que respondeu ao amigo ficou como modelo de didactismo da estética classicista, como veremos. Termino por hoje exarando aqui um soneto de António Ferreira enviado a Bernardes, e que este imprimiu nas Rimas Várias. Flores do Lima (1597; a última obra impressa do poeta barquense). Os apreciadores da “Musa da Lusitânia” não esquecerão que este soneto foi esquecido na 1º edição e posteriores (mesmo modernas) dos Poemas Lusitanos.


Bernardes, tu ó som do claro Lima
Inda por ti mais claro, a sombra fria,
A branca ninfa, que te deu por guia
Amor, fazes soar na doce rima.

E em quanto a cantas, flores mil de cima
Derrama Citéria, um louro cria
Para as tuas fontes Febo, e em companhia
Doutros teu nome leva a outro clima.

Eu, mudo e triste, em lágrimas banhado,
A vida gasto em esperar uma hora
Que meu fado cruel me está detendo;

Então solto, então livre, e a mim tornado,
Teu doce som iria ao meu regendo.
Em tanto teu bem canta, e meu mal chora.


A resposta de Diogo Bernardes vai endereçada a Alcipo, nome de um pastor que aparece nas éclogas Mágica e Miranda, de António Ferreira. Note-se que o soneto do limiano segue consonante com as rimas do outro:


Alcipo, uma dura e cruel Lima,
Que no meu peito rói, noite e dia,
Destrui o som que Febo dar soía
Ao canto meu, qu’ao doce teu s’arrima;

Tu, a quem ele mais ama, a quem amima,
Tanto que com Urânia e com Tália
Ao seu Parnaso t’alça, e de ti fia
Segredos que mais ama, e mais estima;

Como não cantas? Tira esse cuidado,
Que tanto t’atormenta, d’alma fora,
Que já onde desejas t’estou vendo:

O choro seja meu, pois que forçado
Me tem cá minha estrela, o Lima
Enchendo de queixas, e de lágrimas agora.