sexta-feira, outubro 23, 2009

ANTÓNIO SÉRGIO: A PERMANÊNCIA DO IDEAL CLÁSSICO


« Se a afectação e a enfatuação, se a falsa grandeza, que não é senão tumidez ventosa, se a ambição e incongruência dos ornatos, se as palavras em lugar das coisas, as argúcias em vez de pensamentos, a sobejidão nauseabunda anteposta à parcimónia que sustenta e robustece, e o relampaguear havido por alumiar, se tudo isto combinado em diversas proporções, segundo variam as índoles, as horas ou o grau de doença dos escritores, constitui, em resumo, a desgraça de muitíssima da nossa poesia actual, parece logo que o tratamento per si se está aconselhando. Deverá consistir em se trazerem outra vez para a mesa literária os alimentos substanciais, símplices e sadios que nos deixaram as idades antigas reputadas por mestras, e por mestras confirmadas do gosto universal, que isso e nenhuma outra coisa quer clássicas. »
Muito me prouve e decerto prazeria a António Sérgio (1883-1969) esta lembrança do seu mestre literário António Feliciano de Castilho, aliás expressamente citado nos prefácios dos influentíssimos Ensaios que Sérgio foi compilando a partir de 1920, e de que dou a seguir um extracto. -
« Por isso vos convido – ó jovens da elite! – a uma crítica disciplinadora e a um tentame de organização: ao culto da lucidez, da ordem, da coerência de ideias, do espírito prático, ao idealismo com senso do real e à forma simples sem ser vulgar. ( ... )
Consideremos responsável do desvario público quem quer que não busca corporizar a ordem – a exactidão, a probidade – na frase que diz ou na estátua que esculpe, na tela que pinta ou na prosa que escreve, no verso que canta ou na casa em que mora. Ao caprichismo na vida do espírito há-de corresponder necessariamente o desnorteamento no social; por isso o combate pela disciplina clássica se nos impõe agora imperativamente como condição prévia e indispensável da regeneração da nossa Pátria. Entendamo-nos. Fala um adversário obstinado de toda a superstição pela antiguidade, de toda a identificação do humanismo com os estudos a que se chama “clássicos” (divergindo, pois, por maneira nítida, dos neoclássicos da França de hoje). Classicismo, aqui, não deve entender-se por estudar latim, ou imitar Gregos e Romanos; não é ser conservador nem reaccionário: é ver que se o sentimento e a inspiração são os primeiros factores de toda arte, somente a Razão lhé dá a estrutura, a solidez a, a força; que só ela, na nossa alma, define o progresso e o humanismo, a justiça e a civilização. O clacissismo, para nós, é a humanista reivindicação dos direitos preeminentes, não do indivíduo, mas da pessoa (no significado que entre os filósofos se costuma dar a esta palavra: no de homem capaz de se elevar ao espírito, ao ponto de vsita do universal); do império do espírito sobre o fisiológico, da lei da coerência contra o cego instinto, - distinguindo-se essencialmente do romantismo em possuir o clássico um critério seu (o racional) que demarca as formas estritamente humanas entre as manifestações variadíssimas da vida psíquica de cada um de nós. [ “Não confundir o classicismo com o academicismo”, diz aqui em nota A. S. ] (...)
Na obra de clacissismo (seja feita por gregos, latinos ou italianos, germanos, ingleses, franceses ou espanhóis), na obra civilizada, em suma, em que há elaboração e honradez, vemos os pormenores e os ornamentos subordinados a um plano geral,as palavras à ideia e as imagens ao inteligível, o sentimento e a fantasia à fiscalização do senso crítico (...). Diremos enfim que é obra clássica a que vem penetrada de construtivismo; onde a corporização do sentimento artístico se faz sobre o esqueleto da universalidade que a inteligência descobre no objecto e não sobre o capricho fantasmagórico dos devaneios subjectivistas; onde as descrições do mundo físico são expressões estéticas do pensamento humano; onde as diferentes partes se encadeiam segundo uma hierarquia de ideias sólidas fiscalizadas uma a uma pela razão prática e pela experiência, de maneira que a importância relativa das coisas fique correspondente na imagem artística à que elas apresentam na vida real. »
[ Do prefácio à 1ª edição (1920) do 1º tomo dos Ensaios. Citei da edição crítica (1971) orientada por Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; e organizada por Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira. ]

À vista do estado actual dos nossos estudos secundários, não sei se Sérgio ainda manteria tão à vontade aquele “não deve entender-se por estudar latim”, do que me persuado mestre Castilho haveria de dissentir. Sem embargo, não esqueçamos que Sérgio se dirige neste passo aos “jovens da elite” (sic; então um neologismo talvez a acusar influência recente dos grandes teóricos italianos Vilfredo Pareto e Gaetano Mosca), jovens só na idade, não na experiência do trato diurno e nocturno com gregos e latinos. Não previu Castilho, nem o saberia por então Sérgio, que um destes jovens, já alguns anos antes de 1920 se afadigava noutro tipo de ensaios: era um indisplinador túrgido de “tumidez ventosa” e “sobejidão nauseabunda” ao faro burguês, e que na mesma hora se disciplinava em lapidares odes horacianas, publicadas pouco após em 1924 (no nº 1 da revista Athena) sob o nome de Ricardo Reis. E por sinal que o secretário deste, Pessoa, não deixaria também nesta época de teorizar com muito gosto sobre a “elite”. Todos estes e outros, que mesmo sem genes de clássicos ainda conservam alguma gota de bom senso comum, concordariam nisto: « Ao caprichismo na vida do espírito há-de corresponder necessariamente o desnorteamento no social. » (Mas perguntemos se em última instância não será preferível o “desnorteamento” ao afogo e ausência de “vida do espírito”… )
À parte o pendor ainda só polémico, contra o que ele chamava de “caprichismo romântico”, a permanência do espírito clássico em Sérgio é, pela amostra que fica, uma notável actualização nos termos e propósitos; os quais, de facto, parecem talhados adrede e pertinentíssimos a uma época de todo ignorante de latins e de gregos, qual é a nossa. Para o efeito, talvez que sejam prescindíveis estudos de línguas mortas, e só baste a prática amorosa da língua natural e viva. A meu ver, justos termos e propósitos concorrentes a este único fim, tão válido hoje como sempre: as emoções do afectivo sentimento devem ser instruídos pela forma da Razão comum, para que o indivíduo animal venha a exprimir-se com a educada voz duma distinta personalidade humana. Saber ligar-se o indivíduo a voz própria à comum e universal voz humana. E assim atendendo, pode ser que seja entendido.

[ Se o leitor quiser entender isto, bem se entenderá com António Sérgio. E aqui tem uma primeira e boa apresentação dele: http://www.carlosmota.info/docs/AntSerg.pdf ]