segunda-feira, outubro 12, 2009

O SISTEMA POLÍTICO PORTUGUÊS




O mesmo título dum postal anterior ? – Sim, para significar que estamos na mesma e assim poderemos estar por muitos anos. Bem, quase o mesmo título, quase na mesma. Já que pus as mãos na sanita política, vou prolongar neste o comentário aos anteriores. Com a resistência ao cheiro, vamos treinando, leitor amigo, o que mais amanhã fará falta aos precoces velhos que seremos: a paciência.

No último, terminava com uma pergunta e uma hipótese. A pergunta não merece ficar sem resposta, mormente quando há alguém capaz de lhe responder desinteressada e seriamente. E eu não conheço, entre os nossos concidadãos hoje vivos, ninguém mais moralmente autorizado e mais insuspeito, pela experiência pessoal e cívica, a competência científica e profissional acumuladas – que o professor Vitorino de Magalhães Godinho, um dos maiores continuadores do magistério seareiro de personalidades como António Sérgio, Raúl Proença ou Jaime Cortesão. O leitor pode ler aqui a entrevista, de 27 de Fevereiro deste ano, onde encontramos a resposta que nos interessa. Com toda a clareza e sem ambiguidade nenhuma, é esta:

« Nós não temos democracia em Portugal. Isso é uma fantasia. »

Que uma personalidade da envergadura cívica e científica deste senhor de 91 anos de lúcida idade, que, após a revolução de Abril, chegou a ser ministro da Educação e Cultura nos 2º e 3º Governos Provisórios, possa dizer uma coisa destas sem encontrar rebate nenhum na classe política e na opinião pública, tenho que é por si só um infalível sinal do estado de putrefacção da nossa actual existência cívica. E lembrou-me que o mesmo eminente historiador, após a sua passagem pelo governo e ter experimentado na pele que nada de construtivo podia ou o deixavam fazer para dar um rumo à Educação (intitulava-se precisamente Um Rumo Para a Educação em Portugal o livro que lançara em 1974), retirou-se então da vida política; mas não se recluiu em despectivo isolamento, a amargar pessoais ressentimentos: continuou a pensar, escrever e publicar, em benefício da vida publica dos seus concidadãos, uma série de artigos, ensaios e livros que viriam a culminar em Para a Renovação da Política Nacional (1978) e na luminosa síntese que intitulou Um Projecto Para Portugal (1979). Pois na altura, o rebate que estas obras fundamentais encontrou na classe política e na opinião pública foi quase nenhum. (Talvez porque, na última citada, se falava de « reconversão do âmago dos actuais partidos »...) Como vê, leitor, estamos na mesma. E onde estamos? Nos domínios da “fantasia” (V.M.Godinho) e sob o jugo da “videocracia” (Teixeira Pequito): é a diferença que vai dos jogos dos partidos formais e da respectiva classe política, que nos exibem as televisões, - aos grupos informais que, nos bastidores do teatro, se infiltraram e vão usurpando o poder do Estado “soberano”. Na citada entrevista, o professor Magalhães Godinho sugere interesses de privados e de oligarquias plutocráticas, sobrepostos ao interesse público. – Antes fosse só isso! Antes fosse apenas a velha jogatana dos capitais e dos capitalistas! Também será isso, decerto, mas, a meu ver, temos agora (aqui sim!) algo de novo e de muito mais capital importância. Tenho vindo a deixar aqui neste sítio algumas esparsas e discretas indicações nesse sentido. A seu tempo, conto deixar o assunto a claro.

Um sistema político é coisa muito complicada, que não se esgota nos partidos ou na arquitectura constitucional do regime, mesmo que o considerássemos apenas um subsistema do sistema social, tão determinante como determinado por outros subsistemas (educativo, económico, jurídico, etc.) das relações individuais e grupais na sociedade global nacional. E não admira nem repugna, haver, em cada momento histórico, uma estrita correspondência entre a qualidade das relações entre as pessoas e com o território em que habitam, - com a qualidade do sistema político organizador daquelas relações. Para aferir da qualidade dum sistema político, não creio imprescindíveis muitas estatísticas e muitos estudos sociológicos e politológicos relevantes: alguns casos particulares exemplares, podem ser símbolos adequados e suficientes. Tal me parece a mim o caso acontecido com o professor Magalhães Godinho. Sob este ponto de vista, a lição deste caso, e das alegações reportadas nos postais anteriores, é a seguinte: - Se a Democracia política foi, de facto, confiscada, então compreende-se a nula resposta às inconvenientes vozes de alarme de personalidades cívicas das mais categorizadas; e do mesmo modo compreende-se a impotência prática das instituições para promoverem qualquer reforma no sentido duma “democracia mais representativamente participada”. E se o que temos é, de facto, uma manipulada Oclocracia das massas consumidoras e hipnotizadas pela televisão, condicionadas a irem de tempos a tempos deitar um papel nas urnas, compreende-se como certas aparências se podem salvaguardar e o sistema perpetuar-se indefinidamente (ainda ao preço duma crescente abstenção, que, aliás, a qualquer momento pode vir a ser coercivamente reduzida pela força legal). Permita-me o leitor prosseguir com uma breve referência a mais dois casos exemplares.

Desde o teor de aditivos alimentares e o tipo de plástico que pode embrulhar alimentos, desde as marcas nas orelhas das vacas e as “frases-tipo” sobre precauções a ter com produtos de tratamento das plantas, até ao que devemos cultivar e pescar (onde e em que quantidades), já pesam sobre nós dezassete mil cento e catorze “regulamentos”, “directivas” e “decisões” que são leis europeias de aplicação obrigatória entre nós, afora as grandes Convenções e Tratados assinados por todos os Estados membros da UE. Isto significa que o sistema político, de “português” já só tem o nome; e que o poder das instituições que configuram o Estado nacional é cada vez mais residual e condicionado. No entanto, desde o Tratado de Adesão, de 1985, até ao recente constitucional, chamado “de Lisboa” (2007), não só os eleitores portugueses jamais foram democraticamente convocados a qualquer referendária ratificação do processo (aliás contra o que chegou a ser expressamente prometido para este último Tratado), - como ainda hoje as eleições europeias são as menos empenhadas e participadas pela classe política e eleitores. Ora, não só os portugueses – nesta inflexão decisiva da nossa existência histórica – deveriam ter sido directamente consultados; tudo continua aparentemente a passar-se como se as eleições legislativas nacionais contassem hoje para alguma coisa de mais decisivo do que a mera gestão do orçamento nacional sempre deficitário, do serviço da enorme dívida externa e da aplicação dos fundos do orçamento europeu... Ou só isto contasse! Em suma, eis o que temos tido neste processo da adesão e integração europeia: a precipitação dalguns oligarcas iluminados e apostados em desfazer os laços duma secular vocação e ligação ultramarina, e atar-nos de pés e mãos a uma Europa onde, desde há séculos, sempre estivemos só com um pé. Precipitação, pouca informação, nenhum debate, impreparação, nenhuma consideração pela vontade expressa dos portugueses vivos no presente, e pelos que no passado se bateram e morreram além-mar pela subsistência dum Estado português politicamente independente... Factos consumados, Democracia nenhuma! (Mas uma chuva de dinheiro, muito dinheiro: desde 1986, dez milhões de euros por dia é a média de quanto a Europa dos ricos tem feito cair sobre os pobres de nós, e cairá até pelo menos 2013...) Note-se que não está em questão julgar da necessidade histórica da integração europeia, mas tirar dos factos a lição que os factos impõem: neste processo crucial e historicamente decisivo, o “sistema político português” revelou-se totalmente e afrontosamente não democrático.

O segundo caso simbólico exemplar, refere-se a outro aspecto: o “sistema político português” configura um Estado que, desde 1974, continua substancialmente esvaziado de “soberania” sobre a população e o território. Considere-se o lado do território terrestre (mas a soberania sobre as 12 milhas do território marítimo também podia servir de exemplo), não insular, onde vive a maior parte da população e o que tem sido mais afectado neste caso. E o caso é a ordenação e defesa do território. Entre 1 de Janeiro e 15 de Setembro passado, tinham ardido 58 612 hectares de terra (1 hectare é aproximadamente o tamanho de um campo de futebol). Entre 15 e 30 de Setembro, enquanto a classe política e os cidadãos ainda interessados se entretinham no arraial eleitoral, atearam-se mais 3 623 fogos, e chegámos aos 77 131 hectares de área ardida. Continuando a citar e creditar dados da Autoridade Florestal Nacional, 69% tiveram origem humana, 30% “causas indeterminadas” e 1% causas naturais. Quanto à “origem humana”, não diz a notíca do jornal que leio qual a parte que cabe à muito falada “negligência” e qual à intenção criminosa. Cita-se apenas um sr. comandante-geral da GNR como tendo afirmado que o número de fogos criminosos “mais que duplicou” neste ano. Temos vivido assim, desde 1975! E quando temos a sorte de Verões menos quentes, logo os incendiários não deixam de aproveitar os Outonos propícios, e temos fogo até finais de Novembro, como aconteceu nos dois últimos anos. Nos anos 80 ainda nos orgulhávamos de possuir a maior mancha de pinheiro-bravo da Europa no centro do país. A este ritmo, não faltará muito para volvermos à paisagem que tínhamos no séc. XIX: o pinhal de Leiria, uns soutos de castanheiros a norte, e o mais areia, pedras e erva de pasto. Com esta previsível diferença para o séc. XXI: como o pinhal de Leiria fica no litoral em sobrepovoamento, e como a castanha já pouco dá... A lição destes trinta e quatro anos de consentida devastação continuada e sistemática será pelo menos uma, muito grave e muito clara: o Estado tem sido completamente incapaz de impor uma ordenação do território e totalmente impotente para o defender dos incendiários. (Mas eis um exemplo do que ele é manifestamente capaz: impôs-se o governo para este 2009 uma estranha meta: que não ardessem mais de 100 mil hectares; como vamos em 77 mil, aliás bastante mais do que ardeu no ano passado, eu não estranharia nada ouvir, já daqui a alguns dias, o próximo governo em funções accionar a máquina da propaganda e clamar que estão a ser eficazes as medidas de prevenção e ataque aos fogos... ) Temos pois que ao povo “semi-soberano”, de que falava a professora Teixeira Pequito, corresponde um Estado semi-soberano. Quanto à qualidade da vida social correspondente à qualidade deste “sistema político português”, está à vista afligida de quem quer ver. Basta aqui dizer que, assim de repente, não me ocorre um – um único! – exemplo claramente positivo e claramente visível. Todavia, pensando melhor, acho este: o constante aumento da contribuição solidária para iniciativas como a do Banco Alimentar Contra a Fome...

Há fogo e fogo. Não é só a terra que arde... Mas a terra queimada é uma oportunidade para os sobreviventes reexaminarem os alicerces e replantarem sementes de plantação mais resistente. Em particular, talvez seja preciso cavar fundo no que é isso da “política”, e se os problemas sociais – que talvez não serão só problemas de relações humanas – têm alguma verdadeira solução política, ou há outra melhor.


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