segunda-feira, outubro 19, 2009

DE ANTÓNIO FERREIRA A DIOGO BERNARDES


Não falta na outro dia citada carta de Bernardes a Ferreira um largo trecho de preito ao locus classicus do retorno a um locus amoenus : eram ambos pastores de écloga, apreciadores da doce avena ou frauta ruda, ansiando por ir “onde o bom Sá Miranda s’escondeu” e invejavam “ o bem aventurado, o que seguro / No campo vive, com seus bois lavrando / A dura terra com arado duro”. Como diz o poeta d’ O Lyma : “ Pelo que rogo ao Céu, qu’inda me veja / Onde possa viver com liberdade / O pouco que da vida me sobeja. ” O rogo foi atendido, como vimos, e o poeta barquense voltou à sua Barca minhota a ordenar e compilar as edições de suas rimas. Por seu lado, o doutor juiz Ferreira: « Rirei ali de pensamentos vãos, / Dos qu’incham de soberbo, e d’ ira cegam, / Doutros a quem cobiça aleija as mãos. / Rirei também dos que por mar navegam / Pois que por falsos bens, que o tempo tira, / A uma fraca tábua a vida entregam. » É este mais um exemplo da desconfiança ou até animadversão com que estes poetas de gosto terrantês e ruralista encaravam “os falsos bens”, que iam mercando nas “fracas tábuas” transoceânicas os nossos “que por mar navegam”. Infelizmente, Ferreira não teve a mesma boa dita de regressar vivo às brandas veigas do seu Mondego, e foi de forma inesperada e dolorosa que acabou por “voar onde do vulgo mais longe estivesse”. Mas não sem antes corresponder ao pedido do amigo Bernardes ( « Escreve, canta, ensina, porque / Dos altos escritos teus nos ajudemos, / E os mais que virão depois de nós.» ) e de recomendar ao poeta limiano o labor limae horaciano. E a nós outros algo mais, que mais hoje nos é preciso: juízo...

S’eu pudesse, Bernardes, se eu pudesse
Ser senhor só de mim, eu voaria
Onde do vulgo mais longe estivesse.
Ali quanto livremente me riria
De quanto agora choro! Ali meu canto
Livre por livres ares soltaria.
Em quanto me vês preso, amigo, em quanto
Sem esprito e sem forças, não me chames
Com teus versos, qu’a ti só honram tanto.
Por mais que me desejes, mais que me ames
Não empregues em mim tão cegamente
Teu canto, com qu’é bem que Heróis afames.
Mas tratarei contigo amigamente
Do conselho, que pedes. Juízo e lima
Têm em si todo humilde e diligente.

(…)

A primeira lei minha é, que de mim
Primeiro me guard’ eu, e a mim não creia,
Nem os que levemente se me riem.
Conheça-me a mim mesmo; siga a veia
Natural, não forçada; o juízo quero
De quem com juízo e sem paixão me leia.
Na boa imitação e uso, que o fero
Engenho abranda, ao inculto dá arte,
No conselho do amigo douto espero.
Muito, ó Poeta, o engenho pode dar-te,
Mas muito mais qu’o engenho, tempo e ‘studo;
Não queiras de ti logo contentar-te:
É necessário ser um tempo mudo,
Ouvir e ler somente: qu’ aproveita
Sem armas com fervor cometer tudo?

(…)

Questão foi já de muitos disputada
S’ obra em verso arte mais, s’ a natureza.
Uma sem outra ou vale pouco ou nada.
Mas eu tomaria antes a dureza
Daquele, que o trabalho e arte abrandou,
Que destoutro a corrente e vã presteza.
Vence o trabalho tudo: o que cansou
Seu esprito e seus olhos, alguma hora
Mostrará parte alguma do qu’achou.
A palavra, que sai uma vez fora,
Mal se sabe tornar: é mais seguro
Não tê-la, que escusar a culpa agora.
Vejo teu verso brando, estilo puro,
Engenho, arte, doutrina: só queria
Tempo e lima, d’ inveja forte muro.
Ensina muito, e muda um ano, e um dia,
Como em pintura os erros vai mostrando
Depois o tempo, que o olho antes não via.
Corta o sobejo, vai acrescentando
O que falta, o baixo ergue, o alto modera,
Tudo a uma igual regra conformando.
Ao escuro dá luz, e ao que pudera
Fazer dúvida, aclara; do ornamento
Ou tira ou põe: com o decoro o tempera.
Sirva própria palavra ao bom intento,
Haja juízo e regra, e diferença
Da prática comum ao pensamento:
Dana ao estilo às vezes a sentença.
Venha tudo tão igual e tão conforme,
Que em dúvida esteja ver qual deles vença.
Mas diligente assim a lima reforme
Teu verso, que não entre pelo são,
Tornando-o, em vez de orná-lo, então disforme.

(…)

Há nas cousas um fim, há tal medida,
Que quanto passa ou falta dela é vício:
É necessária a emenda bem regida.
Necessário é, confesso, o artifício,
Não enfeitado: empece à tenra planta
O muito mimo, o muito benefício.
Às vezes, o que vem primeiro, tanta
Natural graça traz, que uma das nove
Deusas parece que o inspira e canta.
Qual é a língua cruel, que inda ouse e prove
Em vão ali seus fios? Deixe inteiro
O bem nascido verso, o mau renove.
Não mude ou tire, ou ponha, sem primeiro
Vir aos ouvidos do prudente e esperto
Amigo, não invejoso ou lisonjeiro.
Engana-se o amor próprio, falso, incerto;
Também s’engana o medo de aprazer-se:
Em ambos erro há quase igual e certo.
Por isto é bom remédio às vezes ler-se
A dois ou três amigos; o bom pejo
Honesto ajuda então melhor a ver-se
.

……………………………………..