quinta-feira, dezembro 31, 2009

CIDADE NOVA



.... graças ao coração misericordioso do nosso Deus,
Que das alturas nos visita como Sol nascente
para iluminar os que jazem nas trevas
e nas sombras da morte
....

Cântico de Zacarias, in Evangelho de Lucas 1, 78-79.


Há poucos dias, no dia em que o mundo velho celebrava o solsticial dia em que o Sol Invictus se reerguia a fazer recuar as invernais sombras, recordámos um Acontecimento difícil de crer e impossível de pensar pela lógica humana, por isso mesmo concebível de acontecer pelo Logos duma divina lógica. E, contudo, de certo modo prefigurado e preparado pela substância de toda a genuína experiência humana do Sagrado, como estudiosos da categoria dum Mircea Eliade não deixaram de notar: de facto, a hierofania, enquanto manifestação neste mundo de alguma causa que não é deste mundo, podia bem ter sido uma prefiguração ou preparação existencial - mais óbvia ainda quando deuses aparentavam figuras humanas, ou homens excepcionais aparentavam actos tão extraordinários que mereciam o nome de “divinos” – do oportuno Acontecimento que os cristãos vimos celebrando anualmente neste (relativamente curto) lapso de tempo de dois mil anos. Mas deuses e heróis humanos divinizados faziam todos parte da Physis, da eterna e incriada essência do Cosmos; e a “eternidade” aqui era concebida como a infinita (no passado e no futuro) processão de ciclos temporais progressivos e regressivos, num perpétuo devir de geração e destruição dos mundos, regido pelo Tempo (Chronos) agenciador dos decretos soberanos do Destino. Mas também aqui, quando um mais “humanizado” Zeus olímpico se rebela e substitui o poder de Chronos, como não ler nisto mais um avanço no desejo humano pela perfeita conciliação numa Pessoa do divino e do humano?... E contudo, segundo a Ilíada (XVI, 440-442), mesmo o próprio Zeus não podia contravir aos decretos do Destino, e a sujeição às leis desta Necessidade (Anánkê) “natural” perdurou com irrevogável vigor até finado o velho Mundo Antigo.


Que o Deus transcendente, criador do universo e dominador do tempo foi capaz de nascer menino duma mulher virgem, ser o verdadeiro homem e Deus connosco – o Emanuel – neste nosso mundo velho, desfigurado e ferido de morte, - eis o Acontecimento extraordinário que nos comove a dobrar os joelhos, abraçar a terra e adorar ao Céu, com a multidão dos Anjos que o aceitaram e no-lo deram primeiro a conhecer.


E o primeiro entre os humanos a quem foi dado a conhecer o milagre inaudito e para sempre inolvidável – foi uma mulher. Foi por causa de Maria, que assentiu contra toda a evidência naturalista, que a Virgem e Mãe pôde (e pode!) ser a matricial origem de um Filho do Homem novo – um Novo Adão -, e dos mais filhos da mulher que neste mundo mortal cressem e quisessem renascer do alto para a verdadeira vida de filhos de Deus. E isto aconteceu numa obscura cidade da galileia palestinense, tão humilde e obscura que alguns hoje chegaram a duvidar fosse habitada ou sequer existisse...


Depois de seu noivo, José, que a não quis repudiar, entre os primeiros humanos a quem foi revelada a grande Novidade estavam pastores. Naquele tempo e sociedade, eram os pastores uma categoria social das mais desconsideradas e de mais baixo estatuto: eram como marginais, gente de pouca instrução e religião, roubando terras de cultura para pastagens e vivendo em contacto com animais “impuros”. Outros, não menos marginais à sociedade israelita, eram uns magos do Oriente, a que uma veneranda tradição popular veio a chamar “reis”. Os sábios da sabedoria das nações criam poder ler nas configurações astrais os decretos do Destino, as leis da Natureza que regiam os movimentos dos céus e os da vida na terra; e os da vida política dos reinos da terra submetiam seus decretos à horoscopia cuidadosa dos momentos fastos ou nefastos dos decretos celestes. O evangelho cristão de Mateus pode significar-nos que tal sabedoria não era necessariamente ilusória, uma vez que foram esses altos dignitários de reinos estrangeiros os primeiros a reconhecer a realeza do Messias e Rei dos Judeus recém-nascido. A reconhecerem-No e a submeterem-se-Lhe, com os simbólicos presentes que lhe ofereceram. Mas significa-nos também que o poder político local, vassalo do César romano, não se submeteu – mas se revelou tal qual é neste mundo à Luz da Verdade que vinha ao mundo: Herodes simula querer também adorar o Menino; mas, por sua vez enganado pelos magos, decreta o homicídio indiscriminado de inocentes, a ver se acertava em matar o Rei que julgava vir disputar-lhe o trono; ao tão conservador e cioso dele que chegou a tornar-se matador de três dos seu próprios filhos. Eis o símbolo vivo e dramático duma radical diferença existencial, reflectida no tempo (para todos os tempos): entre o Reino de Deus trazido e aberto no mundo pelo próprio Deus Menino – e os potentados políticos sustentados na mentira e no homicídio, cujo principado temporal de facto era daquele que Jesus denunciou como pai da mentira e homicida desde o princípio. (No evangelho de Lucas o símbolo é mais atenuado: fala-se de um recenseamento de todo o mundo habitado por efeito de um edito de César Augusto. Ora, no Antigo Testamento, os recenseamentos eram actos especialmente temerários, que, na falta de segura caução divina, chegaram a ser imputados a Satã.)


Uma mulher nova, que livremente aceitou conceber o humanamente inconcebível – a Mãe de Deus e de todos os homens novos filhos do verdadeiro homem, Jesus, e filhos de Deus -, Maria, a mais santa entre todos os santos, - exposta pela duração dos séculos, até ao fim do tempo à suspeita e ao repúdio que tentaram a benignidade de seu humano esposo, José. Um operário carpinteiro, que soube calar os protestos da honra macha sob palavra dos Anunciadores, e ousou acreditar; e acreditando, foi cumulado da maior honra que a um homem podia ser dada – o próprio Deus menino aprendendo de um homem e praticando seu ofício (até àquela idade em que todos os homens, quando bem educados, devemos entender que nem só de pão vive o homem). Uns pobres (ou remediados) pescadores, que largam seus barcos para embarcar na grande Aventura com o divino Pescador e Salvador dos naufragados humanos que queiram subir a salvo para a Barca. As mulheres, as santas mulheres que assistiram na construção dela nas praias da Galileia; que depois resistiram (elas só!) ao embate nas rochas da Judeia e à elevação dela como ensanguentado e vergonhoso Lenho, que Deus houvesse abandonado; por isso talvez as primeiras a merecerem ter notícia da Vida sem mais túmulo nem cadáver. Depois os primeiros que viram e acreditaram, e aceitaram retomar a crucífera Barca e ir a recolher todos os mais, que na procelosa sucessão dos séculos acreditarem e, no fim do tempo, claramente verão à mais clara Luz todo o sentido da terrífica e marvilhosa viagem... E esses primeiros nautas (ou pastores) não demoraram a apontar e rumar a Roma...

Eram uma comum e pobre gente de carpinteiros, pescadores, cordoeiros, tecedeiras, tendeiros, escravos, viúvas, alguns jovens “românticos” apaixonados e decididos por um Amor absoluto, livre das relações relativas à velha natureza seccionada e sexuada, fazendo a paz entre os sexos como entre judeus e gentios; em breve até se lhes juntariam alguns filósofos... E é por obra e graça deles que a nós hoje nos custa imaginar as abissais diferenças de condição e consideração social que havia entre classes. Gente sem importância nem categoria nenhumas, que aportava ao coração do Império e nele ancorava uma Cidade Nova.

Temos um resultado inicial e parcial espantoso assalto desta gente de paz que levantava a ígnea espada de Cristo sobre a capital-cabeça do César: os denominados e denunciados “cristãos” pendidos como tochas vivas alumiando a Roma em cinzas, e um Lenho ensanguentado a levantar-se no alto da colina do Vaticano, sobre as ruínas do templo de Júpiter...

Mas a luta ainda ainda não terminou. Quando assentar o pó sobre a “Cristandade” (ocidental), reguladas as últimas contas com o Império, ver-se-á melhor a Igreja universal e peregrina de todos os tempos, terminado o tempo. Não à luz dos nossos olhos cegos, mas aos do Pescador divino que recolhe e contará os seus na Nova Jerusalém.

[ Em itálico, as expressões que merecem melhor reparo e a ênfase devida.
A fotografia, titulada “Sarça”, é de Rodion Yefymov. ]