NATAL, 1966
Contava Ruy Cinatti a propósito do seu dia 25 de Dezembro de 1966, que foi um domingo:
« Ontem, dia de Natal, resolvi não jantar com ninguém. Vim para casa ao cair da noite. A minha intenção foi, entre outras, comungar humanamente com todos os indivíduos que no mundo passaram a noite de Natal sozinhos, longe de amigos ou famílias. »
Não passou sem a companhia da Poesia, e o presente que teve foi este:
Senhor, tu nasceste neste dia
e eu aqui estou, nascido no mesmo dia.
Apetece-me brincar com as palhinhas.
Pousar o dedo no boi, digo, no beiço,
no focinho do boi, senti-lo húmido
da língua que o lambe.
Depois levá-lo à boca para saber
a que sabe.
Lembrando o que há tanto tempo sucedeu,
quando um boi, um dia,
me lambeu a face,
de relance na boca.
Sal, apenas sal, queríamos nós.
O boi e eu.
Cloreto de sódio, símbolo
como aprendi no liceu.
Senhor, estamos tão sós
que até um boi nos valia.
Senhor, tu nasceste neste dia
e eu aqui estou
à espera que me dês o sal
Da tua boca.
O boi lambeu-me.
Obrigado, Senhor!
[ O poema saiu dois anos depois no livro Tédio Recompensado. Traz no título o símbolo químico do sal – “NaCl-Natal-1966” - e como epígrafe um verso de Apollinaire: “Les chérubins sont des boeufs ailés.” A meu ver, o símbolo químico tem um verso, não precisa de mais ênfase no título; que a experiência, englobando sim as várias de menino, é doutra natureza. O símbolo dos querubins alados na epígrafe, da tradição veterotestamentária do profeta Ezequiel, prejudica a Novidade em questão: os animais e a animalidade biológica restaurada e bem entendida com o Cordeiro (como no paraíso os animais bem se entendiam com os humanos tais quais éramos criados por Deus), - agora despidinho nas palhinhas como Alimento novo da humanidade nova. Os anjos assistem e louvam, não são protagonistas. Escusado será dizer que Cinatti, poeta cristão, nasceu na verdade neste dia, e não no que falsamente exibia o bilhete civil. O leitor interessado em informar-se com a minúcia e profundidade possíveis sobre as contingências extraordinárias que rodearam este parto de 1966, que daria treze livros de poemas só nos quatro anos seguintes, não tem mais que ler as páginas 314-332 da obra fundamental A Condição Humana em Ruy Cinatti (1995), de Peter Stilwell. Este chama “implosão espiritual” às extraordinárias circunstâncias e frutos com que esta condição foi cumulada por esses dias na pessoa do nosso Poeta. ]
« Ontem, dia de Natal, resolvi não jantar com ninguém. Vim para casa ao cair da noite. A minha intenção foi, entre outras, comungar humanamente com todos os indivíduos que no mundo passaram a noite de Natal sozinhos, longe de amigos ou famílias. »
Não passou sem a companhia da Poesia, e o presente que teve foi este:
Senhor, tu nasceste neste dia
e eu aqui estou, nascido no mesmo dia.
Apetece-me brincar com as palhinhas.
Pousar o dedo no boi, digo, no beiço,
no focinho do boi, senti-lo húmido
da língua que o lambe.
Depois levá-lo à boca para saber
a que sabe.
Lembrando o que há tanto tempo sucedeu,
quando um boi, um dia,
me lambeu a face,
de relance na boca.
Sal, apenas sal, queríamos nós.
O boi e eu.
Cloreto de sódio, símbolo
como aprendi no liceu.
Senhor, estamos tão sós
que até um boi nos valia.
Senhor, tu nasceste neste dia
e eu aqui estou
à espera que me dês o sal
Da tua boca.
O boi lambeu-me.
Obrigado, Senhor!
[ O poema saiu dois anos depois no livro Tédio Recompensado. Traz no título o símbolo químico do sal – “NaCl-Natal-1966” - e como epígrafe um verso de Apollinaire: “Les chérubins sont des boeufs ailés.” A meu ver, o símbolo químico tem um verso, não precisa de mais ênfase no título; que a experiência, englobando sim as várias de menino, é doutra natureza. O símbolo dos querubins alados na epígrafe, da tradição veterotestamentária do profeta Ezequiel, prejudica a Novidade em questão: os animais e a animalidade biológica restaurada e bem entendida com o Cordeiro (como no paraíso os animais bem se entendiam com os humanos tais quais éramos criados por Deus), - agora despidinho nas palhinhas como Alimento novo da humanidade nova. Os anjos assistem e louvam, não são protagonistas. Escusado será dizer que Cinatti, poeta cristão, nasceu na verdade neste dia, e não no que falsamente exibia o bilhete civil. O leitor interessado em informar-se com a minúcia e profundidade possíveis sobre as contingências extraordinárias que rodearam este parto de 1966, que daria treze livros de poemas só nos quatro anos seguintes, não tem mais que ler as páginas 314-332 da obra fundamental A Condição Humana em Ruy Cinatti (1995), de Peter Stilwell. Este chama “implosão espiritual” às extraordinárias circunstâncias e frutos com que esta condição foi cumulada por esses dias na pessoa do nosso Poeta. ]
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