quarta-feira, dezembro 09, 2009

UMA “OLIGARQUIA TECNICAMENTE TREINADA”



Nenhuma sociedade decente pode tolerar a exploração dos seus membros vulneráveis. Quando essa exploração é efectuada em nome da defesa nacional há algo de podre no coração da cultura política dessa sociedade.

Jonathan B. Moreno


« A partir de 1951, e durante doze anos, as autoridades militares norte-americanas realizaram no estado do Nevada mais de uma centena de deflagrações experimentais com bombas atómicas. Os efeitos fizeram-se sentir sobre pessoas e animais numa faixa de território que alcançou o estado da Nova Inglaterra, na costa leste, atravessando praticamente o país de um lado a outro. Ao longo de todo esse período, milhares de soldados receberam ordem para efectuar exercícios de combate pouco depois de as explosões terem ocorrido e na imediata proximidade do lugar de deflagração, e do mesmo modo centenas de operários dos serviços de manutenção do centro de testes foram deliberadamente expostos a doses altíssimas de radiações. Tanto entre os soldados e os operários como entre os habitantes das zonas mais afectadas começaram a verificar-se percentagens de cancro muitíssimo elevadas. As autoridades, porém, não só mantiveram o silêncio sobre o que se passava, como organizaram uma verdadeira campanha de informações falsas, prevenindo, por exemplo, os soldados de que o perigo provinha da exposição aos raios solares e não das radiações atómicas. E ao sabermos que mulheres residentes em povoações atingidas por nuvens radioactivas se dirigiram aos hospitais locais com sintomas como queda de cabelo e queimaduras na pele, só para serem mandadas de regresso ao lar com o diagnóstico de “neurose” e de “síndroma das donas de casa”, temos de concluir que houve médicos a participar na campanha de desinformação.

« Com efeito, numerosos médicos e cientistas dos centros académicos mais reputados colaboraram com a Comissão para a Energia Atómica, o departamento oficial então encarregado de superintender as questões deste tipo, para em conjunto realizarem experiências, deixando as cobaias humanas na ignorância do que verdadeiramente se passava. Entre 1945 e 1947, por exemplo, dezoito doentes receberam, sem o saber, injecções de plutónio, e este tipo de actividade científica foi continuado pela Universidade de Colúmbia ao longo da década de 1950. Pela mesma altura, numa experiência que ocorreu também sob a égide da Comissão para a Energia Atómica e foi realizada por cientistas da Universidade de Harvard e do Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT), as crianças sofrendo de atraso mental que frequentavam uma dada escola especializada foram sistematicamente alimentadas com leite radioactivo e receberam injecções de substâncias radioactivas, para que os peritos pudessem estudar as alterações provocadas no metabolismo. Mais tarde, na primeira metade da década de 1970, um dos laboratórios da Comissão para a Energia Atómica utilizava nas suas experiências cerca de duzentos doentes com cancro, expondo-os, sem os prevenir, a níveis de radiação muitíssimo elevados. »

Citei dois parágrafos do importante livro de João Bernardo, Os Labirintos do Fascismo (2003), que várias vezes aqui lembrámos, confrontando o nosso Tonel com a Gaiola de Skinner . As coisas não começaram em 1951, não terminaram na década de 70 e muito menos sucederam apenas os casos citados. O penúltimo do texto é particularmente sugestivo e exemplarmente repugnante. Não se deu em uma mas sim duas escolas-internato, de Fernald e Wrentham, no Massachusetts, e os abusos sobre as crianças descritas como “atrasadas mentais” prolongaram-se por vinte e nove anos, entre 1946 e 1973. Começaram com o pretexto de “estudos sobre nutrição”, e foram patrocinados pela Quaker Oats Company. As crianças foram alimentadas ao pequeno-almoço com cereais e leite que continha traçadores radioactivos, para se ver como o corpo absorvia o ferro e o cálcio dos cereais. A Quaker Oats queria por seu lado “demonstrar” que os nutrientes dos seus cereais percorriam todo o corpo, e ganhar a ofensiva de publicidade conduzida contra a firma concorrente da Cream of Wheat. As experiências deram pelo menos seis artigos científicos, publicados com omissão da identidade dos sujeitos da experimentação e da forma do seu recrutamento; e custaram, em 1997, quase dois milhões de dólares de indemnizações por parte da Quaker e do MIT a cerca de trinta alunos vítimas delas.

Este e muitos outros casos, cobrindo um arco temporal que vai do pós-1ª Guerra Mundial até depois da primeira invasão do Iraque em 1991, são descritos e analisados na obra de Jonathan B. Moreno – Riscos Imorais. Experiências Secretas Governamentais com Seres Humanos (trad. port. de J. Santos Tavares, 2000). O autor fez parte da Comissão Consultora sobre Experiências com Radiações em Seres Humanos que foi criada em 1994 pelo presidente Bill Clinton, e que apresentou um vasto relatório da investigação feita em 1995. O livro beneficia dos resultados dessa investigação, que o autor amplia aos testes secretos feitos também com agentes para armas químicas e biológicas, não deixando de enquadrar os casos no contexto do código ético emergente dos julgamentos de Nuremberga (1946-47). Jonathan Moreno está em posição privilegiada para o fazer, como professor de Ética Médica na Universidade da Pensilvânia e autor com várias obras publicadas no âmbito dessa disciplina e da bioética em geral; sob este ponto de vista o livro traduzido entre nós é um manancial precioso de informação (e de preocupação!) para o estudante e o cidadão interessados.

Enquanto nos julgamentos dos médicos nazis em Nuremberga se fixavam os princípios éticos fundamentais a observar nas práticas de experimentação em seres humanos - entre os quais, como se dizia na sessão de 14 de Julho de 1947, estava o de que « as pessoas se apresentem como voluntárias para as experiências depois de terem sido informadas acerca da sua natureza e dos seus riscos », princípio que mais tarde viria a ser conhecido por “consentimento informado” -, decorria a bom ritmo o Projecto Paperclip. Sob o alto patrocínio da junta de chefes do Estado Maior das forças armadas norte-americanas e dos seus serviços de informações, eram procurados e transferidos para os Estados Unidos quantos cientistas nazis interessassem ao desenvolvimento do complexo industrial-militar americano; ora este Projecto não terminou em Setembro de 1947, como foi oficialmente declarado por um dos envolvidos nele, mas prolongou-se... até 1973 (tal a data na trad. port., mas deve ser antes 1953). Abrangeu cerca de 1 600 cientistas e vários milhares de familiares acompanhantes. Quantos desses cientistas estariam sob a alçada do decreto do presidente Truman, que expressamente impedia a entrada nos Estados Unidos de todos os que tivessem estado ligados ao aparelho de guerra e repressão nazi, não se sabe ao certo, porque os serviços de informação militares da JIOA (Joint Intelligence Objectives Agency), que superintendiam no Projecto, trataram de preencher os ficheiros de maneira a “descansar” todas as alegadas preocupações manifestadas então pelos departamentos de Estado e de Justiça, bem como pelo FBI, acerca do caso. No cap. 4 da obra citada de Jonathan Moreno (significativamente titulado “Acordos com o Diabo”), o leitor pode apreciar a narrativa exemplar de como a burocracia do complexo militar soube iludir e tornar letra morta a letra publicada e publicitada duma ordem do presidente dos Estados Unidos. Aqui, como sempre, tudo em nome dos supremos interesses da “segurança nacional”. Enquanto decorria a operação Paperclip (mas não sei se directamente no âmbito dela), o general Reinhard Gehlen, chefe da espionagem nazi para o leste europeu, que se entregara às tropas americanas com toda a vasta informação que a sua rede de colaboradores e torcionários colhera sobre as tropas soviéticas, colaborava com o sr. Allen Dulles e outros na criação da CIA. Já aqui tive ocasião de me referir a este órgão da multiforme “intelligence community” norte-americana, que mereceu ser chamado de “Governo Invisível” por investigadores (americanos) moderados e informados. Terminado o serviço, e sem mais préstimo para os seus protectores, Gehlen voltou tranquilamente em 1949 para a Alemanha a montar e dirigir os serviços de informação da novel República Federal.

Poucos anos passados, em 1953, o secretário da Defesa Charles Erwin Wilson, na administração do presidente Eisenhower, aprovava um documento do Conselho de Política Médica das Forças Armadas recomendando que a experimentação com seres humanos fosse feita “ao abrigo de reconhecidas salvaguardas”, evocando expressamente os princípios de Nuremberga. Mas o “Memorando Wilson”, como ficou conhecido, foi classificado como... “top secret”(!) - e um dos pontos mais instrutivos do livro de Jonathan Moreno (pp. 229 e sgs.) é patentear ao leitor como as intenções expressas do do documento foram ao longo dos anos sucessivamente ignoradas ou sofismadas pelo complexo militar-industrial e académico. E continuou tudo na mesma: nos finais dessa década de 50 (e até 1972), na escola “para crianças e adolescentes profundamente incapacitadas” de Willowbrook, Nova Iorque, maioritariamente negras e hispânicas, uma equipa médica da universidade desta cidade inoculava vírus da hepatite nas crianças, em experimentações financiadas com fundos do Conselho de Epidemiologia das Forças Armadas...


Na noite de 17 de Janeiro de 1961, no discurso de despedida do segundo mandato da presidência, que endereçou aos seus “fellow americans”, o presidente Dwight Eisenhower saiu com um discurso cheio de actualidade (julgo que foi a primeira vez que um político de alto coturno se referiu a “electronic computers”) , - e não menos de muito lúcidas e previdentes advertências quanto ao futuro. Merecem um destaque especial.



[ Entretanto, o leitor interessado tem aqui, em inglês, uma cronologia dos principais casos publicamente conhecidos na Norte-América, até recentemente:


http://www.ahrp.org/history/chronology.php

É uma listagem que nos deixa ver bem a natureza da Tecnociência, promotora e serventuária do industrialismo capitalista poluidor do mundo e envenenador do homem.
A imagem reproduz um quadro a lápis e aguarela de William Blake, titulada The Red Dragon and the Beast of the Sea, 1805. O grande visionário inglês foi um dos primeiros que viram bem, denunciaram e resistiram. ]